terça-feira, novembro 2

Bola de cristal

Cada instante tem à sua frente um cruzamento. O tempo pode seguir por uma ou outra direção. Enquanto ainda não aconteceu, o tempo não existe. É necessária essa concretização física, esse ser e estar, para que o tempo chegue a considerar-se tempo. Ainda assim, sem recorrer a cartomância, astrologia, numerologia ou qualquer uma das artes daqueles professores que resolvem problemas de inveja, dívidas ou amarrações amorosas, estou em condições de afirmar desde já que, independentemente do desfecho de qualquer um dos dilemas atuais, aconteça o que acontecer, vai haver gente a dizer que tinha a certeza absoluta de que ia ser assim.


Logo que se ouviu falar pela primeira vez do vírus, ouviu-se também falar em vacina. Houve um período em que se afirmava que pouco demoraria até que estivesse concluída, houve outro momento em que se começou a dizer que, afinal, talvez não fosse assim. Há a vacina da Europa, dos Estados Unidos, da China, da Rússia e, provavelmente, outras que desconheço, não procurei informação aprofundada sobre o assunto. Como a maioria das pessoas, suponho, apercebi-me de que havia um tempo em que a vacina seria a solução para todos os problemas levantados pelo vírus e, mais tarde, apercebi-me de que, afinal, talvez não fosse assim. No entanto, posso desde já garantir que, seja qual for a solução para este tema, aconteça o que acontecer, vai haver gente a dizer que tinha a certeza absoluta de que ia ser assim.

Todos usamos máscara. Ou, neste momento, acreditamos que devemos usar. Se temos memória, lembramo-nos de, há meses, escutar gente informada a dizer-nos que podíamos dispensá-la. Ao mesmo tempo, noutros países, são fortes os movimentos que recusam as máscaras, evocam toda a espécie de argumentos. Em qualquer dos casos, há perguntas, por exemplo: será viável que o mundo use máscaras para sempre? Só aparentemente esta é uma pergunta de sim/não. Acredito que haverá pessoas a encontrar todo o tipo de respostas, inclusivamente pessoas que estudaram este assunto a fundo, pelos mais diversos ângulos. Em qualquer dos casos, há uma garantia que posso dar neste momento: aconteça o que acontecer, vai haver gente a dizer que tinha a certeza absoluta de que ia ser assim.

Não sabemos todos os contornos da crise económica que se aproxima, que já chegou. É preciso considerar múltiplas variantes, não apenas ao nível económico e financeiro, mas também ao nível de diversas áreas que têm efeitos diretos sobre os números do dinheiro. As contas que uns e outros fazem dependem das suas crenças. Por mais objetivos que pareçam, fazendo uso de fórmulas, cada um desses exercícios tem como base uma interpretação política do mundo e das várias sociedades que o constituem. Em última análise, essas previsões económicas exigem uma perspectiva sobre o ser humano, o seu comportamento, a sua moral, a sua propensão para fazer uma ou outra escolha. No entanto, entre tanta imprevisibilidade, é certo que, aconteça o que acontecer, vai haver gente a dizer que tinha a certeza absoluta de que ia ser assim.

Vai ficar tudo bem, escreveram as crianças nos papéis onde desenharam arco-íris. Concordo com quem lhes disse para fazê-lo, ninguém merece olhar para um futuro nublado, um amanhã pior do que hoje, sobretudo crianças, com toda uma vida para imaginar. Mas, nós que já não somos crianças, não conseguimos calar a dúvida interior: será que vai ficar tudo bem? Em conversas, deixamos escapar a expressão “quando tudo voltar ao normal”, mas também essa dúvida: será que tudo vai voltar ao normal? Ou ainda com mais inquietude: o que é “o normal”? No meio das preocupações, uma coisa é certa: aconteça o que acontecer, vai haver gente a dizer que tinha a certeza absoluta de que ia ser assim.
José Luís Peixoto

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