segunda-feira, novembro 22

Uma vara espetada na terra

Faltam duas semanas para o meu aniversário. Quarenta e sete anos, nem sequer um número redondo, um cinquenta ou um quarenta e cinco, mas chegará um instante em que terá passado um tempo certo de um instante certo, que aconteceu. Irá acontecer também esse instante que celebra o outro, anterior. Com muita probabilidade, haverá um período desse dia em que me sentirei nostálgico, irá talvez parecer-me que tudo passou demasiado depressa.

Em tantos aspetos, o tempo é uma pergunta. Somos capazes de calculá-lo, podemos lembrá-lo ou prevê-lo, mas a resposta última que encontramos para a grande questão que nos coloca é dada por cada decisão que formos capazes de tomar agora. Estamos aqui e, por isso, somos donos deste momento preciso. Somos donos de tanto.

Nasci às duas e meia da tarde.

Na primavera do meu primeiro ano de escola, 1981, houve uma manhã em que, ainda antes do recreio, saímos para o pátio. De bata, seguimos a Dona Arcângela. Sob a nossa admiração, escolheu um lugar na terra e espetou uma vara. Observámos a sombra que estendia, uma linha reta. Assinalámo-la com pedras. Voltámos mais tarde e a sombra estava já noutro ponto. Durante o recreio, brincámos à volta desse vara, nunca lhe tocando, como se contivesse um mistério importante. E continha.

 Jacques de Loustal 

Em casa, eu tinha um relógio na parede da cozinha e um despertador antigo na mesinha de cabeceira. O sino da vila tocava de quarto em quarto de hora. Num dos meus aniversários de adolescente, o meu pai ofereceu-me um relógio eletrónico, comprado em Badajoz. Sei que sorri. Não sei quanto tempo passei a acertá-lo com o bico de uma caneta ou a assistir à passagem lenta dos segundos. O meu pai tinha um relógio de bolso, a ponta da corrente pendia-lhe de uma das presilhas das calças. Eu tinha um relógio espanhol de pulso: 14:30.

Agora, respiro. Tenho o conhecimento teórico de que possuo um coração a bater-me no peito. Estou aqui há tempo suficiente para saber que, depois do dia, virá a noite. Entretanto, espero ser capaz de desfrutar do entardecer, lento.

Existem os números, mas existem também as plantas, as árvores. Uns e outros explicam-nos este mistério importante: estamos aqui. Agora, com a ponta dos dedos, poderíamos sentir a nossa presença física, temos braços e pernas, temos rosto, temos uma idade precisa, contada a partir de um instante irrepetível. Estamos aqui e, ao mesmo tempo, avançamos. A seiva atravessa o interior das plantas e, ao mesmo tempo, o ponteiro dos segundos faz o seu caminho em todos os relógios do mundo. Somos contemporâneos de tudo isto que nos rodeia. Podíamos agora olhar em volta. Em cada pormenor da paisagem, está uma possibilidade deste tempo que nos leva e nos pertence. O futuro é uma montanha. O passado é uma montanha. O presente é uma montanha ainda maior. Imaginamos uma, recordamos a outra e estamos no topo da mais alta. A neblina e a distância apenas permitem nitidez ao lugar onde pousamos os pés. Não é pouco, é tudo o que precisamos. Podemos encher o peito e respirar.

Em redor dos meus pés, crescem ervas, são sábias. Alimentam-se da terra, a mesmo onde, há anos, a Dona Arcângela, espetou uma vara. Estou ainda a aprender tudo o que começou a ensinar-me nesse instante. Talvez as lições mais importantes sejam mistérios maiores do que uma vida e talvez esteja bem assim, talvez seja justo assim. Nenhuma tristeza ou amargura nessa constatação simples.

O relógio de bolso do meu pai é agora meu, parado para sempre no meio-dia ou na meia-noite. Marca uma hora que passou, não voltei a dar-lhe corda, está certo nessa hora. Há vezes, em que o pouso na palma da mão, redondo, liso, e sinto a sua corrente entre os dedos.
José Luís Peixoto

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