quinta-feira, outubro 31
A irreparável fuga do tempo
Justamente aquela noite iria começar para ele a irreparável fuga do tempo. Até então ele passara pela despreocupada idade da primeira juventude, uma estrada que na meninice parece infinita, onde os anos escoam lentos e com passo leve, tanto que ninguém nota a sua passagem. Caminha-se placidamente, olhando com curiosidade ao redor, não há necessidade de se apressar, ninguém empurra por trás e ninguém espera, também os companheiros procedem sem preocupações, detendo-se frequentemente para brincar.
Das casas, a porta, a gente grande cumprimenta-se benigna e aponta para o horizonte com sorrisos de cumplicidade; assim o coração começa a bater por heroicos e suaves desejos, saboreia-se a véspera das coisas maravilhosas que aguardam mais adiante; ainda não se veem, não, mas é certo, absolutamente certo, que um dia chegaremos a elas.
Falta muito? Não, basta atravessar aquele rio lá longe, no fundo, ultrapassar aquelas verdes colinas. Ou já não se chegou, por acaso? Não são talvez estas árvores, estes prados, esta casa branca o que procurávamos? Por alguns instantes tem-se a impressão que sim, e quer-se parar ali. Depois ouve-se dizer que o melhor está mais adiante, e retoma-se despreocupadamente a estrada. Assim, continua-se o caminho numa espera confiante, e os dias são longos e tranquilos, o sol brilha alto no céu e parece não ter mais vontade de desaparecer no poente.
Mas a uma certa altura, quase instintivamente, vira-se para trás e vê-se que uma porta foi trancada às nossas costas, fechando o caminho de volta. Então sente-se que alguma coisa mudou, o sol não parece mais imóvel, desloca-se rápido, infelizmente, não dá tempo de olhá-lo, pois já se precipita nos confins do horizonte, percebe-se que as nuvens não estão mais estagnadas nos golfos azuis do céu, fogem, amontoando-se umas sobre as outras, tamanha é sua afoiteza; compreende-se que o tempo passa e que a estrada, um dia, deverá inevitavelmente acabar.
A um certo momento batem às nossas costas um pesado portão, fecham-no a uma velocidade fulminante, e não há tempo de voltar.
Será então como um despertar. Olhará à sua volta, incrédulo; depois ouvirá um barulho de passos vindo de trás, verá as pessoas, despertadas antes dele, que correm afoitas e o ultrapassam para chegar primeiro.
Ouvirá a batida do tempo escandir avidamente a vida. Nas janelas não mais aparecerão figuras risonhas, mas rostos imóveis e indiferentes. E se perguntar quanto falta do caminho, ainda lhe apontarão o horizonte, mas sem nenhuma bondade ou alegria. Entretanto, os companheiros se perderão de vista, um porque ficou para trás, esgotado, outro porque desapareceu antes e já não passa de um minúsculo ponto no horizonte.
Além daquele rio — dirão as pessoas —, mais dez quilômetros, e terá chegado. Ao contrário, não termina nunca, os dias se tornam cada vez mais curtos, os companheiros de viagem, mais raros, nas janelas estão apáticas figuras pálidas que balançam a cabeça.
Então já estará cansado, as casas, ao longo da rua, terão quase todas as janelas fechadas, e as raras pessoas visíveis lhe responderão com um gesto desconsolado: o que era bom ficou para trás, muito para trás, e ele passou adiante, sem dar por isso. Ah, é demasiado tarde para voltar, atrás dele aumenta o fragor da multidão que o segue, impelida pela mesma ilusão, mas ainda invisível, na branca estrada deserta.
Ai, se pudesse ver a si mesmo, como estará um dia, lá onde a estrada termina, parado na praia do mar de chumbo, sob um céu cinzento e uniforme, sem nenhuma casa ao redor, nenhum homem, nenhuma árvore, nem mesmo um fio de erva, tudo assim desde um tempo imemorável.
Dino Buzzati, "Naquele exato momento"
Das casas, a porta, a gente grande cumprimenta-se benigna e aponta para o horizonte com sorrisos de cumplicidade; assim o coração começa a bater por heroicos e suaves desejos, saboreia-se a véspera das coisas maravilhosas que aguardam mais adiante; ainda não se veem, não, mas é certo, absolutamente certo, que um dia chegaremos a elas.
Falta muito? Não, basta atravessar aquele rio lá longe, no fundo, ultrapassar aquelas verdes colinas. Ou já não se chegou, por acaso? Não são talvez estas árvores, estes prados, esta casa branca o que procurávamos? Por alguns instantes tem-se a impressão que sim, e quer-se parar ali. Depois ouve-se dizer que o melhor está mais adiante, e retoma-se despreocupadamente a estrada. Assim, continua-se o caminho numa espera confiante, e os dias são longos e tranquilos, o sol brilha alto no céu e parece não ter mais vontade de desaparecer no poente.
Mas a uma certa altura, quase instintivamente, vira-se para trás e vê-se que uma porta foi trancada às nossas costas, fechando o caminho de volta. Então sente-se que alguma coisa mudou, o sol não parece mais imóvel, desloca-se rápido, infelizmente, não dá tempo de olhá-lo, pois já se precipita nos confins do horizonte, percebe-se que as nuvens não estão mais estagnadas nos golfos azuis do céu, fogem, amontoando-se umas sobre as outras, tamanha é sua afoiteza; compreende-se que o tempo passa e que a estrada, um dia, deverá inevitavelmente acabar.
A um certo momento batem às nossas costas um pesado portão, fecham-no a uma velocidade fulminante, e não há tempo de voltar.
Será então como um despertar. Olhará à sua volta, incrédulo; depois ouvirá um barulho de passos vindo de trás, verá as pessoas, despertadas antes dele, que correm afoitas e o ultrapassam para chegar primeiro.
Ouvirá a batida do tempo escandir avidamente a vida. Nas janelas não mais aparecerão figuras risonhas, mas rostos imóveis e indiferentes. E se perguntar quanto falta do caminho, ainda lhe apontarão o horizonte, mas sem nenhuma bondade ou alegria. Entretanto, os companheiros se perderão de vista, um porque ficou para trás, esgotado, outro porque desapareceu antes e já não passa de um minúsculo ponto no horizonte.
Além daquele rio — dirão as pessoas —, mais dez quilômetros, e terá chegado. Ao contrário, não termina nunca, os dias se tornam cada vez mais curtos, os companheiros de viagem, mais raros, nas janelas estão apáticas figuras pálidas que balançam a cabeça.
Então já estará cansado, as casas, ao longo da rua, terão quase todas as janelas fechadas, e as raras pessoas visíveis lhe responderão com um gesto desconsolado: o que era bom ficou para trás, muito para trás, e ele passou adiante, sem dar por isso. Ah, é demasiado tarde para voltar, atrás dele aumenta o fragor da multidão que o segue, impelida pela mesma ilusão, mas ainda invisível, na branca estrada deserta.
Ai, se pudesse ver a si mesmo, como estará um dia, lá onde a estrada termina, parado na praia do mar de chumbo, sob um céu cinzento e uniforme, sem nenhuma casa ao redor, nenhum homem, nenhuma árvore, nem mesmo um fio de erva, tudo assim desde um tempo imemorável.
Dino Buzzati, "Naquele exato momento"
Do velho livreiro
Não procures os sucessos. Num sebo se pode encontrar também os sucessos, mas incomparavelmente as delícias, verdadeiras guloseimas, esquecidas pelo tempo e editores. Nas prateleiras envelhecidas, estão o ontem e o anteontem do homem sobre a vida.
O silêncio da floresta
Tem consistência física,
espessamente doce,
o silêncio noturno da floresta.
Não é como o do vento e vastidão,
cujos dentes de neve
morderam a minha solidão.
Nem como o silêncio aterrador
(no seu âmago o tempo brilha imóvel)
do deserto chileno de Atacama,
onde, um entardecer,
estirado entre areia e pedras,
escutei cheio de assombro
o latir do meu próprio coração.
O silêncio da floresta é sonoro:
os cânticos dos pássaros da noite
fazem parte dele, nascem dele,
são a sua voz aconchegante.
Sozinho no centro da noite amazônica,
escuto o poder mágico do silêncio,
agora quando os pássaros
conversam com as estrelas,
e recito silenciosamente
o nome lindo da mulher que eu amo.
Thiago de Mello
espessamente doce,
o silêncio noturno da floresta.
Não é como o do vento e vastidão,
cujos dentes de neve
morderam a minha solidão.
Nem como o silêncio aterrador
(no seu âmago o tempo brilha imóvel)
do deserto chileno de Atacama,
onde, um entardecer,
estirado entre areia e pedras,
escutei cheio de assombro
o latir do meu próprio coração.
O silêncio da floresta é sonoro:
os cânticos dos pássaros da noite
fazem parte dele, nascem dele,
são a sua voz aconchegante.
Sozinho no centro da noite amazônica,
escuto o poder mágico do silêncio,
agora quando os pássaros
conversam com as estrelas,
e recito silenciosamente
o nome lindo da mulher que eu amo.
Thiago de Mello
Envelhecer com graça
Ficou sentada, ouvindo o silêncio. Um pardal trilou.
Pensou: vou dar uma olhada naquele poema provençal de Pound; isso, afinal, não se pode chamar de trabalho.
Em cima da mesa havia pilhas de livros de referência, pastas de recortes e, de um dos lados, estantes que subiam até o teto. O livro estava aberto, ao lado do computador.
É, concordo com isso, pensou Sarah. Sarah Durham. Um nome bem sensato para uma mulher sensata.
O livro onde encontrou essas frases fora comprado na banca de uma feira ao ar livre, memórias de uma moça da sociedade antes famosa pela beleza, escrito em sua velhice e publicado quando a autora era quase centenária, vinte anos atrás. Estranho ter escolhido esse livro, pensou Sarah. Houve tempo em que nem abriria um livro escrito por um velho: nada a ver com ela, pensaria. Mas existe algo mais estranho do que o modo como os livros que refletem nossa condição ou estágio da vida acabam se insinuando em nossas mãos?
Afastou o livro, pensou que os versos de Pound podiam ficar para depois, e resolveu gozar uma noite em que nada se devia esperar de sua parte. Uma noite de abril, o céu ainda claro. Aquela sala era calma, geralmente calmante e, assim como os três outros cômodos do apartamento, guardava trinta anos de memórias. Salas onde se viveu muito tempo acabam parecendo praias sujas: difícil saber de onde veio este ou aquele caco.
Doris Lessing, "Amor, de novo"
Pensou: vou dar uma olhada naquele poema provençal de Pound; isso, afinal, não se pode chamar de trabalho.
Em cima da mesa havia pilhas de livros de referência, pastas de recortes e, de um dos lados, estantes que subiam até o teto. O livro estava aberto, ao lado do computador.
Envelhecer com graça… é só seguir os marcos do caminho. Pode-se dizer que as instruções estão contidas num roteiro invisível que pouco a pouco vai se tornando legível, à medida que a vida o vai expondo. Então, é só dizer as palavras adequadas. No fim das contas os velhos não se dão mal. O orgulho é uma grande coisa, e as atitudes e estoicismos necessários vêm fáceis, porque os jovens não sabem — isso lhes é ocultado — que a carne murcha em torno de um cerne imutável. Os velhos compartilham ironias próprias a fantasmas num festim, em que um enxerga o outro, invisíveis para os outros convidados, cujas posturas e expressões observam, sorrindo, recordando.
A maioria das pessoas em vias de envelhecimento assinaria embaixo desse conjunto de frases plácidas, cheias de autorrespeito, sentindo-se bem representada e até mesmo defendida por elas.
É, concordo com isso, pensou Sarah. Sarah Durham. Um nome bem sensato para uma mulher sensata.
O livro onde encontrou essas frases fora comprado na banca de uma feira ao ar livre, memórias de uma moça da sociedade antes famosa pela beleza, escrito em sua velhice e publicado quando a autora era quase centenária, vinte anos atrás. Estranho ter escolhido esse livro, pensou Sarah. Houve tempo em que nem abriria um livro escrito por um velho: nada a ver com ela, pensaria. Mas existe algo mais estranho do que o modo como os livros que refletem nossa condição ou estágio da vida acabam se insinuando em nossas mãos?
