Diogo Ascêncio Cortes Ribera Flores - conforme constava do seu registo de baptismo - tinha quinze anos de idade quando o pai o levou pela primeira vez a ver uma tourada. Foram a Sevilha, na abertura da Feria de San Miguel, a feira de Setembro de 1915, touros de Santa Coloma, cartaz com José Gómez Ortega, dito Joselito "El Gallo", e Juan Belmonte. A sua avó paterna, Gloria Ribera, era sevilhana, filha de pai e mãe sevilhanos.
Fora em Sevilha que o pai de Diogo, Manuel Custódio Ribera Flores, vivera parte da sua infância e juventude, vinte anos atrás. Aí se habituara a regressar, em vida de sua mãe e na companhia dela, para visitar os avós, ano sim, ano não. Mas, desta vez, muitos anos depois e já nem os seus avós nem a sua mãe eram vivos, tratava-se de uma excursão de homens, para os touros e para a farra de San Miguel. Manuel Custódio escolhera viajar apenas com o filho mais velho, dois amigos de sempre, companheiros do campo, da mesa e das tertúlias no café Central de Estremoz, um moço de estrebaria que guiava a carruagem e tratava das cavalgaduras, mais o seu criado pessoal, para se ocupar das roupas e do expediente ocasional.
A mãe ficara na quinta, a vê-los partir da entrada da casa, às primeiras horas da manhã daquela quinta-feira do final de Setembro, ainda o sol mal dispersara a névoa suspensa sobre a charca em frente ao terreiro da casa, onde o primeiro restolhar das asas dos patos afastava os gritos nocturnos das corujas e das rãs. Diogo não estava feliz por abandonar tudo aquilo que lhe era tão familiar, o seu território de intimidade e de refúgio, abandonar a mãe, que adorava, e o irmão mais novo, Pedro, que deixara ainda adormecido no quarto que ambos partilhavam, com um sentimento de inveja e de tristeza. Custava-lhe pensar que não iria passar o final daquelas férias de Verão no monte, a armadilhar a rede de pássaros para caçar tordos no olival, a explorar a ribeira que atravessava a herdade, caminhando pelo meio da água de calças arregaçadas assustando as rãs e os pequenos peixes, que não iria visitar o velho moinho de água abandonado onde uma vez matara uma cobra à pedrada, que não iria passear-se até onde o rebanho pastava, no limite da propriedade, num terreno de arribas escarpadas sobre a ribeira e de pedregulhos enormes que pareciam ter caído do céu e terem ficado para sempre enterrados na terra, onde o pai gostava de caçar perdizes rápidas como um sopro e silenciosas como um pensamento, e onde ele gostava de passar longas horas à conversa com o pastor, o Virgolino, que distinguia ao longe todos os pássaros, escutava todos os sons num raio de quilómetros, sabia as histórias de toda a gente, desde os "antigos" até aos vivos, e, enquanto falava, ia desenrolando um lenço sujo que sacava do bolso do colete e lá de dentro tirava um pedaço de queijo duro e seco de ovelha ou um resto de chouriço que cortava minuciosamente com o seu canivete sempre à mão e dividia com ele.
A mãe fizera-lhe um sinal da cruz na testa, apertara-o contra o seu xaile de lã grossa, dissera-lhe "deixa-me olhar para ti, outra vez, meu filho", e ele pousara-lhe um beijo na mão fria daquela manhã, hoje tão distante na sua memória.
Em boa verdade, nem o pai nem a mãe lhe tinham pedido a sua opinião para aquela viagem. Ninguém lhe perguntara se ele queria ir ou se preferia ficar. Um dia, estavam à mesa a jantar e o pai anunciou simplesmente que iria à Feria de Sevilha com o Joaquim da Vila, comerciante em Estremoz, e o dr. António Sacramento, latifundiário nos arredores e juiz na comarca. E, então, fixara-o como se há muito não o visse e perguntara:
- E tu, Diogo, que idade tens agora?
- Fiz quinze em Junho, meu pai.
- Hum, já tens idade para te fazeres homem. Vens connosco também.
Ele olhara para a mãe em busca de auxílio, mas ela baixara os olhos, como se o pai tivesse dito alguma coisa que a envergonhasse. E assim a sua partida fora decidida, sem mais conversa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário