quarta-feira, novembro 10

Tenho um gato

Foi na juventude que conheci o gato bem de perto, quando me preparava para os vestibulares da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.


Era noite. Eu estava na minha mesa na pequena sala do apartamento e lia em voz alta o romance Iracema, lia às vezes aos brados para espantar o sono. Então ouvi um ruído brusco de coisa algodoada que entrou pela janela e parou atrás da minha cadeira. Fiquei muda, sentindo o olhar daquela coisa se fixando em mim. Fui me voltando devagar, afetando a calma que estava longe de sentir e dei com um gato malhado, assim espetado nas quatro patas e que me encarava assustado. Eu também assustada. Devagar, aos poucos fomos nos recuperando mas ainda tensos. O modesto apartamento era no primeiro andar de um pequeno prédio cercado pelo casario. A janela da sala dava para o telhado de uma casa velhíssima por onde transitavam os gatos do bairro.

Por onde andam hoje os gatos? Naquele tempo havia gato à beça nos telhados, nos muros. “É que a vida apertou e gato dá um bom cozido”, explicou o jornaleiro. A fome aumentou e o telhado diminuiu, onde estão aqueles espaçosos telhados nos quais eles ficavam tomando sol, caçando passarinho e amando? Os ratos em plena circulação mas e os gatos?!

Pois aquele que entrou de repente era um gato de telhado, as manchas amarelas e pretas no fundo branco do pelocurto. Um visitante da noite? Estendi a mão para acariciá-lo mas cabeça de gato não é cabeça de cachorro — primeira lição que ele deu ao recuar com uma soberba que me espantou. A conquista do gato é difícil, embrulhada, não tem isso de amor repentino: mais um movimento de aproximação e ele fugiria ventando.

Antes de sair a minha mãe tinha deixado na cozinha um copo de leite com açúcar. Em silêncio, calmamente, fui buscar o leite, despejei-o numa tigela e deixei-a diante do gato.

Voltei para minha cadeira para continuar lendo o romance antigo e agora em voz baixa, ele devia preferir o silêncio. Ele ou ela? Sexo de gato não é assim tão nítido como sexo de cachorro, leva um tempo para a descoberta do sexo e da idade.

Gato ou gata vai se chamar Iracema, resolvi. E voltei a atenção para o livro, A casa é sua, avisei. Então ouvi aquele ruído delicado, ele afundara o focinho na tigela e bebia o leite mas não como os cachorros bebem, com sofreguidão, espirrando as gotas em redor: o gato é discreto. Há que amá-lo discretamente, pensei e fiquei sorrindo. Tenho um gato.

“Tudo passa sobre a Terra!” estava escrito no romance que achei triste. Olhei para a outra Iracema que já fazia em silêncio a sua delicada toalete. Apanhei uma almofada e deixei-a assim próxima, Também você vai passar, Iracema?! perguntei em voz baixa. Não sabia ainda que ela permaneceria infinita na memória da minha finitude.
Lygia Fagundes Telles

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