Depois, quando a casa com o chien méchant fica para trás, ela rumina sobre esse ódio. Sabe que não é pessoal: qualquer um que chegue perto do portão, qualquer um que passe a pé ou de bicicleta, será a ponta receptora dele. Mas até que ponto esse ódio é sentido? É como uma corrente elétrica, ligada quando um objeto é avistado e desligada quando o objeto sumiu na esquina? Será que os espasmos de ódio continuam a sacudir o cachorro quando ele fica sozinho de novo, ou o ódio se apaga de repente ele volta a um estado de tranquilidade?
Ela passa de bicicleta na frente da casa duas vezes por dia, uma vez a caminho do hospital onde trabalha, uma vez quando termina seu turno. Como suas passagens são tão regulares, o cachorro sabe quando esperá-la: mesmo antes de ela estar visível ele está no portão, ofegando de ansiedade.
Como a casa fica numa ladeira, seu avanço de manhã, subindo, é lento; à tarde, felizmente, ela pode passar depressa.
Pode não saber nada de raças de cachorros, mas tem uma boa ideia da satisfação do cachorro nesses encontros com ela. É a satisfação de dominá-la, a satisfação de ser temido.
O cachorro é macho, não castrado pelo que ela pode ver. Ela não faz a menor ideia se ele sabe que ela é fêmea, se aos olhos dele um ser humano tem de pertencer a um de dois gêneros, correspondentes aos gêneros de cachorros, e portanto se ele sente dois tipos de satisfação ao mesmo tempo: a satisfação de um animal dominando outro animal, a satisfação de um macho dominando uma fêmea.
Como o cachorro sabe que, apesar de sua máscara de indiferença, ela tem medo dele? A resposta: porque ela exala o cheiro do medo, porque não consegue esconder isso. Toda vez que o cachorro avança nela, um arrepio lhe percorre a espinha e uma pulsação de odor se desprende de sua pele, um odor que o cachorro capta imediatamente.
Lança-o num êxtase de raiva, esse sopro de medo que vem do ser do outro lado do portão.
Ela o teme e ele sabe. Duas vezes por dia, pode esperar por isso: a passagem desse ser que tem medo dele, que não consegue esconder seu medo, que exala um cheiro de medo assim como uma cadela exala um cheiro de sexo.
Ela leu Agostinho. Agostinho diz que a prova mais clara de que somos criaturas decaídas está no fato de não conseguirmos controlar os movimentos de nossos corpos. Especificamente, um homem não consegue controlar os movimentos de seu membro viril. Esse membro se comporta como se possuísse vontade própria; até mesmo como se fosse possuído por uma vontade externa.
Ela pensa em Agostinho quando chega ao sopé da ladeira onde fica a casa, a casa com o cachorro.
Será que vai conseguir se controlar dessa vez, terá a força de vontade necessária para evitar exalar o humilhante cheiro de medo? E cada vez que escuta o rosnar no fundo da garganta do cachorro que pode ser tanto um rosnar de raiva como de tesão, cada vez que ela sente o choque dele contra o portão, recebe sua resposta: hoje não.
O chien méchant está fechado num jardim onde não cresce nada além de ervas daninhas. Um dia, ela desce da bicicleta, se apoia no muro da casa, bate na porta, espera e espera, enquanto a poucos metros o cachorro recua e se atira contra a cerca.
São oito da manhã, não é uma hora em que as pessoas batam na porta dos outros. Mesmo assim, a porta se abre um pouquinho. Na luz mortiça, ela divisa um rosto, o rosto de uma velha, com feições abatidas e cabelo grisalho despenteado. “Bom dia”, ela diz em seu francês nada mau. “Posso falar com
a senhora um momento?”
J. M. Coetzee, "Contos morais"
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