quarta-feira, novembro 24

Crônica na pedra

Aquela era uma cidade assombrosa, que parecia ter brotado do vale num repente de uma noite de inverno, como um ser pré-histórico, e, rastejando com enorme esforço, galgado a face do monte. Tudo naquela cidade era velho e pétreo, desde as ruas e ruelas até os telhados das casas, grandes, seculares, cobertos de placas de pedra cinzenta, semelhantes a escamas gigantescas. Era difícil acreditar que dentro daquelas duras couraças palpitava e repetia-se a tenra e branda carne da vida.

Em cada viajante que a via pela primeira vez, a cidade despertava o impulso das comparações, mas logo, quando o forasteiro caía em suas garras, ela repelia os paralelos, pois era uma cidade que não se parecia com nada. Não absorvia cotejos, assim como não absorvia as chuvas, as nevascas, os arco-íris e as multicoloridas bandeiras estrangeiras que iam e vinham sobre seus tetos, tão temporárias e etéreas como se estranhassem a pétrea constância do lugar.

Era uma cidade torta, talvez a mais torta do mundo, contrariando todas as leis do urbanismo. Graças à sua enorme tortuosidade, ocorria de o telhado de uma casa estar no mesmo nível das fundações de outra. Com certeza era o único lugar do mundo em que alguém podia escorregar na rua e, em vez de cair na sarjeta, tombar talvez no telhado de uma casa de vários andares. Quem melhor sabia disso eram os beberrões.

Era, com efeito, uma cidade de muitas surpresas. Você podia passear pela rua e, querendo, esticar o braço e pendurar o chapéu no topo de um minarete. Muitas coisas ali eram inacreditáveis e muitas pareciam sonhos.

Ao guardar a custo a vida humana em suas juntas e sob suas cascas de rocha, a cidade sem querer causava-lhe muita dor, arranhões, feridas. Era algo natural, já que era uma cidade de pedra, áspera e fria ao tato.

Não era fácil ser criança naquela cidade.

Ismail Kadaré

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