dacar, 25 de setembro de 1960
Exatamente seis horas após o embarque, por entre uma nesga de nuvem, avistamos lá embaixo Dacar, costa da África. O avião perde altura. A aeromoça pede que se aperte o cinto, ficou convencionado que em caso de acidente será melhor morrer amarrado do que solto. Como se já não tivéssemos as nossas amarras em vida…
Eis que a alma ainda lá estava acima das nuvens quando o corpo já estremecia sobre as rodas da aterrissagem, se me perguntarem agora qual a prova mais evidente da existência da alma, responderei prontamente: voe a jato! É na aterrissagem de um avião a jato que se pode então sentir (e com que precisão!) a presença de ambos, corpo e alma.
Com a total perplexidade da alma — que não sofre a ação da gravidade — ao deslocar-se do corpo que desce na linha quase vertical.
Uma velha inglesa perdeu os óculos debaixo do banco. E enquanto ajudo a procurá-los ela me pergunta para onde estou indo. Para a China, respondo. Ela achou os óculos.
Descemos agora a escada do avião e que lembra a própria escada de Jacó ligando a terra ao céu. “Você então é comunista?”, ela perguntou e tive vontade de rir porque essa mesma pergunta me fez o jornalista Samuel Wainer lá em São Paulo. Eu ia apressada pela rua Marconi quando ele me fez parar, “Aonde vai com tanta pressa?”. Vou tirar meu passaporte para a China! respondi. Ele ficou me olhando meio perplexo, “Mas você é comunista?”. Achei melhor rir, Não, não sou comunista, sou assim subversiva mas não comunista, nem eu nem os meus companheiros de viagem, é uma delegação de escritores convidados para as festas de outubro, desconfio que foi o Jorge Amado que indicou os nomes e daí lá vai a delegação e eu no meio… Samuel Wainer me tomou pelo braço “Vamos tomar ali um café”, convidou. E me fez a proposta, que tal se eu escrevesse crônicas sobre a China e que ele publicaria no jornal Última Hora, hein?! Combinaria a melhor forma das crônicas chegarem ao jornal que ele dirigia. E então?! Não era uma boa ideia? A crônica poderia ter este título, Passaporte para a China.
E agora, Dacar. Lá vou eu com a máquina fotográfica pendurada no pescoço e a cara assim do turista que sai do avião com o mesmo ar aparvalhado de um frango meio zonzo saindo do jacá.
Tomo o café da manhã no bar do aeroporto. Na mesa estão alguns dos meus companheiros de viagem, a delegação dos intelectuais convidados pelo governo chinês: o escritor Peregrino Júnior, da Academia Brasileira de Letras (abl) e presidente da União Brasileira de Escritores (ube). Raymundo de Magalhães Júnior, também da abl. Helena Silveira, contista e jornalista, o escritor Adão Pereira Nunes, a atriz Maria Della Costa, o empresário Sandro Polônio e esta contadora de histórias.
O café — com um remotíssimo sabor de café — é servido pelos nativos, negros muito altos e esguios, o fez na cabeça e os camisolões brancos que lhes chegam até os pés. Calçam sandálias, gesticulam muito e falam um francês estranho, quase incompreensível.
Creio que os negros de Dacar são os mais belos que já vi: o negrume é puro, sem mistura e tão elegantes nos seus trajes típicos! As mulheres usam longos vestidos de cores vivas, as saias rodadas. Trazem muitas vezes os seios descobertos e colares e enfeites vistosos nos braços e na cabeleira caprichosamente trançada. Algumas usam túnicas entremeadas de fios dourados. Gostaria de rever o mercado de Dacar e onde se vende tudo em meio a cheiros violentos, gostaria, sim, de rever as agitadas ruas com seus vendedores oferecendo espalhafatosamente aos turistas os pentes de marfim, as máscaras esculpidas na madeira, almofadões de couro, panos, bolsas… Rever a loura europeia passando com seu bebê rosado e rever a nativa com seu menino fortemente amarrado às costas, muito ereta e luzidia, arrastando a túnica colorida com a nobreza que nos faz pensar em rainhas negras de um antigo reino extinto.
A voz anuncia em francês o retorno ao avião. Sigo pelo aeroporto no passo do constrangimento, ah! seria bom ficar mais tempo em Dacar mas é preciso prosseguir e ser amável com o comissário de bordo, um jovem sorridente que nos deseja uma boa viagem! Abro um sorriso amarelo e penso no poema de Carlos Drummond de Andrade, Cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,/ depois morreremos de medo/ e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Apagar os cigarros. Amarrar os cintos. Alguns passageiros parecem tranquilos como se estivessem nas respectivas cadeiras de balanço. Outros, como o gigante Atlas que sustentava o mundo nos ombros, estão tensos porque sustentam nos ombros o avião.
Olho à minha direita e dou com a velha inglesa que me examina com a expressão meio intrigada, Pois é, minha senhora, agora não sou de nenhum partido, agora eu sou de Deus.
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