quinta-feira, novembro 11

O pudico

Eu estava aguardando o início de uma missa de sétimo dia e, sentada ao meu lado, no mesmo banco da igreja, uma mulher olhou para mim, com um olhar judicioso, acintoso mesmo, e perguntou:

“Sabe por que se comemora a missa do sétimo dia? O número 7 na Bíblia significa a perfeição que é Deus, que em 7 dias criou o mundo e descansou. Veja na Bíblia: o luto de Jacó durou 7 dias, Saul foi enterrado e fizeram um jejum de 7 dias, o povo chorou a morte de Judith durante 7 dias, o luto por um morto dura 7 dias.”

Pensei: essa mulher é louca? Não, ela não tinha cara de louca, era relativamente jovem, relativamente bonita, relativamente-relativamente.

Levei um susto quando ela me perguntou:

“O senhor está me achando relativamente louca?”

“Por que a senhora pensou nessa palavra, relativamente?” “Quem pode responder isso é o Albert.”

“Albert? Que Albert?” “Albert Einstein.”

Felizmente nesse momento o padre entrou e a missa começou. Quando a missa acabou a mulher estendeu a mão para mim:

“Meu nome é Denise.” “O meu é Roberto.”

“Eu sou autora e diretora teatral. Minha peça em cartaz intitula-se A missa de sétimo dia. Por isso vim assistir a esta missa.”

“Uma peça religiosa?”

“Não, não, é uma peça erótica. O público, mesmo o de teatro, que é frequentado basicamente por velhotas transportadas por vans, só quer saber de peças eróticas. Veja bem, quando digo peça erótica não quero dizer peça pornográfica. O erotismo designa, de modo geral, não apenas um estado de excitação sexual, mas também a exaltação do sexo no âmbito das artes, como na literatura — romance, poesia, teatro — e na pintura, por exemplo. E o senhor? Qual a sua ocupação?”

Quando vai dizer uma mentira você não pode titubear. “Pintor”, eu disse, sem hesitar.

“Clássico, moderno…” “Moderno.”

Na rua estava um calor infernal. Mas eu não podia tirar o paletó. Ossos do ofício. Denise me deu um papel.

“É uma entrada para a peça. Não deixe de ir vê-la. E depois, por favor, vá ao camarim para me dizer o que achou.”

Fui ver a peça. Vou fazer uma pequena descrição.

O palco está todo às escuras quando uma luz é projetada sobre um caixão aberto. Dentro do caixão, deitada, uma mulher, toda vestida de preto, aparentemente morta. É Denise. Uma voz soturna diz:

“Ela ingeriu uma substância, Ketamina, que faz a pessoa parecer morta. Mas está viva.” A luz apaga. Palco às escuras.

Novamente um facho de luz sobre o caixão. A falsa morta levanta, ouve-se uma música. A mulher dança e vai tirando a roupa, devagar, até ficar completamente nua.

Então entra um padre que também começa a dançar e a tirar a roupa. Ambos estão nus. O padre pega o caixão e como que num passe de mágica transforma-o em uma espécie de cama. Os dois deitam-se e começam a ter relações sexuais. A luz foca sobre detalhes da cópula, até que os dois começam a gritar, não se sabe se de gozo, dor ou medo, e a luz se apaga.

Um cortinado preto cobre a boca de cena. Nele está escrito FIM.

O público aplaudiu. Creio que as pessoas que vão ao teatro querem aplaudir, manifestar agrado, não importando o que lhes é exibido.

Fui ao camarim.

Denise estava cercada de admiradores, que lhe pediam autógrafos e tiravam fotos com os aparelhos celulares.

Quando me viu, ela se livrou dos fãs e pegou-me pelo braço, dizendo:

“Vou levá-lo a um lugar que vai lhe agradar muito. Espere uma meia hora apenas, por favor.”

Esperei.

Denise se vestiu.

“Vamos à Swing König. É uma boate para casais e solteiros interessados em diversão adulta. Trata-se de um novo conceito de diversão. Onde pessoas aproveitam a noite em um ambiente descontraído, agradável e sensual.”

Para entrar na Swing König a pessoa era levada a um vestiário onde tirava toda a roupa. “Na sala principal só se entra nu”, disse Denise.

Confesso que me desnudei sentindo vergonha. Deve ser devido à minha profissão. “Vamos fazer um trato. Você pode permitir que lhe façam felácio ou pode fazer cunilíngua em quem quiser. Eu também tenho a mesma liberdade. Mas introductio penis intra vas só entre nós. De acordo?”

Ela foi entrando na sala principal, uma sala escura, cheia de gente nua. Quando a minha vista se acostumou consegui perceber que a maioria das pessoas era gorda. Uma dessas tentou me abraçar, mas me esquivei.

Saí da sala principal e fui ao vestiário. “Devo alguma coisa?”, perguntei. “Não, a sua senhora pagou tudo.”

Eu temia que Denise fosse me achar um pudico, mas na verdade eu me envergonho facilmente. Acho que é da minha profissão.

Eu menti. Não sou pintor. Adquiro os meus bens de maneira fraudulenta, em suma, sou um ladrão.

Nesses assuntos de sexo, os ladrões são muito tímidos.

Felizmente Denise não tinha o meu endereço. Sentiria vergonha se ela soubesse que eu era tão pudico.
Rubem Fonseca

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