Afastou o livro, pensou que os versos de Pound podiam ficar para depois, e resolveu gozar uma noite em que nada se devia esperar de sua parte. Uma noite de abril, o céu ainda claro. Aquela sala era calma, geralmente calmante e, assim como os três outros cômodos do apartamento, guardava trinta anos de memórias. Salas onde se viveu muito tempo acabam parecendo praias sujas: difícil saber de onde veio este ou aquele caco.
Doris Lessing, "Amor, de novo"
quarta-feira, outubro 30
Sem nada de meu
Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.
Rui Knopfli, "Mangas Verdes com Sal"
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.
Rui Knopfli, "Mangas Verdes com Sal"
Olhar do cão
A minha vida é sempre assim, antes e depois. E foi uma coisa que até podia ser literária. O olhar de um cão. O que me fez pensar no que andamos aqui a fazer foi o olhar de um cão. Era um cão abandonado que os meus pais recolheram e trataram, e a certa altura o veterinário disse que era impossível. Decidiu-se eutanasiá-lo. E eu, claro, não queria ir. O cão não me era muito próximo, tenho uma memória que nunca mais apaga e sabia que ia ficar com aquilo. Mas por qualquer motivo começou a encostar-se a mim e decidi que ia com ele até ao veterinário e depois não assistia. Mas lá, pior, pôs a cabeça sobre o meu colo, de forma impositiva. Tentaram tirá-lo e ele insistia. E eu disse: fico. Foi muito pacífico, muito belo mas naquele momento entre levar a injeção e morrer ele inclinou a cabeça para mim, com um olhar... O olhar dos cães é muito expressivo, mas era um olhar inquietante. E eu, durante um ano, dois, fiquei com o olhar do cão. Intrigou-me. E um dia estava naquelas minhas defesas - das mulheres, dos negros, dos ciganos, de todos os excluídos - e percebi: "Há aqui um grupo enorme de desprotegidos que nem sequer considero, que são os outros animais."
Dulce Maria Cardoso
Conto em letras garrafais
Todos os dias esvaziava uma garrafa, colocava dentro sua mensagem, e a entregava ao mar.
Nunca recebeu resposta.
Mas tornou-se alcoólatra.
Marina Colasanti, "Contos de amor rasgados"
Nunca recebeu resposta.
Mas tornou-se alcoólatra.
Marina Colasanti, "Contos de amor rasgados"
O menino que escrevia versos
De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(Versos do menino que fazia versos)
- Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
- Há antecedentes na família?
- Desculpe, doutor?
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava-a bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:
- Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor. Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
- São meus versos, sim.
O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?
Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
- O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.
Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.
Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
- Dói-te alguma coisa?
- Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Esta a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
- E o que fazes quando te assaltam essas dores?
- O que melhor sei fazer, excelência.
- E o que é?
- É sonhar.
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu--se, acarinhando o braço da mãe.
O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:
- Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clínica psiquiátrica.
A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.
Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendidos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.
- Não continuas a escrever?
- Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida - disse, apontando um novo caderninho - quase a meio.
O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.
- Não temos dinheiro, fungou a mãe entre soluços.
- Não importa, respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica que o menino seria sujeito a devido tratamento.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto de internamento do menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração.
Mia Couto, "O Fio das Missangas"
terça-feira, outubro 29
As ondas
Da parte de trás da casa, Isaku ficou olhando para a trilha. O topo das árvores balançava ao vento enquanto o sol se punha. Apenas o marulho das ondas quebrava o profundo silêncio que envolvia a aldeia. Cada um dos habitantes da aldeia estava escondido dentro de casa.
Ele viu movimento entre os troncos das árvores, e logo em seguida dois homens apareceram no alto da trilha. Um deles usava um longo cajado para se apoiar ao caminhar, o outro o ajudava a descer pela trilha. O homem com o cajado tinha uma perna cortada na altura do joelho.
Aqueles homens não se pareciam nem um pouco com a imagem que Isaku fazia de um agente de companhia de transporte. Sem dúvida eles não iriam enviar um homem deficiente para realizar aquele tipo de trabalho. Além disso, aqueles homens pareciam ser pobres, suas roupas eram pouco mais que farrapos.
Os dois homens pararam alguns metros adiante, olhando alternadamente para a aldeia e para o mar, antes de se deixar cair de joelhos no chão, soluçando.
— Alguém voltou da servidão — disse a mãe dele, apertando o passo.
O pai de Isaku tinha mais um ano de contrato, ainda, portanto não era ele. Isaku seguiu a mãe e os outros da aldeia. Os dois homens estavam agora sentados no chão, os rostos de um tom escuro de vermelho, as faces encovadas e magras. Isaku não reconheceu nenhum dos dois homens, que deviam estar na casa dos quarenta, um completamente grisalho, o outro quase calvo.
Tinham retornado depois de terminar seus contratos de dez anos. O povo da aldeia ficou surpreso de ver como os dois estavam envelhecidos, obviamente um indício de como haviam trabalhado além de suas forças. O homem com o cajado tinha ido para a floresta derrubar árvores debaixo de neve e caíra de um penhasco quando carregava a lenha de volta. Ele ficara inconsciente e fora salvo apenas porque os outros homens foram procurá-lo. Eles o encontraram dois dias depois, enterrado na neve até a cintura. Enquanto os outros ferimentos que havia sofrido na queda haviam sarado, o pé esquerdo, que ficara sob a neve, desenvolvera uma gangrena. Como isso poderia levar à morte, tinham lhe amputado a perna abaixo do joelho. Aleijado como estava, ele tinha mesmo muita sorte por ter voltado vivo para a aldeia.
O pai de Isaku estava trabalhando no mesmo porto que os dois homens, portanto naquela noite a mãe dele foi perguntar como estava o marido.
Ela voltou cerca de uma hora depois, serviu-se de um pouco de vinho e sentou-se perto do fogo.
Isaku desconfiou que algo estava errado quando viu a expressão preocupada da mãe. Talvez os homens tivessem trazido más notícias sobre seu pai. Talvez seu pai já estivesse morto. Nervoso, ele se aproximou da mãe quando ela começou a tomar o vinho.
— Eles disseram alguma coisa sobre papai?
— Disseram que ele está bem... — murmurou a mãe, os olhos fixos nas chamas.
— Eles disseram que ele trabalha tanto que as pessoas da agência de transporte estão interessadas nele. Disseram que seu pai é um homem forte, que encoraja os outros da aldeia, que os ajuda. Mas eles disseram que seu pai está preocupado conosco, que espera que estejamos todos bem... — Ela tomou um gole do vinho.
Isaku sentou-se em silêncio, olhando para o fogo. Imaginou Teru, lá longe no mar, sob a água, vestida com roupas transparentes, um sorriso gentil no rosto. A morte de Teru fora algo que a mãe não tivera como evitar, e seu pouco tempo na terra devia ser o tempo que sua vida estava destinada a durar. Sim, ela podia ter morrido, mas estar rodeada pelos espíritos dos ancestrais significava que agora não estava sozinha ao descansar pacificamente lá longe no fundo do mar.
— Papai vai voltar na próxima primavera. Só temos de nos aguentar mais um pouco — disse Isaku, colocando outro pedaço de lenha no fogo.
A mãe não disse nada, e lentamente passou a cuia com o vinho para Isaku. Ele sentiu a emoção crescer dentro de si. Era a primeira vez que a mãe demonstrava alguma afeição por ele desde que seu pai havia partido. Isaku sentiu que agora a mãe o reconhecia como alguém em quem podia confiar.
Ele tomou um gole do vinho e o devolveu à mãe.
Isokichi murmurou algo enquanto dormia e virou-se. Ainda segurando o vinho, a mãe ficou ali olhando para o rosto de Isokichi, pálido à luz do fogo.
Akira Yoshimura, "Naufrágios"
Ele viu movimento entre os troncos das árvores, e logo em seguida dois homens apareceram no alto da trilha. Um deles usava um longo cajado para se apoiar ao caminhar, o outro o ajudava a descer pela trilha. O homem com o cajado tinha uma perna cortada na altura do joelho.
Aqueles homens não se pareciam nem um pouco com a imagem que Isaku fazia de um agente de companhia de transporte. Sem dúvida eles não iriam enviar um homem deficiente para realizar aquele tipo de trabalho. Além disso, aqueles homens pareciam ser pobres, suas roupas eram pouco mais que farrapos.
Os dois homens pararam alguns metros adiante, olhando alternadamente para a aldeia e para o mar, antes de se deixar cair de joelhos no chão, soluçando.
A mãe de Isaku saiu da casa e caminhou na direção deles. Isaku a seguiu enquanto homens e mulheres saíram de suas casas e seguiram pela trilha na montanha. O cansaço que ele sentira antes desapareceu completamente quando viu uma mulher correr à frente e abraçar o homem com o cajado.
— Alguém voltou da servidão — disse a mãe dele, apertando o passo.
O pai de Isaku tinha mais um ano de contrato, ainda, portanto não era ele. Isaku seguiu a mãe e os outros da aldeia. Os dois homens estavam agora sentados no chão, os rostos de um tom escuro de vermelho, as faces encovadas e magras. Isaku não reconheceu nenhum dos dois homens, que deviam estar na casa dos quarenta, um completamente grisalho, o outro quase calvo.
Tinham retornado depois de terminar seus contratos de dez anos. O povo da aldeia ficou surpreso de ver como os dois estavam envelhecidos, obviamente um indício de como haviam trabalhado além de suas forças. O homem com o cajado tinha ido para a floresta derrubar árvores debaixo de neve e caíra de um penhasco quando carregava a lenha de volta. Ele ficara inconsciente e fora salvo apenas porque os outros homens foram procurá-lo. Eles o encontraram dois dias depois, enterrado na neve até a cintura. Enquanto os outros ferimentos que havia sofrido na queda haviam sarado, o pé esquerdo, que ficara sob a neve, desenvolvera uma gangrena. Como isso poderia levar à morte, tinham lhe amputado a perna abaixo do joelho. Aleijado como estava, ele tinha mesmo muita sorte por ter voltado vivo para a aldeia.
O pai de Isaku estava trabalhando no mesmo porto que os dois homens, portanto naquela noite a mãe dele foi perguntar como estava o marido.
Ela voltou cerca de uma hora depois, serviu-se de um pouco de vinho e sentou-se perto do fogo.
Isaku desconfiou que algo estava errado quando viu a expressão preocupada da mãe. Talvez os homens tivessem trazido más notícias sobre seu pai. Talvez seu pai já estivesse morto. Nervoso, ele se aproximou da mãe quando ela começou a tomar o vinho.
— Eles disseram alguma coisa sobre papai?
— Disseram que ele está bem... — murmurou a mãe, os olhos fixos nas chamas.
Isaku sentiu um grande alívio e sentou-se junto do fogo.
— Eles disseram que ele trabalha tanto que as pessoas da agência de transporte estão interessadas nele. Disseram que seu pai é um homem forte, que encoraja os outros da aldeia, que os ajuda. Mas eles disseram que seu pai está preocupado conosco, que espera que estejamos todos bem... — Ela tomou um gole do vinho.
Sua mãe devia estar pensando em Teru. Pensando que tinha deixado a pequena Teru morrer e sentindo que havia desapontado o marido. Ela devia estar se sentindo arrasada por não ter podido fazer nada. O vinho era a forma de ela afogar as tristezas.
Isaku sentou-se em silêncio, olhando para o fogo. Imaginou Teru, lá longe no mar, sob a água, vestida com roupas transparentes, um sorriso gentil no rosto. A morte de Teru fora algo que a mãe não tivera como evitar, e seu pouco tempo na terra devia ser o tempo que sua vida estava destinada a durar. Sim, ela podia ter morrido, mas estar rodeada pelos espíritos dos ancestrais significava que agora não estava sozinha ao descansar pacificamente lá longe no fundo do mar.
— Papai vai voltar na próxima primavera. Só temos de nos aguentar mais um pouco — disse Isaku, colocando outro pedaço de lenha no fogo.
A mãe não disse nada, e lentamente passou a cuia com o vinho para Isaku. Ele sentiu a emoção crescer dentro de si. Era a primeira vez que a mãe demonstrava alguma afeição por ele desde que seu pai havia partido. Isaku sentiu que agora a mãe o reconhecia como alguém em quem podia confiar.
