sexta-feira, novembro 19

Lançamento do Torre de Babel


O lançamento do edifício Torre de Babel foi feito com grande estardalhaço nos principais papiros da época. Anúncios de rolo inteiro em todas as línguas conhecidas. Como todos só conheciam uma língua, foi mais fácil. Poucos sabem que, na época, todo o mundo falava búlgaro. Você chegava em qualquer ponto do mundo civilizado — que naquele tempo ficava entre o Tigre e o Eufrates — e se comunicava em búlgaro. Era entendido imediatamente. Não havia o perigo de você pedir um quarto na estalagem e acabar numa estrebaria. Ou de pedir para o garçom “pão ázimo e leite coalhado” e ele trazer leite ázimo e pão coalhado e ainda ficar rindo atrás da coluna. Ou então você pedir uma sopa e o garçom trazer a cabeça de um profeta. Era tudo em búlgaro. Só o que variava de região para região era o sotaque e o nome para tangerina. Outra vantagem era que não existiam tradutores. Apesar de hoje, muitas vezes, a gente perder a paciência, atirar o livro longe e declarar que o tradutor é certamente a mais antiga das profissões, ou pelo menos filho dela. 

E aconteceu que foi lançado o Torre de Babel. Quem comprasse na planta daria dez cabritos, trezentos dinheiros, dois camelos malhados e uma escrava núbia de entrada, sete parcelas de cinquenta dinheiros e cem cântaros de azeite durante a construção. Dezessete camelos núbios e vinte escravas malhadas na entrega das chaves e o saldo em prestações mensais de mirra, ouro, incenso, quibe cru e cozido, esfiha e todas as suas posses, olho por olho e dente por dente.

, O apartamento mais caro, claro, era o de cobertura, no milésimo andar. Com solário, piscina térmica e amplos salões varridos pelos sete ventos, o que dispensaria o serviço de faxineira, com vista para a África, Europa, Ásia, América e, em dias claros, Oceania. E com visitas regulares de Jeová para o café da manhã incluídas no preço. Aliás, uma das frases do anúncio de lançamento era esta: “Você vai dar graças a Deus por ter comprado seu apartamento no novo Torre de Babel — pessoalmente!”. 

E aconteceu que começaram as perfurações do solo para os fundamentos do Torre de Babel. E das escavações jorrou um líquido negro e malcheiroso que a todos enojou. E o terreno foi dado como inútil e as escavações transferidas para outro local, e o custo da transferência incluído no preço dos apartamentos. E eis que houve muita lamentação entre os compradores. Que elevaram suas lamúrias a Jeová, mas de nada adiantou. ,

E aconteceu que pouco a pouco foi se erguendo o imponente edifício com o trabalho escravo de homens do Nordeste, da tribo dos marmitas. E muitos cantavam a audácia do projeto, mas outros ergueram suas vozes a Jeová em protesto. Pois do que adiantará ao homem, ó Senhor, chegar aos céus e viver em iniquidade, e afinal, esta é ou não é uma zona residencial? Mas embora todos falassem a mesma língua era como se os grandes engenheiros nada ouvissem. E eis que tomava forma o primeiro espigão no silêncio de Jeová. Alguns conservadoristas tentaram sensibilizar a prefeitura mas o prefeito, parece, tinha dinheiro no negócio e os insubmissos foram pulverizados e seus restos misturados à argamassa, e as obras prosseguiram. 

E aconteceu que o comprador da cobertura, um magnata do lêvedo, quis saber:

 — Está tudo muito bem, mas como é que eu chego, todos os dias, no meu apartamento? Pela escada levaria, nos meus cálculos, 237 anos cada vez, e eu sou um homem ocupado. 

E disse o incorporador: 

— Vamos instalar ascensoristas. Escravos rápidos e fortes com capacidade para duas pessoas ou 160 quilos cada um, que transportarão os moradores sobre os ombros até os seus andares, cantarolando seleções leves de André Kostelanetz todo o tempo. 

Mas a insatisfação crescia. Naquele tempo as instalações sanitárias eram em casinhas no fundo do quintal, e ninguém concordava com a ideia de se construir um edifício de cinquenta andares atrás do Torre de Babel. E os constantes reajustes nas parcelas, numa época de restrição de escravas núbias, se tornavam insustentáveis e eram cada vez maiores as lamúrias dirigidas a Jeová. 

E eis que Jeová, cuja misericórdia infinita afinal tem um limite, se fez ouvir. E vendo que havia confusão entre os homens resolveu aumentar a confusão. Decretou que, dali por diante, não haveria uma e sim várias línguas, e que nenhuma delas seria a de Jeová. Hoje Deus só fala búlgaro e, pensando bem, isso não tem ajudado muito a Bulgária. E disse Jeová que construtores e proprietários não mais se entenderiam a não ser na hora de enganar o inquilino. E que os homens se espalhariam pela terra falando línguas diferentes, e que a proliferação de línguas traria a discórdia, as guerras e, pior, a dublagem. E assim foi feito. 

E eis que os homens prostraram-se ao chão diante da ira de Jeová, e um homem disse para seu vizinho: 

— Mais, ça c’est ridicule! 

E seu vizinho, intrigado, respondeu: 

— What? 

E perto dali alguém tossiu e inventou o alemão.
Luis Fernando Verissimo

Nenhum comentário:

Postar um comentário