Era noite. Eu estava na minha mesa na pequena sala do apartamento e lia em voz alta o romance Iracema, lia às vezes aos brados para espantar o sono. Então ouvi um ruído brusco de coisa algodoada que entrou pela janela e parou atrás da minha cadeira. Fiquei muda, sentindo o olhar daquela coisa se fixando em mim. Fui me voltando devagar, afetando a calma que estava longe de sentir e dei com um gato malhado, assim espetado nas quatro patas e que me encarava assustado. Eu também assustada. Devagar, aos poucos fomos nos recuperando mas ainda tensos. O modesto apartamento era no primeiro andar de um pequeno prédio cercado pelo casario. A janela da sala dava para o telhado de uma casa velhíssima por onde transitavam os gatos do bairro.
Por onde andam hoje os gatos? Naquele tempo havia gato à beça nos telhados, nos muros. “É que a vida apertou e gato dá um bom cozido”, explicou o jornaleiro. A fome aumentou e o telhado diminuiu, onde estão aqueles espaçosos telhados nos quais eles ficavam tomando sol, caçando passarinho e amando? Os ratos em plena circulação mas e os gatos?!
Pois aquele que entrou de repente era um gato de telhado, as manchas amarelas e pretas no fundo branco do pelocurto. Um visitante da noite? Estendi a mão para acariciá-lo mas cabeça de gato não é cabeça de cachorro — primeira lição que ele deu ao recuar com uma soberba que me espantou. A conquista do gato é difícil, embrulhada, não tem isso de amor repentino: mais um movimento de aproximação e ele fugiria ventando.
Antes de sair a minha mãe tinha deixado na cozinha um copo de leite com açúcar. Em silêncio, calmamente, fui buscar o leite, despejei-o numa tigela e deixei-a diante do gato.
Voltei para minha cadeira para continuar lendo o romance antigo e agora em voz baixa, ele devia preferir o silêncio. Ele ou ela? Sexo de gato não é assim tão nítido como sexo de cachorro, leva um tempo para a descoberta do sexo e da idade.
Gato ou gata vai se chamar Iracema, resolvi. E voltei a atenção para o livro, A casa é sua, avisei. Então ouvi aquele ruído delicado, ele afundara o focinho na tigela e bebia o leite mas não como os cachorros bebem, com sofreguidão, espirrando as gotas em redor: o gato é discreto. Há que amá-lo discretamente, pensei e fiquei sorrindo. Tenho um gato.
“Tudo passa sobre a Terra!” estava escrito no romance que achei triste. Olhei para a outra Iracema que já fazia em silêncio a sua delicada toalete. Apanhei uma almofada e deixei-a assim próxima, Também você vai passar, Iracema?! perguntei em voz baixa. Não sabia ainda que ela permaneceria infinita na memória da minha finitude.
Lygia Fagundes Telles
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