Ele tomou um gole do vinho e o devolveu à mãe.
Isokichi murmurou algo enquanto dormia e virou-se. Ainda segurando o vinho, a mãe ficou ali olhando para o rosto de Isokichi, pálido à luz do fogo.
Akira Yoshimura, "Naufrágios"
Velhice
Diante do menino, por todos festejado, por todos paparicado, a velhinha enrugada deteve-se faceira: bela criatura, tão frágil quanto a velha e, como ela, sem dentes nem cabelos.
E dele a velhinha também se aproximou, querendo agradá-lo com gestos e sorrisos. Mas o menino horrorizado se debatia debaixo das carícias da boa senhora decrépita, e fazia a casa toda ressoar com seu alarido.
A boa velha então se recolheu à solidão que desde sempre a aguardava. Em um canto, repetia a si mesma entre lágrimas:
– Ah! Para nós, mulheres infelizes e velhas, passou a época de ser agradável, mesmo aos inocentes; e aos pequenos que desejamos amar, a esses apavoramos.
Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"
E dele a velhinha também se aproximou, querendo agradá-lo com gestos e sorrisos. Mas o menino horrorizado se debatia debaixo das carícias da boa senhora decrépita, e fazia a casa toda ressoar com seu alarido.
A boa velha então se recolheu à solidão que desde sempre a aguardava. Em um canto, repetia a si mesma entre lágrimas:
– Ah! Para nós, mulheres infelizes e velhas, passou a época de ser agradável, mesmo aos inocentes; e aos pequenos que desejamos amar, a esses apavoramos.
Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"
Luanda em São Paulo
Um taxista, ou taxeiro como com mais propriedade se diz em Luanda, estranhou o meu sotaque quando em Novembro do ano passado visitei o Recife.
— Você me desculpe, moço, mas você vem de onde?
Disse-lhe que era angolano e ele olhou para mim espantado.
— Angola? Isso fica no Brasil?
Expliquei que não, Angola fica em África, do outro lado do mar. Um país com pouco mais de dez milhões de habitantes, mais ou menos do tamanho do estado do Amazonas, rico em recursos naturais e destruído por uma prolongada guerra civil.
— Mas você é filho de brasileiros?
— Também não.
— Então onde aprendeu a falar português?
Respondi-lhe, já um pouco irritado, que embora existam em Angola muitas outras línguas, quase toda a gente entende e fala o português.
— Verdade? — estranhou o homem— , julguei que só nós, brasileiros falávamos português.
— E então os portugueses?
— Os portugueses? – o taxeiro sorriu superior. –Bom, esses falam um dialecto meio atravessado, não é bem português…
Mais tarde, passeando pelas ruas de Olinda (o casario pintado de cores loucas, os quintalhões protegidos por grossos muros de adobe ) lembrei-me como sempre da velha cidade de São Filipe de Benguela. Em Salvador reencontrei Luanda ( a festa permanente, o ritmo e o riso, o caloroso calulu). Corumbá, ardendo ao sol, em frente às águas lentas do Paraguai, trouxe-me à memória a Feira do Dondo, na margem direita do Quanza, a primeira cidade que os portugueses construíram nos sertões de Angola. Atordoado pelo calor, voltei a experimentar o estranho sentimento de me encontrar num sítio esquecido, longe da fúria e do fragor do mundo. Em Cachoeira, no recôncavo baiano, reencontrei a alegre vendedeira de raízes, santinhos e prodígios, que no mercado de São Paulo, em Luanda, me vendeu certa vez um pedaço de brututu, para o fígado, e estranhando que eu ainda não tivesse filhos se propôs vender-me também Pau de Cabinda. Num bar de esquina, no Rio de Janeiro, reencontrei os velhos funcionários públicos, de impecável terno de linho branco, que todas as tardes se reúnem a uma mesa da Biker, a mais antiga cervejaria de Angola, e à luz esplêndida do crepúsculo discutem todas as grandes questões do nosso tempo (sobretudo mulheres).
Por tudo isto eu quase acreditei estar em Angola quando vi, em viagem de ônibus entre São Paulo e Campo Grande, uma placa na estrada anunciado: Luanda, cem quilómetros. Mas depois disso conversei com a vendedeira de milagres em Cachoeira, com os funcionários públicos no Rio de Janeiro, centenas de outros brasileiros, e quase todos quiseram saber, como o taxeiro do Recife, onde ficava o meu país. O confronto entre a memória remota de África, que persiste em praticamente todas as regiões do Brasil, pelo menos a norte do Rio de Janeiro, e a absoluta ignorância do que é o continente nos nossos dias, deixa-me sempre perturbado. É como descobrir, no fim da vida, um irmão que partilhou connosco uma infância feliz, e que depois partiu para longe. Nós, em África, nunca deixámos de ter notícias dele. Ele nunca mais soube de nós. Ainda se recorda das canções que cantávamos, do tempero do calulu e do som do berimbau — mas já não sabe quem somos.
É importante para o Brasil redescobrir Angola (África)?
A mim, parece-me que será no espaço africano que o Brasil poderá exercer com mais vantagem, e proveito geral, a sua brasilidade. Parece-me também que o reencontro com África poderia ser importante para ajudar uma certa inquietude racial, latente, que é no fundo parte de uma mais vasta e profunda inquietação de identidade. Esta, porém, é uma questão a que só aos brasileiros cabe responder.
Nós, em África, continuamos à espera.
José Eduardo Agualusa
— Você me desculpe, moço, mas você vem de onde?
Disse-lhe que era angolano e ele olhou para mim espantado.
— Angola? Isso fica no Brasil?
Expliquei que não, Angola fica em África, do outro lado do mar. Um país com pouco mais de dez milhões de habitantes, mais ou menos do tamanho do estado do Amazonas, rico em recursos naturais e destruído por uma prolongada guerra civil.
— Mas você é filho de brasileiros?
— Também não.
— Então onde aprendeu a falar português?
Respondi-lhe, já um pouco irritado, que embora existam em Angola muitas outras línguas, quase toda a gente entende e fala o português.
— Verdade? — estranhou o homem— , julguei que só nós, brasileiros falávamos português.
— E então os portugueses?
— Os portugueses? – o taxeiro sorriu superior. –Bom, esses falam um dialecto meio atravessado, não é bem português…
Mais tarde, passeando pelas ruas de Olinda (o casario pintado de cores loucas, os quintalhões protegidos por grossos muros de adobe ) lembrei-me como sempre da velha cidade de São Filipe de Benguela. Em Salvador reencontrei Luanda ( a festa permanente, o ritmo e o riso, o caloroso calulu). Corumbá, ardendo ao sol, em frente às águas lentas do Paraguai, trouxe-me à memória a Feira do Dondo, na margem direita do Quanza, a primeira cidade que os portugueses construíram nos sertões de Angola. Atordoado pelo calor, voltei a experimentar o estranho sentimento de me encontrar num sítio esquecido, longe da fúria e do fragor do mundo. Em Cachoeira, no recôncavo baiano, reencontrei a alegre vendedeira de raízes, santinhos e prodígios, que no mercado de São Paulo, em Luanda, me vendeu certa vez um pedaço de brututu, para o fígado, e estranhando que eu ainda não tivesse filhos se propôs vender-me também Pau de Cabinda. Num bar de esquina, no Rio de Janeiro, reencontrei os velhos funcionários públicos, de impecável terno de linho branco, que todas as tardes se reúnem a uma mesa da Biker, a mais antiga cervejaria de Angola, e à luz esplêndida do crepúsculo discutem todas as grandes questões do nosso tempo (sobretudo mulheres).
Por tudo isto eu quase acreditei estar em Angola quando vi, em viagem de ônibus entre São Paulo e Campo Grande, uma placa na estrada anunciado: Luanda, cem quilómetros. Mas depois disso conversei com a vendedeira de milagres em Cachoeira, com os funcionários públicos no Rio de Janeiro, centenas de outros brasileiros, e quase todos quiseram saber, como o taxeiro do Recife, onde ficava o meu país. O confronto entre a memória remota de África, que persiste em praticamente todas as regiões do Brasil, pelo menos a norte do Rio de Janeiro, e a absoluta ignorância do que é o continente nos nossos dias, deixa-me sempre perturbado. É como descobrir, no fim da vida, um irmão que partilhou connosco uma infância feliz, e que depois partiu para longe. Nós, em África, nunca deixámos de ter notícias dele. Ele nunca mais soube de nós. Ainda se recorda das canções que cantávamos, do tempero do calulu e do som do berimbau — mas já não sabe quem somos.
É importante para o Brasil redescobrir Angola (África)?
A mim, parece-me que será no espaço africano que o Brasil poderá exercer com mais vantagem, e proveito geral, a sua brasilidade. Parece-me também que o reencontro com África poderia ser importante para ajudar uma certa inquietude racial, latente, que é no fundo parte de uma mais vasta e profunda inquietação de identidade. Esta, porém, é uma questão a que só aos brasileiros cabe responder.
Nós, em África, continuamos à espera.
José Eduardo Agualusa
O colégio de Tia Gracinha
Tia Gracinha, cujo nome ficou no grupo escolar Graça Guardiã, de Cachoeiro de Itapemirim, era irmã de minha avó paterna, mas tão mais moça, que a tratava de mãe. Eu era certamente menino, quando ela e o tio Guardiã — um simpático espanhol de cavanhaque, que fora piloto em sua terra — saíram de Cachoeiro para o Rio. Assim, tenho do colégio de Tia Gracinha uma recordação em que não sei o que é lembrança mesmo e lembrança de conversas que ouvi menino.
A carreira de toda a moça era casar, e no colégio de Tia Gracinha elas aprendiam boas maneiras. Levavam depois, para as casas de seus pais e seus maridos, uma porção de noções úteis de higiene e de trabalhos domésticos, e muitas finuras que lhes davam certa superioridade sobre os homens de seu tempo. Pequenas etiquetas que elas iam impondo suavemente, e transmitiam às filhas. Muitas centenas de lares ganharam, graças ao colégio de Tia Gracinha, a melhoria burguesa desses costumes mais finos. Eu avalio a educação de Tia Gracinha pela delicadeza de duas de suas alunas — minha saudosa irmã e madrinha Carmozina, e minha prima Noemita.
Tudo isto será risível aos olhos das moças de hoje; mas a verdade é que o colégio de Tia Gracinha dava às moças de então a educação de que elas precisavam para viver sua vida. Não apenas o essencial, mas muito do que, sendo supérfluo e superior ao ambiente, era, por isto mesmo, de certo modo, funcional — pois a função do colégio era uma certa elevação espiritual do meio a que servia. Tia Gracinha era bem o que se podia chamar uma educadora.
Lembro-a na casa de Vila Isabel, onde vivia com o marido, a filha, o genro, os netos, a irmã Ana, que ela chamava de mãe, e que para nós era a Vovô Donana, e a sogra de idade imemorial, que, à força de ser Abuelita, acabara sendo, para nós todos, Vovó Bolita. Tinha nostalgia, talvez, de seu tempo de educadora, de seu belo colégio com pomar às margens do Córrego Amarelo, afluente do Itapemirim; lembro-me de que uma vez me pediu algum livro que explicasse os novos sistemas de educação, o método de ensinar a ler sem soletrar — e me fez esta indagação a que eu jamais poderia responder: “E piano, como é que se ensina piano, hoje?”
Gostava de seu piano. O saudoso Mário Azevedo sabia tocar várias de suas composições, feitas lá em Cachoeiro; lembro-me de uma pequena valsa cheia de graça, finura e melancolia — parecida com a alma de Tia Gracinha.
Rubem Braga, "Recado de primavera"
Lembro-me, sobretudo, do pomar e do jardim do colégio, e imagino ver moças de roupas antigas, cuidando das plantas. O colégio era um internato de moças. Elas não aprendiam datilografia nem taquigrafia, pois o tempo era de pouca máquina e nenhuma pressa. Moças não trabalhavam fora. As famílias de Cachoeiro e de muitas outras cidades do Espírito Santo mandavam suas adolescentes para ali; muitas eram filhas de fazendeiros. Recebiam instrução geral, uma espécie de curso primário reforçado, o mais eram prendas domésticas. Trabalhos caseiros e graças especiais: bordados, jardinagem, francês, piano...
A carreira de toda a moça era casar, e no colégio de Tia Gracinha elas aprendiam boas maneiras. Levavam depois, para as casas de seus pais e seus maridos, uma porção de noções úteis de higiene e de trabalhos domésticos, e muitas finuras que lhes davam certa superioridade sobre os homens de seu tempo. Pequenas etiquetas que elas iam impondo suavemente, e transmitiam às filhas. Muitas centenas de lares ganharam, graças ao colégio de Tia Gracinha, a melhoria burguesa desses costumes mais finos. Eu avalio a educação de Tia Gracinha pela delicadeza de duas de suas alunas — minha saudosa irmã e madrinha Carmozina, e minha prima Noemita.
Tudo isto será risível aos olhos das moças de hoje; mas a verdade é que o colégio de Tia Gracinha dava às moças de então a educação de que elas precisavam para viver sua vida. Não apenas o essencial, mas muito do que, sendo supérfluo e superior ao ambiente, era, por isto mesmo, de certo modo, funcional — pois a função do colégio era uma certa elevação espiritual do meio a que servia. Tia Gracinha era bem o que se podia chamar uma educadora.
Lembro-a na casa de Vila Isabel, onde vivia com o marido, a filha, o genro, os netos, a irmã Ana, que ela chamava de mãe, e que para nós era a Vovô Donana, e a sogra de idade imemorial, que, à força de ser Abuelita, acabara sendo, para nós todos, Vovó Bolita. Tinha nostalgia, talvez, de seu tempo de educadora, de seu belo colégio com pomar às margens do Córrego Amarelo, afluente do Itapemirim; lembro-me de que uma vez me pediu algum livro que explicasse os novos sistemas de educação, o método de ensinar a ler sem soletrar — e me fez esta indagação a que eu jamais poderia responder: “E piano, como é que se ensina piano, hoje?”
Gostava de seu piano. O saudoso Mário Azevedo sabia tocar várias de suas composições, feitas lá em Cachoeiro; lembro-me de uma pequena valsa cheia de graça, finura e melancolia — parecida com a alma de Tia Gracinha.
Rubem Braga, "Recado de primavera"
segunda-feira, outubro 28
O aprendiz de poesia
Era tão estranho aquilo! Eu de nada sabia ainda, senão que tinha nove anos e Cocotá era o meu mundo, com sua praia de lodo, seu cajueiro e seus guaiamuns. Mas sabia vibrar em presença da folha branca que me pedia versos, viva como uma epiderme que pede carinho. Passavam-me os mais doces pensamentos, a imagem de minha mãe cantando, o rosto de Cacilda, minha namorada, da Escola Afrânio Peixoto, o beijo que Branca me dera - menina danada! - em plena Igreja São João Batista, quando as cabeças dos fiéis se haviam mansamente curvado para a bênção.
Mas de alguma coisa carecia, que me arrastava logo a antologias (muito obrigado, Fausto Barreto; muito obrigado, Carlos de Laet!) ante as quais morria de inveja. Ah, escrever um soneto como o “Anoitecer”, de Raimundo Correia! Minha maior tentação era, no entanto, meu próprio pai, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta inédito, cujos manuscritos folheava deslumbrado, os mesmos que Bilac lera e cuja publicação aconselhara.
Lembro que havia entre eles um soneto que levava meu nome, feito quando eu ainda no ventre materno. Cada vez que o lia, as lágrimas corriam-me livremente - e quantas não enxuguei sobre o papel amarelado para que não borrassem a linha antiga... Partia, ato contínuo, para a folha branca que me esperava, virgem, a procurar um tema, uma frase, uma palavra que me desse para abrir as portas daquela cidade cobiçada, cujos rumores chegavam-me maravilhosamente acústicos.
Pus-me a imitar. Primeiro meu pai, mais à mão, menos preocupado com a glória literária, a que não dava grande crédito. Um dia, como um ladrão, levei comigo, enfiada por dentro da camisa de banho, uma longa pastoral em decassílabos, que fui mostrar a Célia, minha garota da Ilha, uma menina grande e mais velha, que se entretinha de mim.
- Que beleza! - disse-me ela pondo as mãos nas minhas. - Você quer dar ele para mim?
Covarde, dei. Hoje a pastoral de meu pai anda por aí, não sei onde, talvez na gaveta de uma cômoda no Encantado, onde morava quando vinha ao Rio; talvez em Miami, Acapulco ou Pago-Pago, para onde a tenha levado sua imensa tontice.
* * *
Um dia conheci um poeta como mandam as regras, com livro publicado e tudo o mais. Chamava-se João Lyra Filho, era moço nortista, apaixonado, e recitava Augusto dos Anjos por trás de uma cadeira. Augusto dos Anjos! Como me chocava aquela ousadia de palavras, a misturar a miséria ao sublime, o esterco à estrela, a podridão do túmulo à beleza da vida! Preferia Adelmar, para quem, naquele tempo, voltavam-se os olhos fiéis de João Lyra Filho como os do sacristão para o padre.
Certa vez, depois de uma noite de angústia, resolvi mostrar-lhe meus versos. Reunira-os sob o nome de “Foederis arca”. Mas o poeta não gostou. Disse-me de modo brando que desistisse daquilo. Falou-me da predestinação poética, que eu não tinha. Meu negócio devia ser outro. Faltava-me aquele imponderável que os amantes do belo representam esfregando sutilmente a polpa do polegar contra a dos outros dedos, mas não como para indicar o vil metal: mais devagar, como a destilar a própria substância imanente da arte.
O poetinha aprendiz desistiu?
Coisíssima nenhuma! Prossegui firme, inabalável, entre alexandrinos, decassílabos e redondilhas, a perpetrar odes, sonetos, elegias, éclogas, cromos e acrósticos que dava fielmente às namoradas que fui semeando, da Gávea a Sabará.
Era o martírio da poesia, em todo o meu desvario.
* * *
Era tal o mistério dessa noite que agora mesmo, escrevendo na minha sala noturna, sinto os cabelos se me içarem de leve, como se fosse sentir novamente sobre eles a mão macia da lua cheia.
Deixei Octavio de Faria no seu bonde de volta e subi Lopes Quintas, rumo a casa. O sossego era perfeito, total o sono do mundo. Só às vezes, subitamente, dos espaços descia um braço de vento que varria as folhas secas da rua e empinava papéis velhos como hipocampos. Transpus, ansiado, a distância familiar que me levava para alguma coisa que sentia vir mas não sabia o que era. Em casa, galguei rápido as escadas para o meu quarto no primeiro andar, e fui sentar-me ofegante à escrivaninha antiga, a mesma que tenho hoje, a mesma que suportou na infância o peso da minha ambição de ser poeta. A janela estava aberta, e em sua moldura a lua viera se postar, os olhos cravados em mim.
Não sei como foi, mas sei que foi diferente de tudo o que sentia antes. Meus ouvidos, como conchas, pareciam recolher os ruídos mais longínquos do mar que estilhaçava em mim. Ouvi o sopro da noite, o cair das folhas, o germinar das plantas que boliam fora, na mata próxima ao Corcovado, e ali perto, no jardim. Pombas vazaram do meu coração, deixando-me dentro, a se debater, a grande ave inimiga que me feria com suas asas querendo sair também, fugir, voar para longe. Senti-me sem peso, sem dimensão, sem matéria. Meu ser volatilizou-se para a lua, transformado ele próprio em substância lunar. E comecei a escrever como nunca dantes, liberto de métrica e rima, algo que era eu mas que era também diferente de mim; algo que eu tinha e de que não participava, como um fogo-fátuo a crepitar da minha carne em agonia.
Linha por linha, como psicografado, o poema - o meu primeiro poema - começou a brotar de mim.
O ar está cheio de murmúrios misteriosos...
* * *
Tive saudades do tempo em que a poesia para mim era isso: a noite, com suas vozes, a lua com seus véus, o silêncio noturno da terra a rolar no infinito. Tive saudades de Júlio Dantas, Adelmar Tavares, João Lyra Filho. De repente, a poesia fez-se tão exigente, o poeta fez-se tão lúcido...
Por que tiveste que passar, poesia inocente, poesia ruim, que eu fazia com os olhos nos olhos da lua? Por que morreste e deixaste o poeta calmo, firme, sóbrio dentro da noite sem mistério?
Vinicius de Moraes, "Prosa"
Catecismo do japonês
Hindu
É verdade que antigamente os japoneses não sabiam cozinhar, que haviam entregue seu reino ao grande lama, que o grande lama decidia soberanamente do que devíeis comer e beber e de tempos em tempos vos enviava um pequeno lama a fim de cobrar tributos, pagando-vos com um sinal de proteção feito com os dois primeiros dedos e o polegar?
Japonês
Ai! Nada mais verdadeiro. Todos os cargos de canusi – os grandes cozinheiros da nossa ilha – conferia-os o lama, e não certamente por amor de Deus. Além disso todas as famílias seculares pagavam uma onça de prata por ano a esse grande cozinheiro do Tibete. Em paga dava-nos minguados pratos de horrível paladar chamados sobejos. E quando lhe dava na veneta alguma nova fantasia, como declarar guerra aos povos do Tangate, escorchava-nos com subsídios suplementares. Muitas vezes nos queixamos, porém baldamente, quando não nos fazia pagar mais ainda. Por fim o amor, que tudo resolve maravilhosamente, libertou-nos dessa servidão. Um de nossos imperadores desaveio-se com o grande lama por causa. de uma mulher. Mas devo confessar que quem mais nos valeram nessa questão foram os nossos canusi, também chamados paiscospie. A eles devemos a libertação.
Eis o que se deu.
O grande lama tinha uma mania engraçada: julgava sempre ter razão. Uma vez ou outra, pelo menos, queriam os nossos canusi tê-la também. O grande lama achou absurda tamanha pretensão. Nossos canusi não arredaram pé e romperam definitivamente com ele.
Hindu
E de então em diante vivestes sem dúvida felizes e tranquilos?
Japonês
Não inteiramente. Fomos perseguidos, dilacerados, devorados durante perto de dois séculos. Em vão pleiteavam nossos canusi ter razão. Somente há cem anos são razoáveis. Também, desde então podemos orgulhosamente considerar-nos uma das nações mais felizes da terra.
Hindu
Como podeis ser felizes se – a crer no que me disseram – vosso império se acha dilacerado por doze facções de cozinha? No mínimo tereis doze guerras civis por ano.
Japonês
Por que? Será que por termos doze chefes de cozinha, cada qual com uma receita diferente, deveremos matar-nos em vez de jantar? Pelo contrário, comeremos todos às mil maravilhas, cada um do cozinheiro que mais lhe agradar.
Hindu
De fato gostos não se devem discutir. A história, porém, é que ninguém se compenetra disso. Discutem, e da discussão às do cabo é um passo.
Japonês
Depois de muito discutirmos, vendo que com isso só tínhamos que perder, acabamos optando tolerar-nos mutuamente. Era, não há dúvida, o melhor partido que nos restava tomar.
Hindu
Poderíeis dizer-me quais são os chefes de cozinha que partilham a vossa nação na arte de beber e comer?
Japonês
Primeiramente há os breuseh, que em caso algum vos dariam morcela ou lardo. Preconizam as fontes puras da cozinha do tempo do onça. Prefeririam morrer a mordiscar um frango. Quanto ao mais, exímios calculadores, e fosse o caso de dividir uma onça de prata entre eles e os onze outros cozinheiros, açambarcariam logo a metade, deixando o resto para os que melhor soubessem contar.
Hindu
Presumo não costumais cear com gente tão esdrúxula?
Japonês
Claro. Em seguida vêm os pispatas, que em determinados dias da semana e em boa parte do ano prefeririam cem vezes comer rodelas de rodovalhos, trutas, linguados, salmões, esturjões, a saborear uma fritada de vitela que lhes ficaria por um nada.
Quanto a nós outros canusi, somos devotos apreciadores de carne de vaca e de certa pastelaria que em japonês se diz pudim. Toda gente convém em que os nossos cozinheiros sejam muito mais hábeis que os dos pispatas. Ninguém melhor que nós sabe preparar o garum dos romanos, as cebolas do antigo Egito, a pasta de gafanhoto dos primeiros árabes, a carne de cavalo dos tártaros. Sempre há o que aprender nos livros dos canusi, comumente chamados paiscospie.
Escuso-me de falar dos que comem a Teluro, assim como dos adeptos do regime de Vicalno, dos batistandos e que tais. Os quekars, porém, merecem atenção particular. São os únicos convivas que nunca vi se emborracharem nem praguejarem. Dificílimos de enganar, também nunca enganam ninguém. Parece que a lei que manda amar o próximo como a si mesmo foi feita especialmente para eles. Porque, verdade se diga, como pode um japonês dizer amar o próximo como a si próprio se por uma bagatela mete-lhe uma bala de chumbo na cabeça ou decapita-o com um cris de quatro dedos de largo? Quando ele próprio vive em constante risco de ser degolado ou engolir balas de chumbo? Com mais propriedade se dirá que ele odeia o próximo como a si mesmo. Os quekars nunca tiveram desses furores. Dizem eles serem os homens efêmeros vasos de argila e que não vale a pena se despedaçarem deliberadamente uns contra os outros.
Hindu
Mas a final deve haver uma cozinha predominante, a cozinha do rei.
Japonês
Confesso-o. Mas naturalmente depois de seus gordos banquetes o rei está derretendo de bom humor e não põe embargos à digestão de ninguém.
Hindu
E se algum cabeça dura encasquetar de comer no nariz do rei salsichas que lhe repugnem? Se se reunirem armados de grelhas quatro ou cinco mil desses indivíduos para cozer suas salsichas? Se insultarem as pessoas avessas e salsichas?
Japonês
Nesse caso será preciso puni-los como bêbedos que perturbam o repouso dos cidadãos. Previmos o perigo. Só os que comem à real são contemplados com as dignidades do estado. Todos os outros podem comer como lhes ditar a fantasia, porém são excluídos dos cargos. Soberanamente interditos e punidos sem remissão são os tumultos à mesa. Atalha-se cuidadosamente toda discussão, consoante o preceito do grande cozinheiro japonês Sufi Raho Cus Flac, que escreveu na língua sagrada:
Natis in usum laetitae scyphis
pugnare Thracum est…
O que quer dizer: O jantar foi feito para gáudio recatado e mundo, e não se devem atirar copos à cabeça.
Com essas máximas vivemos felizmente em nossa terra. A liberdade individual roborou-se sob os nossos tecosema. Cresce nossa riqueza. Possuímos duzentos juncos de linha, e constituímos o terror dos nossos vizinhos.
Hindu
Por que motivo então o bom versificador Recina, filho do poeta indiano do mesmo nome, tão delicado, tão exato, tão harmonioso, tão eloquente, disse em uma obra didática rimada intitulada A Graça (não As Graças):
Japonês
O próprio Recina de que me falais é um grande visionário. Ignorará esse mísero hindu que fomos nós quem lhe ensinamos o que é a luz? Que se na Índia conhecem a rota dos planetas, a nós o devem? Que fomos nós quem ensinamos aos homens as leis primordiais da natureza e o cálculo do infinito. Que, se é preciso descer a coisas mais triviais, conosco aprenderam os hindus a construir juncos segundo proporções matemáticas? Que nos devem até os borzeguins chamados meias do ofício com que cobrem as pernas? Seria possível que tendo inventado tantas coisas admiráveis ou úteis não fôssemos nós mais que loucos, e que um homem que escreveu em versos os desvairos de outrem fosse o único sábio? Deixe-nos com a nossa cozinha, e se quiser que faça versos sobre assuntos mais poéticos.
Hindu
Que quereis. Ele está intoxicado dos preconceitos de sua terra, de seu partido e dos seus próprios.
Japonês
Arre! Quanto preconceito!
Voltaire, "Dicionário filosófico"
É verdade que antigamente os japoneses não sabiam cozinhar, que haviam entregue seu reino ao grande lama, que o grande lama decidia soberanamente do que devíeis comer e beber e de tempos em tempos vos enviava um pequeno lama a fim de cobrar tributos, pagando-vos com um sinal de proteção feito com os dois primeiros dedos e o polegar?
Japonês
Ai! Nada mais verdadeiro. Todos os cargos de canusi – os grandes cozinheiros da nossa ilha – conferia-os o lama, e não certamente por amor de Deus. Além disso todas as famílias seculares pagavam uma onça de prata por ano a esse grande cozinheiro do Tibete. Em paga dava-nos minguados pratos de horrível paladar chamados sobejos. E quando lhe dava na veneta alguma nova fantasia, como declarar guerra aos povos do Tangate, escorchava-nos com subsídios suplementares. Muitas vezes nos queixamos, porém baldamente, quando não nos fazia pagar mais ainda. Por fim o amor, que tudo resolve maravilhosamente, libertou-nos dessa servidão. Um de nossos imperadores desaveio-se com o grande lama por causa. de uma mulher. Mas devo confessar que quem mais nos valeram nessa questão foram os nossos canusi, também chamados paiscospie. A eles devemos a libertação.
Eis o que se deu.
O grande lama tinha uma mania engraçada: julgava sempre ter razão. Uma vez ou outra, pelo menos, queriam os nossos canusi tê-la também. O grande lama achou absurda tamanha pretensão. Nossos canusi não arredaram pé e romperam definitivamente com ele.
Hindu
E de então em diante vivestes sem dúvida felizes e tranquilos?
Japonês
Não inteiramente. Fomos perseguidos, dilacerados, devorados durante perto de dois séculos. Em vão pleiteavam nossos canusi ter razão. Somente há cem anos são razoáveis. Também, desde então podemos orgulhosamente considerar-nos uma das nações mais felizes da terra.
Hindu
Como podeis ser felizes se – a crer no que me disseram – vosso império se acha dilacerado por doze facções de cozinha? No mínimo tereis doze guerras civis por ano.
Japonês
Por que? Será que por termos doze chefes de cozinha, cada qual com uma receita diferente, deveremos matar-nos em vez de jantar? Pelo contrário, comeremos todos às mil maravilhas, cada um do cozinheiro que mais lhe agradar.
Hindu
De fato gostos não se devem discutir. A história, porém, é que ninguém se compenetra disso. Discutem, e da discussão às do cabo é um passo.
Japonês
Depois de muito discutirmos, vendo que com isso só tínhamos que perder, acabamos optando tolerar-nos mutuamente. Era, não há dúvida, o melhor partido que nos restava tomar.
Hindu
Poderíeis dizer-me quais são os chefes de cozinha que partilham a vossa nação na arte de beber e comer?
Japonês
Primeiramente há os breuseh, que em caso algum vos dariam morcela ou lardo. Preconizam as fontes puras da cozinha do tempo do onça. Prefeririam morrer a mordiscar um frango. Quanto ao mais, exímios calculadores, e fosse o caso de dividir uma onça de prata entre eles e os onze outros cozinheiros, açambarcariam logo a metade, deixando o resto para os que melhor soubessem contar.
Hindu
Presumo não costumais cear com gente tão esdrúxula?
Japonês
Claro. Em seguida vêm os pispatas, que em determinados dias da semana e em boa parte do ano prefeririam cem vezes comer rodelas de rodovalhos, trutas, linguados, salmões, esturjões, a saborear uma fritada de vitela que lhes ficaria por um nada.
Quanto a nós outros canusi, somos devotos apreciadores de carne de vaca e de certa pastelaria que em japonês se diz pudim. Toda gente convém em que os nossos cozinheiros sejam muito mais hábeis que os dos pispatas. Ninguém melhor que nós sabe preparar o garum dos romanos, as cebolas do antigo Egito, a pasta de gafanhoto dos primeiros árabes, a carne de cavalo dos tártaros. Sempre há o que aprender nos livros dos canusi, comumente chamados paiscospie.
Escuso-me de falar dos que comem a Teluro, assim como dos adeptos do regime de Vicalno, dos batistandos e que tais. Os quekars, porém, merecem atenção particular. São os únicos convivas que nunca vi se emborracharem nem praguejarem. Dificílimos de enganar, também nunca enganam ninguém. Parece que a lei que manda amar o próximo como a si mesmo foi feita especialmente para eles. Porque, verdade se diga, como pode um japonês dizer amar o próximo como a si próprio se por uma bagatela mete-lhe uma bala de chumbo na cabeça ou decapita-o com um cris de quatro dedos de largo? Quando ele próprio vive em constante risco de ser degolado ou engolir balas de chumbo? Com mais propriedade se dirá que ele odeia o próximo como a si mesmo. Os quekars nunca tiveram desses furores. Dizem eles serem os homens efêmeros vasos de argila e que não vale a pena se despedaçarem deliberadamente uns contra os outros.
Confesso que se não fosse canusi não me desagradaria ser quekar. Força é reconhecer que não há meio de brigar com cozinheiros tão pacíficos. Há outros, em número incontável, a que chamamos diestas. Dão os diestas de comer a toda gente indiferentemente e em sua casa sois livre de comer o que vos der na língua - recheado, lardeado, sem recheio, sem lardo, com ovos, com óleo; perdiz, salmão, vinho palhete, vinho tinto, tudo lhes é indiferente. Contanto que façais alguma oração a Deus antes ou após o jantar, ou simplesmente antes do almoço, e sejais honrado, de bom grado rirão convosco à custa do grande lama, de Vicalno, de Memnão e o mais que segue. Felizmente reconhecem que nossos canusi são doutíssimos em matéria culinária, e sobretudo nunca falam em cercear nossas rendas. Assim, vivemos na mais edênica harmonia.
Hindu
Mas a final deve haver uma cozinha predominante, a cozinha do rei.
Japonês
Confesso-o. Mas naturalmente depois de seus gordos banquetes o rei está derretendo de bom humor e não põe embargos à digestão de ninguém.
Hindu
E se algum cabeça dura encasquetar de comer no nariz do rei salsichas que lhe repugnem? Se se reunirem armados de grelhas quatro ou cinco mil desses indivíduos para cozer suas salsichas? Se insultarem as pessoas avessas e salsichas?
Japonês
Nesse caso será preciso puni-los como bêbedos que perturbam o repouso dos cidadãos. Previmos o perigo. Só os que comem à real são contemplados com as dignidades do estado. Todos os outros podem comer como lhes ditar a fantasia, porém são excluídos dos cargos. Soberanamente interditos e punidos sem remissão são os tumultos à mesa. Atalha-se cuidadosamente toda discussão, consoante o preceito do grande cozinheiro japonês Sufi Raho Cus Flac, que escreveu na língua sagrada:
Natis in usum laetitae scyphis
pugnare Thracum est…
O que quer dizer: O jantar foi feito para gáudio recatado e mundo, e não se devem atirar copos à cabeça.
Com essas máximas vivemos felizmente em nossa terra. A liberdade individual roborou-se sob os nossos tecosema. Cresce nossa riqueza. Possuímos duzentos juncos de linha, e constituímos o terror dos nossos vizinhos.
Hindu
Por que motivo então o bom versificador Recina, filho do poeta indiano do mesmo nome, tão delicado, tão exato, tão harmonioso, tão eloquente, disse em uma obra didática rimada intitulada A Graça (não As Graças):
O Japão, onde brilharam tantas luzes,
hoje é um triste acervo de loucas visões – ?
hoje é um triste acervo de loucas visões – ?
Japonês
O próprio Recina de que me falais é um grande visionário. Ignorará esse mísero hindu que fomos nós quem lhe ensinamos o que é a luz? Que se na Índia conhecem a rota dos planetas, a nós o devem? Que fomos nós quem ensinamos aos homens as leis primordiais da natureza e o cálculo do infinito. Que, se é preciso descer a coisas mais triviais, conosco aprenderam os hindus a construir juncos segundo proporções matemáticas? Que nos devem até os borzeguins chamados meias do ofício com que cobrem as pernas? Seria possível que tendo inventado tantas coisas admiráveis ou úteis não fôssemos nós mais que loucos, e que um homem que escreveu em versos os desvairos de outrem fosse o único sábio? Deixe-nos com a nossa cozinha, e se quiser que faça versos sobre assuntos mais poéticos.
Hindu
Que quereis. Ele está intoxicado dos preconceitos de sua terra, de seu partido e dos seus próprios.
Japonês
Arre! Quanto preconceito!
Voltaire, "Dicionário filosófico"
Fubina
“Levante um só dedo e estará salvo!”, dizia o reverendo Davis ao Fubina deitado na cama, já sem consciência de coisa alguma. O momento era grave. A eternidade estava em jogo. Os circunstantes acompanhavam a batalha entre Deus e o Diabo. “Levante um só dedo e estará salvo!”, repetia o reverendo Davis. Mas o dedo do Fubina não se levantava. Quem diria que de um levantamento de dedo dependia o futuro eterno da alma do Fubina! Se levantasse o dedo, sua alma iria para as delícias do Céu. Se não levantasse o dedo, sua alma iria para os horrores do Inferno.
O reverendo Davis era um missionário norte-americano, de rudes origens rurais. Aprendera na sua congregação as verdades espirituais necessárias à salvação das almas. Sabia que os católicos iriam para o Inferno por serem idólatras. Ficou sabendo que havia milhões de pessoas que iriam para o Inferno se alguma coisa não fosse feita para salvá-las da idolatria do catolicismo. Então, de repente, Deus o chamou... Foi quando ele lia o livro de Jonas, no Antigo Testamento. Jonas, um pacato cidadão que cuidava da sua vida, foi chamado por Deus, que lhe ordenou largar tudo e ir para Nínive, a grande cidade, para pregar contra os seus pecados.
O reverendo Davis era um missionário norte-americano, de rudes origens rurais. Aprendera na sua congregação as verdades espirituais necessárias à salvação das almas. Sabia que os católicos iriam para o Inferno por serem idólatras. Ficou sabendo que havia milhões de pessoas que iriam para o Inferno se alguma coisa não fosse feita para salvá-las da idolatria do catolicismo. Então, de repente, Deus o chamou... Foi quando ele lia o livro de Jonas, no Antigo Testamento. Jonas, um pacato cidadão que cuidava da sua vida, foi chamado por Deus, que lhe ordenou largar tudo e ir para Nínive, a grande cidade, para pregar contra os seus pecados.
Se a cidade não se arrependesse, Deus a destruiria! Jonas não gostou da idéia e fugiu na direção contrária: tomou um navio que ia para Társis. O resto todo mundo sabe. Deus mandou uma tempestade sobre o mar que ameaçava afundar o navio. Descobriram que Jonas era o culpado daquela situação e, sem dó nem piedade, lançaram-no ao mar, sobrevindo imediatamente a bonança. Mas Deus havia posto um peixe à espera. De boca aberta, engoliu Jonas sem lhe fazer mal algum. E, no ventre do peixe, Jonas chegou mesmo a fazer literatura. O reverendo Davis não queria que coisa parecida acontecesse com ele e tratou de ir na direção que Deus apontava, o Brasil e seu povo idólatra. Era o santo guerreiro contra o dragão da maldade. Por caminhos vários chegou a Dores, onde pregava monótonos sermões num pequeno salão. Ninguém prestava muita atenção nos sermões, nem era possível, mas os hinos eram bonitos. Minha mãe, de vez em quando, acompanhava os hinos ao harmônio. O Fubina era um homem comum, nem santo nem pecador, pecava somente os pequenos pecados que tornam a vida menos monótona, como, de vez em quando, jogar na loteria ou beber uma cerveja sem que ninguém o visse. Não, o Fubina não merecia o Inferno eterno de forma alguma. Mas faltava-lhe uma coisa: ainda não havia publicamente confessado que aceitava Cristo como seu salvador. Por isso ele estava excluído da eucaristia. O reverendo Davis advertia o Fubina com seu sotaque americano: “O senhor está procrastinando...” . Como o Fubina não soubesse o que era “procrastinar”, as palavras do reverendo entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Tudo menos se comprometer. Mas tempo vai, tempo vem, o Fubina teve um derrame e perdeu a consciência das coisas. O momento decisivo se aproximava.
Os católicos são mais felizes que os protestantes. Eles têm um jeito de fazer depósitos de méritos na conta de uma pessoa mesmo depois de sua morte. No Purgatório estão as almas em liberdade condicional. Missas e rezas são créditos que se somam à contabilidade espiritual falida daquelas almas. Quando os débitos se equilibram com os créditos então a alma sai de sua liberdade condicional e vai para a bem-aventurança eterna. Mas o Deus protestante não aceita pagamentos a prazo. Com a morte vem a execução imediata da dívida, e a alma vai eternamente para o fogo do Inferno. Essa era a agonia do reverendo Davis. A alma do Fubina estava em perigo. Ele chegou mesmo a amenizar a exigência de confissão pública da fé. Bastava que o Fubina mexesse um dedo, uma única vez. O dedo do Fubina não mexeu. O reverendo Davis perdeu a batalha. O Diabo ganhou. Fora ele, o Diabo, que segurara o dedo do Fubina para que não levantasse. Pobre Fubina...
Se o seu dedo tivesse se mexido, ele passaria a eternidade no Céu ouvindo coros de anjos a cantar hinos. Mas o seu dedo não se mexeu. Passará toda a eternidade no Inferno a ouvir os sádicos demônios a repetir, em coro, a voz esganiçada da sua mulher a lhe dar ordens... Quem diria que o destino eterno de uma alma pode depender de uma ereção de dedo!
Rubem Alves, "O Velho que Acordou Menino"
Sobre ter juízo ou não
Há uma expressão antiga que imagino me cair bem, e que, se eu tiver juízo, será meu lema a partir de agora: aquietar o facho. É bem o momento de viver na terceira pessoa, como um personagem. Não bradar, não clamar, não querer, não reivindicar. Poupar os ouvidos alheios (e os meus também) desta voz velha que, se não se poupar, não conseguirá dar sequer um gemido na hora da libertação. Amor? Atravessar a rua é já uma façanha.
Um homem de juízo só se mete com literatura depois de perdê-lo.
A insatisfação com que me vejo é uma dessas que não admitem juízo contrário.
Tem idade suficiente para se conhecer. Sabe que é fraco de caráter, traidor e covarde. No dia do Juízo Final, se for necessário, entregará a literatura numa bandeja.
Curioso problema foi levado a juízo em um município rural paulista: um poeta concretista está sendo acusado de atrair os pássaros com os falsos frutos de suas árvores de papel-crepom.
Se for o caso de fazeres mau juízo de ti mesmo, convém que o faças antes que outros venham a fazê-lo, quase certamente com mais sólidos argumentos.
E se depois do Juízo Final vierem a prorrogação e os pênaltis?
Em matéria de amor eu sou como um menino de dez anos, sem juízo nenhum.
Se tivesse juízo, o soneto já teria mudado de nome.
Pedir juízo a um jovem é como pedir a um fruto que só se deixe morder quando não for mais apetecível.
Raul Drewnick
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Um homem de juízo só se mete com literatura depois de perdê-lo.
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A insatisfação com que me vejo é uma dessas que não admitem juízo contrário.
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Tem idade suficiente para se conhecer. Sabe que é fraco de caráter, traidor e covarde. No dia do Juízo Final, se for necessário, entregará a literatura numa bandeja.
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Curioso problema foi levado a juízo em um município rural paulista: um poeta concretista está sendo acusado de atrair os pássaros com os falsos frutos de suas árvores de papel-crepom.
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Se for o caso de fazeres mau juízo de ti mesmo, convém que o faças antes que outros venham a fazê-lo, quase certamente com mais sólidos argumentos.
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E se depois do Juízo Final vierem a prorrogação e os pênaltis?
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Em matéria de amor eu sou como um menino de dez anos, sem juízo nenhum.
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Se tivesse juízo, o soneto já teria mudado de nome.
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Pedir juízo a um jovem é como pedir a um fruto que só se deixe morder quando não for mais apetecível.
Raul Drewnick
domingo, outubro 27
As capas
Um dia destes, estava a lembrar-me junto de alguém do ofício como eram feitas as capas quando começámos a trabalhar neste mundo dos livros, e até parecia mentira que tivesse existido um tempo assim tão atrasado. Sem contar com as capas desenhadas por pintores consagrados (mesmo na velhinha colecção Vampiro), e pagas generosamente (segundo me contam), os artistas gráficos não tinham outro remédio senão fazer tudo à mão; e recordo uma colecção de obras de António José Saraiva que seguiam um modelo que tinha letras pretas e uma pequena ilustração sobre um fundo creme, fundo esse que (os leitores não o sabiam) tinha por base uma cartolina com areia da praia lá colada, que era usada em todos os livros da série e guardada num armário para que se não perdesse. Doutras vezes, recortavam-se imagens de revistas (os bancos de imagem, se já existiam, andavam com certeza distraidíssimos...) e colavam-se numa cartolina, com outras, de forma a criar uma composição alusiva à história que o livro contava, que depois se fotografava; mas, em muitos casos, a solução era ir pelo mais simples: escolhia-se uma única cor de fundo e outra para o lettering... e já estava! Hoje, com as exigências do marketing e para se sobressair entre os milhares de livros que se publicam todos os anos, as capas têm mesmo de ser chamativas e, para isso, vistas à lupa, pensadas por todos e discutidas às vezes por quem nem leu nada do livro, mas sabe que aquelas cores vão passar despercebidas numa mesa. E quantas vezes alguém nos pede para acrescentar uma frase bombástica que explique o livro a quem eventualmente precisa de um impulso para o comprar? Enfim, e agora também se tornou comum, tratando-se de autores estrangeiros, quererem aprovar a capa e às vezes exigirem duas ou três semanas para responder. Bem sei que o trabalho é hoje mais cuidado e profissional, mas, caramba, para quê tanta coisa à volta de uma simples capa?
Nada restou
Os anos transcorrem em silêncio. Meu substituto não chegou. Para o lugar do guarda veio seu cunhado, e há rumores de que o guarda demitido se juntou aos contrabandistas das colinas. Ainda estou em meu posto, mas cada vez mais exausto. Eles já não me chamam de senhor nem se dão ao trabalho de tirar seus bonés esfarrapados para me cumprimentar. Os desinfetantes já acabaram. As mulheres, sem me fazer qualquer pagamento, retiram pouco a pouco o resto de estoque da farmácia. Parece que minha mente e minha vontade se deterioram gradativamente. Ou talvez sejam apenas meus olhos a escurecer, a ponto de até mesmo a luz do meio-dia lhes parecer sombria, e a fila de mulheres à porta da farmácia se assemelhar a uma fileira de sacos abarrotados. Com o passar do tempo, quase me acostumei a seus dentes podres e à onda de fedor que emana de seus hálitos. Assim vou levando, da manhã à noite, dia após dia, do verão ao inverno. Há muito deixei de sentir as picadas dos insetos. Meu sono é profundo e tranqüilo. O musgo cresce em meus lençóis e manchas de fungo florescem em todas as paredes. De vez em quando, uma ou outra aldeã se apieda de mim e me alimenta com um líquido viscoso, provavelmente feito de cascas de batata. Todos os meus livros estão mofados, as encadernações se esfarelam e desmancham. Nada me restou, e não saberei distinguir um dia do outro, ou a primavera do outono, ou um ano de outro qualquer. Às vezes, à noite, tenho a impressão de ouvir o lamento distante de algum instrumento de sopro antigo, e não tenho a menor noção de qual seja ou de quem o está tocando, e se o estão tocando na floresta, ou talvez nas colinas, ou talvez dentro de meu crânio, debaixo de meus cabelos cada vez mais grisalhos e ralos. Vou, assim, lentamente, voltando as costas a tudo o que me circunda, e a mim mesmo também.
Amós Oz, "Cenas da vida na aldeia"
Passagem
É onde escuto agora a própria casa.
Sou eu que escrevo este poema.
Já onde estou agora nada espero.
Ouço o som que vem de estar aqui lembrando
isto que sou agora mesmo esperando.
É onde eu pouso a mão na terra calma
ouvindo quantos anos já vivi,
mas não aqui nem além, agora só
num tempo em que não sou mais que este estar
passando sem passar neste deserto.
É onde agora ninguém me vem chamar
e uma outra luta prossegue imponderável.
O tempo vai chegar mas eu aqui passei
ou algo em mim passou quando o final chegar
deste sem fim que escuto e sou no seu passar.
António Ramos Rosa, "Voz Inicial"
Sou eu que escrevo este poema.
Já onde estou agora nada espero.
Ouço o som que vem de estar aqui lembrando
isto que sou agora mesmo esperando.
É onde eu pouso a mão na terra calma
ouvindo quantos anos já vivi,
mas não aqui nem além, agora só
num tempo em que não sou mais que este estar
passando sem passar neste deserto.
É onde agora ninguém me vem chamar
e uma outra luta prossegue imponderável.
O tempo vai chegar mas eu aqui passei
ou algo em mim passou quando o final chegar
deste sem fim que escuto e sou no seu passar.
António Ramos Rosa, "Voz Inicial"
Prólogo
Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza — essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria de uma safira implacável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre céu e chão — névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.
Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe pelo tronco. Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.
Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, numa gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom — cor final de decomposição, depois da qual as folhas caem.
— Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.
— E vais outoneando sozinha?
— Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.
— Somos todos assim.
— Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.
— Não me entristeças.
— Não, querido, sou tua árvore da guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves… Outoniza-te com dignidade, meu velho.
Carlos Drummond de Andrade,"Fala, Amendoeira"
Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe pelo tronco. Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.
Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, numa gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom — cor final de decomposição, depois da qual as folhas caem.
Pequenas amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar uma coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho. E como o cronista lhe perguntasse — fala, amendoeira — por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:
— Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.
— E vais outoneando sozinha?
— Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.
— Somos todos assim.
— Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.
— Não me entristeças.
— Não, querido, sou tua árvore da guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves… Outoniza-te com dignidade, meu velho.
Carlos Drummond de Andrade,"Fala, Amendoeira"
sábado, outubro 26
Mulheres detentas
Quando entramos, algumas detentas lavavam a primeira sala, sob o olhar severo de um guarda.
– Tudo limpo?
– Saiba V. Sa que ainda não.
– Pois apresse, apresse estas mulheres.
O chão de pedra estava cheio de lama. A água suja escorria da soleira da sala em dois grossos fios e as mulheres, de saia arregaçada, com pulos estranhos, davam gritinhos estridentes. Um cheiro especial, esquisito, pairava naquela galeria batida de sol, em que os metais reluziam. Os guardas tinham a fisionomia fechada.
– Quantas presas?
Há atualmente cinqüenta e oito, divididas por três salas, uma das quais é enfermaria. À falta de lugares, a promiscuidade é ignóbil nesses compartimentos transformados em cubículos. A maioria das detentas, mulatas ou negras, fúfias da última classe, são reincidentes, alcoólicas e desordeiras. Olho as duas salas com as portas de par em par abertas e fico aterrado. Há caras vivas de mulatinhas com olhos libidinosos dos macacos, há olhos amortecidos de bode em faces balofas de aguardente, há perfis esqueléticos de antigas belezas de calçada, sorrisos estúpidos navalhando bocas desdentadas, rostos brancos de medo, beiços trêmulos, e no meio dessa caricatura do abismo as cabeças oleosas das negras, os narizes chatos, as carapinhas imundas das negras alcoólicas. Alguns desses entes, lembra-me tê-los visto noutra prisão, no pátio dos delírios, no hospício. É possível? Haverá loucas na detenção como há agitados e imbecis? O Dr. Afrânio Peixoto, o psiquiatra eminente, dissera-me uma vez, apontando o pátio do hospício, onde, presas de agitação, as negras corriam clamando horrores aos céus: — Há algumas que têm quatro e cinco entradas aqui. Saem, tornam a beber e voltam fatalmente.
As mulheres tinham corrido todas para os fundos das salas, casquinando risinhos de medo. Naquela tropa, as alcóolicas andavam trôpegas, erguendo as saias com um ar palerma. Indiquei ao guarda uma delas.
– Venha cá, gritou ele.
As mulheres agitaram-se. Eu? Sou eu? Seu guarda, posso ir? O guarda tornou a chamar a massa abjeta e foi quase empurrada pelas outras que ela veio, meio envergonhada.
– Quantas vezes esteve no hospício?
A negra olhou para nós. Os seus olhos amarelos, raiados de sangue, abriram-se num esforço e ela balbuciou.
– Duas, sim senhor.
O álcool ou a preparava para a tísica rápida ou, dias depois, atiraria írremissívelmente para o manicômio.
As outras criaturas, dotadas de curiosidade irresistível, tinham-se aproximado das portas entre risadinhas e cochichos depravados, e eu pude assim, com calma e tranqüilidade, apreciar e interrogar todas as flores de enxurrada, todas essas venenosas parasitas do amor torpe num campo perdido do jardim do crime. Essas mulheres estão na detenção por coisas fúteis, coisas que cometem diariamente até à cólera final dos inspetores tolerantes ou a vingança de algum soldadinho apaixonado.
São moradoras do morro da Favela, das ruelas próximas ao quartel general, dos becos que deságuam no Largo da Lapa, das Ruas da Conceição, S. Jorge e Núncio. Quase sempre brigavam por causa de uma “tentação” que tentava e pretendia satisfazer as duas. Outras atiraram-se à cara dos apaixonados num desespero de bebedeira.
– Saiba V. Sa que da outra vez que estive aqui foi por causa do inspetor. Eu tinha o meu bajoujo; o bobo cheio de “fobó” estava-se endireitando. Mas veio de carrinho. O diabo vingou-se!
E logo outra, apoplética:
– Cá comigo é nove. Não gosto de presepadas. Ele era um rodelista. Quando a gente gosta de um homem, gosta mesmo, nem que bata o trinta e um.
Falavam uma língua imprevista e curiosa, cuspinhando; e olhando as pobres coitadas, não sabia eu bem se falava a mulheres velhas ou a mulheres novas, de tal forma aquelas faces e aqueles corpos estavam arruinados. Perguntei a uma pardinha cujos dentes eram brancos e que devia Ter sido bonita:
– Como se chama?
– Quantos anos tem?
– Francisca Maria.
– Tenho vinte.
E estava havia cinco naquela vida de horror. E assim a Carmem da Rua Morais e Vale, e assim a Carmelina com uma navalhada na face, vibrada pela rival enquanto dormia, e assim a velha Rosa Maria à espera da liberdade apenas para continuar o seu fadário e voltar à detenção. Todas estão tatuadas, tatuadas nos seios, ombros, tatuadas nos braços, nas pernas, no ventre, tatuadas nas mãos, algumas até tatuadas na testa. Esses riscos azuis e essas manchas negras dão-lhes um aspecto bárbaro, um ar selvagem. Nenhuma decerto tem mais família ou amizades duradouras. A tatuagem para os seus pobres corações apodrecidos é como a exteriorização da saudade. Muitas têm, entre espadas, cristos, sereias, peixes, coroas imperiais, o nome dos que lhes deram o ser, o nome dos irmãos, o dos filhos perdidos e dos amantes que se foram: muitas, nas horas de solidão, têm na própria pele a recordação da eterna dor.
Cavalhada da luxúria, correndo nos recantos da cidade ao lado da morte e do assassinato, destinada aos fins trágicos da miséria, da sífilis ou do ciúme feroz, os seus próprios corpos são como o perpétuo símbolo das suas adorações, os altares onde se confundem todos os sentimentos. A cabocla Carmelina, uma das mais tatuadas, tem de tudo no corpo e até as falanges formam com iniciais o nome do irmão. Os braços, ela os dedicou ao amor. Há nomes e nomes, uns por cima dos outros, alguns apenas em iniciais, outros por extenso. Examinando esses dois braços de Vênus asquerosa, que com o mesmo delírio e a mesma alma apertaram na chama da paixão apaixonados diversos, o guarda perguntou, como quem quer decifrar um enigma:
– E qual destes é querido agora?
Carmelina esticou o braço esquerdo, e todos nós lemos, enquanto ela sorria, o nome de Narciso, com uma cedilha de mais por baixo do c. A criatura amava um Narciso, e decerto naquele momento aos seus olhos surgia a imagem desse seu deus temporário.
Eu porém já me nauseara, e Antônio Barros, chefe dos guardas, sempre solícito, levou- me à enfermaria, onde havia apenas três doentes —a Herculana assassina, a negrinha Gabriela do Pontes e uma pequena, feia, magra, olheirenta, espapaçada na cama como uma das múmias americanas que o museu guarda na sua seção de etnografia. Essa criaturinha tem quinze anos e parece ter mil. É dolorosamente irreal. Está condenada por crime de infanticídio. Matou o próprio filho ao nascer, mas antes devia ter matado outros, como matará os futuros com o seu olhar de círio perpetuamente ardendo na negridão das olheiras. Ao vê-la, lembra-se a gente das teorias dos criminalistas passados e principalmente das idéias de Maudsley sobre o crime e a loucura.
– Como te chamas?
– Olívia.
– Você não gosta das crianças? Um gesto negativo de cabeça.
– Antes já procurara tomar remédios para abortar, não?
É uma pergunta sem razão de ser. A menina curva a cabeça e desata a chorar. Tudo quanto se lhe perguntar sobre o seu horror à maternidade, Olívia é incapaz de negar. Não deve estar nessa enfermaria de detenção, mas num dos pátios do hospício. E, encolhida, com os cabelos esparsos nos travesseiros, a pele ressequida como um pergaminho muito tempo esfregado por óleos bárbaros, essa infanticida de quinze anos arreganha a face num ricto de angústia como um cadáver de asteca ao ressurgir à face da terra.
Neste momento, porém, houve um rebuliço. Chegavam os presos da colônia de Dois Rios à disposição do chefe. Fora ouviam-se os rugidos de um negro abjeto, o Bronze, enleado numa camisola-de-força, esperneando, espumando. Dois outros adolescentes bem dispostos, de chinelos novos que sorriam perfeitamente contentes com a sorte, perfilavam-se ao longe entre os guardas.
Não tivemos tempo de chegar à janela. Pelo corredor vinham vindo três mulheres. Traziam toda a roupa de zuarte e um lenço cobrindo o crânio pelado. A primeira era magra, magríssima, tossindo a cada instante, com as mãos em cruz sobre o peito. De vez em quando parava e a sua face exprimia a horrenda e inexprimível dor de uma agonia sem fim. A segunda, apagada, com os braços abertos, parecia não sentir mais as pernas. A última, com uma face de burguesa honesta na miséria, tinha um ventre enorme, um ventre hidrópico, um ventre colossal. Os guardas iam-nas tocando.
– Eia! pra diante! eia!
As duas primeiras passaram sem ver, com o olhar insensível. A última parou.
– Não posso mais. Vim para fazer operação. Oh! o meu martírio! De qualquer forma, sr. guarda, eu morro, mas deixe-me ao menos morrer quando chegar a hora definitiva.
– Mas esta mulher é inteligente!
– Pois se até ensina a ler. Aproximei-me:
– Ah! meu caro senhor, por piedade, peça ao ministro o meu perdão. Há três anos que sofro. O ódio de um inspetor, a falta de amigos e de proteção reduziram-me a este lamentável estado. Venho da colônia. Não me trataram como uma presa, trataram-me como uma pessoa digna de piedade. E apesar disso eu estou assim. Perdão para mim!
– E a senhora chama-se?
– Maria José Correia. Fui professora pública. .
Deus misericordioso! Que fatalidade sinistra arremessara aquele pobre ente inteligente, descendente de uma família honesta, à tropilha de uma colônia correcional? Que destino inclemente impele na sombra o homem, forma os vagalhões da popularidade, afoga uns, atira outros às estrelas e emaranha no dissabor e na tristeza a marcha do maior número? A essa mulher bastara perder o apoio da sociedade, para acabar no horizonte fechado de correcional todos os sonhos de ambição, todas as idéias felizes que os pais depositaram no seu espírito. Que lhe servia a visão superior do mundo na cloaca do crime e da luxúria? Que lhe servia ter ensinado às crianças o amor das coisas dignas, se o seu fim era acabar no eito da colônia, cavando a terra entre as desordeiras e as perdidas varridas da cidade?
Tomou-se uma espécie de medo, de fobia neurastênica. Recuei. O guarda dizia:
– Deixa de lambança, Maria. Todos te conhecem. Saiba V. Sa que é popular nos quiosques da Estrada de Ferro Central. Vai às cinco da manhã, e só deixa de beber quando os quiosques fecham. Antigamente servia-se da barriga para dizer que estava grávida e ser bem tratada na delegacia. Agora não há mais disso. É uma alcoólica mais malcriada que qualquer outra.
A mulher calou-se. As outras tinham parado e de repente a tísica, a que tinha na face a expressão horrenda de uma agonia sem fim, caiu de joelhos soluçando.
– Se eu tivesse o meu perdão. Nossa Senhora! não morreria aqui! Se eu tivesse o meu perdão, eu ia morrer sossegada.
Fora o sol enchia todo o pátio de um esplendor de puro líquido.
– Tudo limpo?
– Saiba V. Sa que ainda não.
– Pois apresse, apresse estas mulheres.
O chão de pedra estava cheio de lama. A água suja escorria da soleira da sala em dois grossos fios e as mulheres, de saia arregaçada, com pulos estranhos, davam gritinhos estridentes. Um cheiro especial, esquisito, pairava naquela galeria batida de sol, em que os metais reluziam. Os guardas tinham a fisionomia fechada.
– Quantas presas?
Há atualmente cinqüenta e oito, divididas por três salas, uma das quais é enfermaria. À falta de lugares, a promiscuidade é ignóbil nesses compartimentos transformados em cubículos. A maioria das detentas, mulatas ou negras, fúfias da última classe, são reincidentes, alcoólicas e desordeiras. Olho as duas salas com as portas de par em par abertas e fico aterrado. Há caras vivas de mulatinhas com olhos libidinosos dos macacos, há olhos amortecidos de bode em faces balofas de aguardente, há perfis esqueléticos de antigas belezas de calçada, sorrisos estúpidos navalhando bocas desdentadas, rostos brancos de medo, beiços trêmulos, e no meio dessa caricatura do abismo as cabeças oleosas das negras, os narizes chatos, as carapinhas imundas das negras alcoólicas. Alguns desses entes, lembra-me tê-los visto noutra prisão, no pátio dos delírios, no hospício. É possível? Haverá loucas na detenção como há agitados e imbecis? O Dr. Afrânio Peixoto, o psiquiatra eminente, dissera-me uma vez, apontando o pátio do hospício, onde, presas de agitação, as negras corriam clamando horrores aos céus: — Há algumas que têm quatro e cinco entradas aqui. Saem, tornam a beber e voltam fatalmente.
As mulheres tinham corrido todas para os fundos das salas, casquinando risinhos de medo. Naquela tropa, as alcóolicas andavam trôpegas, erguendo as saias com um ar palerma. Indiquei ao guarda uma delas.
– Venha cá, gritou ele.
As mulheres agitaram-se. Eu? Sou eu? Seu guarda, posso ir? O guarda tornou a chamar a massa abjeta e foi quase empurrada pelas outras que ela veio, meio envergonhada.
– Quantas vezes esteve no hospício?
A negra olhou para nós. Os seus olhos amarelos, raiados de sangue, abriram-se num esforço e ela balbuciou.
– Duas, sim senhor.
O álcool ou a preparava para a tísica rápida ou, dias depois, atiraria írremissívelmente para o manicômio.
As outras criaturas, dotadas de curiosidade irresistível, tinham-se aproximado das portas entre risadinhas e cochichos depravados, e eu pude assim, com calma e tranqüilidade, apreciar e interrogar todas as flores de enxurrada, todas essas venenosas parasitas do amor torpe num campo perdido do jardim do crime. Essas mulheres estão na detenção por coisas fúteis, coisas que cometem diariamente até à cólera final dos inspetores tolerantes ou a vingança de algum soldadinho apaixonado.
São moradoras do morro da Favela, das ruelas próximas ao quartel general, dos becos que deságuam no Largo da Lapa, das Ruas da Conceição, S. Jorge e Núncio. Quase sempre brigavam por causa de uma “tentação” que tentava e pretendia satisfazer as duas. Outras atiraram-se à cara dos apaixonados num desespero de bebedeira.
– Saiba V. Sa que da outra vez que estive aqui foi por causa do inspetor. Eu tinha o meu bajoujo; o bobo cheio de “fobó” estava-se endireitando. Mas veio de carrinho. O diabo vingou-se!
E logo outra, apoplética:
– Cá comigo é nove. Não gosto de presepadas. Ele era um rodelista. Quando a gente gosta de um homem, gosta mesmo, nem que bata o trinta e um.
Falavam uma língua imprevista e curiosa, cuspinhando; e olhando as pobres coitadas, não sabia eu bem se falava a mulheres velhas ou a mulheres novas, de tal forma aquelas faces e aqueles corpos estavam arruinados. Perguntei a uma pardinha cujos dentes eram brancos e que devia Ter sido bonita:
– Como se chama?
– Quantos anos tem?
– Francisca Maria.
– Tenho vinte.
E estava havia cinco naquela vida de horror. E assim a Carmem da Rua Morais e Vale, e assim a Carmelina com uma navalhada na face, vibrada pela rival enquanto dormia, e assim a velha Rosa Maria à espera da liberdade apenas para continuar o seu fadário e voltar à detenção. Todas estão tatuadas, tatuadas nos seios, ombros, tatuadas nos braços, nas pernas, no ventre, tatuadas nas mãos, algumas até tatuadas na testa. Esses riscos azuis e essas manchas negras dão-lhes um aspecto bárbaro, um ar selvagem. Nenhuma decerto tem mais família ou amizades duradouras. A tatuagem para os seus pobres corações apodrecidos é como a exteriorização da saudade. Muitas têm, entre espadas, cristos, sereias, peixes, coroas imperiais, o nome dos que lhes deram o ser, o nome dos irmãos, o dos filhos perdidos e dos amantes que se foram: muitas, nas horas de solidão, têm na própria pele a recordação da eterna dor.
Cavalhada da luxúria, correndo nos recantos da cidade ao lado da morte e do assassinato, destinada aos fins trágicos da miséria, da sífilis ou do ciúme feroz, os seus próprios corpos são como o perpétuo símbolo das suas adorações, os altares onde se confundem todos os sentimentos. A cabocla Carmelina, uma das mais tatuadas, tem de tudo no corpo e até as falanges formam com iniciais o nome do irmão. Os braços, ela os dedicou ao amor. Há nomes e nomes, uns por cima dos outros, alguns apenas em iniciais, outros por extenso. Examinando esses dois braços de Vênus asquerosa, que com o mesmo delírio e a mesma alma apertaram na chama da paixão apaixonados diversos, o guarda perguntou, como quem quer decifrar um enigma:
– E qual destes é querido agora?
Carmelina esticou o braço esquerdo, e todos nós lemos, enquanto ela sorria, o nome de Narciso, com uma cedilha de mais por baixo do c. A criatura amava um Narciso, e decerto naquele momento aos seus olhos surgia a imagem desse seu deus temporário.
Eu porém já me nauseara, e Antônio Barros, chefe dos guardas, sempre solícito, levou- me à enfermaria, onde havia apenas três doentes —a Herculana assassina, a negrinha Gabriela do Pontes e uma pequena, feia, magra, olheirenta, espapaçada na cama como uma das múmias americanas que o museu guarda na sua seção de etnografia. Essa criaturinha tem quinze anos e parece ter mil. É dolorosamente irreal. Está condenada por crime de infanticídio. Matou o próprio filho ao nascer, mas antes devia ter matado outros, como matará os futuros com o seu olhar de círio perpetuamente ardendo na negridão das olheiras. Ao vê-la, lembra-se a gente das teorias dos criminalistas passados e principalmente das idéias de Maudsley sobre o crime e a loucura.
– Como te chamas?
– Olívia.
– Você não gosta das crianças? Um gesto negativo de cabeça.
– Antes já procurara tomar remédios para abortar, não?
É uma pergunta sem razão de ser. A menina curva a cabeça e desata a chorar. Tudo quanto se lhe perguntar sobre o seu horror à maternidade, Olívia é incapaz de negar. Não deve estar nessa enfermaria de detenção, mas num dos pátios do hospício. E, encolhida, com os cabelos esparsos nos travesseiros, a pele ressequida como um pergaminho muito tempo esfregado por óleos bárbaros, essa infanticida de quinze anos arreganha a face num ricto de angústia como um cadáver de asteca ao ressurgir à face da terra.
Neste momento, porém, houve um rebuliço. Chegavam os presos da colônia de Dois Rios à disposição do chefe. Fora ouviam-se os rugidos de um negro abjeto, o Bronze, enleado numa camisola-de-força, esperneando, espumando. Dois outros adolescentes bem dispostos, de chinelos novos que sorriam perfeitamente contentes com a sorte, perfilavam-se ao longe entre os guardas.
Não tivemos tempo de chegar à janela. Pelo corredor vinham vindo três mulheres. Traziam toda a roupa de zuarte e um lenço cobrindo o crânio pelado. A primeira era magra, magríssima, tossindo a cada instante, com as mãos em cruz sobre o peito. De vez em quando parava e a sua face exprimia a horrenda e inexprimível dor de uma agonia sem fim. A segunda, apagada, com os braços abertos, parecia não sentir mais as pernas. A última, com uma face de burguesa honesta na miséria, tinha um ventre enorme, um ventre hidrópico, um ventre colossal. Os guardas iam-nas tocando.
– Eia! pra diante! eia!
As duas primeiras passaram sem ver, com o olhar insensível. A última parou.
– Não posso mais. Vim para fazer operação. Oh! o meu martírio! De qualquer forma, sr. guarda, eu morro, mas deixe-me ao menos morrer quando chegar a hora definitiva.
– Mas esta mulher é inteligente!
– Pois se até ensina a ler. Aproximei-me:
– Ah! meu caro senhor, por piedade, peça ao ministro o meu perdão. Há três anos que sofro. O ódio de um inspetor, a falta de amigos e de proteção reduziram-me a este lamentável estado. Venho da colônia. Não me trataram como uma presa, trataram-me como uma pessoa digna de piedade. E apesar disso eu estou assim. Perdão para mim!
– E a senhora chama-se?
– Maria José Correia. Fui professora pública. .
Deus misericordioso! Que fatalidade sinistra arremessara aquele pobre ente inteligente, descendente de uma família honesta, à tropilha de uma colônia correcional? Que destino inclemente impele na sombra o homem, forma os vagalhões da popularidade, afoga uns, atira outros às estrelas e emaranha no dissabor e na tristeza a marcha do maior número? A essa mulher bastara perder o apoio da sociedade, para acabar no horizonte fechado de correcional todos os sonhos de ambição, todas as idéias felizes que os pais depositaram no seu espírito. Que lhe servia a visão superior do mundo na cloaca do crime e da luxúria? Que lhe servia ter ensinado às crianças o amor das coisas dignas, se o seu fim era acabar no eito da colônia, cavando a terra entre as desordeiras e as perdidas varridas da cidade?
Tomou-se uma espécie de medo, de fobia neurastênica. Recuei. O guarda dizia:
– Deixa de lambança, Maria. Todos te conhecem. Saiba V. Sa que é popular nos quiosques da Estrada de Ferro Central. Vai às cinco da manhã, e só deixa de beber quando os quiosques fecham. Antigamente servia-se da barriga para dizer que estava grávida e ser bem tratada na delegacia. Agora não há mais disso. É uma alcoólica mais malcriada que qualquer outra.
A mulher calou-se. As outras tinham parado e de repente a tísica, a que tinha na face a expressão horrenda de uma agonia sem fim, caiu de joelhos soluçando.
– Se eu tivesse o meu perdão. Nossa Senhora! não morreria aqui! Se eu tivesse o meu perdão, eu ia morrer sossegada.
Fora o sol enchia todo o pátio de um esplendor de puro líquido.
João do Rio
De resto
De resto, quando as dores, os amigos,
os amores, a vida
já te tratam com apupos,
vaias, assobios, pateadas:
chute o balde,
desligue a tela,
Faça uma canção, Zelito!
Saboreie um livro, Januário!
Registre um instante, Véscio!
Reconstitua a madeira, Emanuel!
Afine a viola, Wescley!
Engendre um ideal, Heitor!
Usufrua de sua paleta, