Em 1975, ano da Independência Nacional, mais de 60% dos moçambicanos não falava português. Vinte e cinco anos depois existem ainda 40% de moçambicanos que não falam português. Mesmos os que têm essa competência fazem-no como segunda língua. Apenas 3% dos moçambicanos têm o português como língua materna.
O meu país é um território de muitas nações. O idioma português é uma língua de uma dessas nações — um território cultural inventado por negros urbanizados, mestiços, indianos e brancos.
Sendo minoritário e circunscrito às cidades, esse grupo ocupa lugares-chave nos destinos políticos e na definição daquilo que se entende por moçambicanidade.
Esse é o Moçambique lusófono. Esse é o país que se senta nos fóruns que decidem sobre a lusofonia. Os outros moçambicanos das outras nações moçambicanas correm o risco de ficar de fora, afastados dos processos de decisão, excluídos da modernidade.
A política portuguesa em África foi orientada no sentido de fabricar uma camada social — os assimilados — capaz de gerir a máquina do Estado colonial. Os candidatos a assimilados deviam virar costas à sua religião, à sua cultura, às suas raízes. Uma das fronteiras entre os chamados civilizados e os não civilizados (os denominados indígenas) passava pelo domínio da língua do colonizador. A administração portuguesa aceitava conceder o estatuto de cidadãos de segunda classe a estes portugueses de pele preta, na esperança de que eles se viessem a tornar os futuros reprodutores da instituição colonial. Estava-se forjando a ordem colonial dos nossos dias — um colonialismo indigenizado, um colonialismo que dispensa colonos.
Conto-vos agora uma pequena história. Fala-vos de um jovem camponês chamado Eduardo Chivambo Mondlane. Este criador de cabras foi levado para os Estados Unidos onde se formou em Antropologia. Em 1961, Eduardo Mondlane regressava a Moçambique como funcionário das Nações Unidas. O regime colonial já reconhecera o perigo que representava esta figura pública. Mas o governo não podia impedir a sua entrada em Moçambique.
Pois nessa noite, na noite em que chegou a Lourenço Marques, estava convocado um comício na Associação dos Negros de Moçambique. Ali se aglomeraram milhares de pessoas para escutarem a palavra libertadora daquele que era esperado como um Messias. Mondlane deveria falar numa varanda de um velho edifício que se abria para a praça repleta de gente.
Quando se dirigia para o varandim, agentes da Pide chamaram-no à parte e disseram-lhe: podia usar da palavra, sim, mas não podia falar de política, não podia falar de pobreza, não podia referir nada sobre o povo de Moçambique nem o que se passava em África. A lista das interdições era tão extensa e rigorosa que pouco ou nada restava para ser dito.
Mondlane, mesmo assim, encaminhou-se para a varanda e no seu rosto era visível essa procura do que dizer. Então, contou a seguinte história: “Certa vez um caminhante foi recebido por uma família rural que lhe ofereceu abrigo e repouso antes de prosseguir viagem. Ao fim da tarde, o anfitrião conduziu o viajante ao quintal e mostrou a criação na sua capoeira. Entre as galinhas havia, estranhamente, uma águia. Perdera o seu porte real, anichada (ou agalinhada) num canto, piando como galinha e debicando grãos de milho no chão. O viajante ficou impressionado com a visão daquela ave tão nobre, ali despersonalizada como se fosse apenas uma entre muitas galinhas.
— Ela acredita ser uma galinha — explicou o dono da casa.
De noite, o viajante não tomou sono, assaltado por aquela impressão que lhe causara a visita ao galinheiro. E de madrugada, muito cedo, já ele entrava na capoeira e, pegando na águia, a conduziu para o descampado. Lançou a ave nos ares enquanto incitava:
— Voa, tu és uma águia.
E a ave, sem jeito, se despenhava no chão. Repetiu a tentativa várias vezes. Sem resultado. Até que foi parar a um desfiladeiro. Então, segurando o pássaro num braço, se abeirou do abismo e lhe repetiu:
— Voa, tu és uma águia.
E de um sacão lançou o bicho no vazio do precipício. Então, a águia iniciou um esplendoroso voo e venceu as alturas, cruzando o horizonte para além de si mesma”.
Mia Couto, "E se Obama fosse africano?"
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