domingo, novembro 21

Uma viagem com minha filha ao País dos Biscoitos

É de manhã, muito cedo. Enquanto escrevo, ouço alguém arranhando a porta do meu escritório. Vou abrir. A minha filha de três anos entra, muito direita e sorridente, exibindo o vestidinho azul com que foi ao casamento do primo. É como abrir a porta a um arco-íris, a um rio carinhoso, a um ciclone de bolso. Kianda senta-se à minha secretária e no mesmo instante desmonta meu dia. 

— Você tem biscoitos? — pergunta com voz macia. 

— Não tenho. Aliás, sua mãe não me autoriza a comer biscoitos enquanto estou trabalhando. 

— Vamos fugir? — propõe.

— Para onde? 

— Para o País dos Biscoitos. Lá, é proibido não comer biscoitos…

— Já gostei. E que mais?…

No País dos Biscoitos, acrescenta a intrusa, os meninos só podem comer o bolo de chocolate depois de terminarem os biscoitos. Além disso, a polícia multa com biscoitos quem for apanhado a trabalhar sem um pratinho de biscoitos ao lado.


Pouco antes de Kianda me interromper eu estava lendo o post de um amigo angolano, no Facebook. Segundo o meu amigo, no Calulo, pequena cidade no interior de Angola, uma senhora foi perseguida por uma multidão, acusada de ser bruxa. As pessoas corriam atrás dela com pedras e paus. A mulher terá conseguido escapar ao linchamento transformando-se numa porta. A turba passou através da porta, sem se aperceber da ilusão, e no instante seguinte estavam correndo numa praia, a trezentos quilômetros de distância do Calulo.

A mim, o que me convinha era uma casa com portas instaladas por essa bruxa. A primeira das portas abriria para a luminosa mansidão do Índico, na Ilha de Moçambique. Atravessando a segunda eu estaria no quintal da minha infância, no Huambo, em Angola. Abrindo a terceira, entraria na Livraria da Travessa do Leblon. A quarta daria para o meu apartamento na Lapa, em Lisboa, onde ainda guardo a maioria dos meus livros. Finalmente, a quinta porta poderia levar-me a mim e à minha filha até ao País dos Biscoitos. Lá, além de comermos os melhores biscoitos do mundo, até não podermos mais, estaríamos a salvo de todos os perigos e incoerências que atormentam o tempo e universo em que nos calhou viver. Seria muito bom. 

— Lembra-te, no País dos Biscoitos não tem coronavírus — assegura Kianda, muito séria, brandindo o argumento definitivo.

Era desnecessário porque, a essa altura, já estou totalmente convencido. Ajudo-a a arrumar numa pequena mochila tudo aquilo de que necessitará no País dos Biscoitos. Não é muita coisa. Uma garrafinha com água. Uma muda de roupa. A mãe chega no preciso instante em que nos preparamos para fugir, e leva-a para a escola — com a mochila. Fico sozinho, pensando na infinita responsabilidade que é a de tentar criar um arco-íris. Um rio. Um ciclone em miniatura. Como educar um rio? Como deixar que um ciclone cresça e se desenvolva saudavelmente, sem que engula tudo ao seu redor? Ou sem que o engulam a ele?

Olho para Kianda e sinto que não tenho mãos suficientes para a amparar e proteger. A falta que me faz a casa de cinco portas. Caramba, só queria uma porta! Ou um mapa, ao menos um mapa, para o País dos Biscoitos.

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