quinta-feira, novembro 4

Quem te contou, miúda?

Nada a não ser de tempos a tempos um arrepio nas árvores e cada folha uma boca numa linguagem sem relação com as outras, ao princípio faziam cerimónia, hesitavam, pediam desculpa, e a seguir palavras que se destinavam a ela e de que se negava a entender o sentido, há quantos anos me atormentam vocês, não tenho satisfações a dar-vos, larguem-me, isto em criança, em África, e depois em Lisboa, a mãe chegava-se ao armário da cozinha onde guardava os remédios

– São as vozes Cristina?

aqui na Clínica silêncio, com as injecções as coisas desinteressam-se de mim, uma frase, às vezes, mas sem ameaças nem zangas, o nome apenas

– Cristina

uma amabilidade pressurosa

– Como estás Cristina?

ou uma queixa

– Nunca mais nos ligaste

a cama, a mesa e as cadeiras quase objectos de novo, embora se perceba um ressentimento à espera, não se atrevia a tocar-lhes, deitava-se pesando o menos possível na esperança que a almofada ou os lençóis não a sentissem e pode ser que se distraiam e não sintam, não devem sentir porque nenhum

– Como estás Cristina?

desde há semanas, tirando as folhas num capricho do vento e as bocas de regresso um instante, o que me incomodam as bocas, o director da Clínica

– Ando a pensar dar-lhe uns dias de licença na condição de tomar os comprimidos

e no interior do

– Ando a pensar dar-lhe uns dias de licença na condição de tomar os comprimidos

não havia a sombra de uma sugestão, um conselho, a ordem

– Tens de matar o teu pai com a faca

graças a Deus ausente, quase paz se houvesse paz e não há, há pretos a correrem em Luanda, camionetas de soldados, tiros, gritos numa ambulância a arder na praia, sob pássaros que se escapavam, e ao terminar de arder nenhum grito, o pai foi padre, não era padre já e a mãe zangada

– Quem te contou isso miúda?
António Lobo Antunes, "Comissão das Lágrimas"

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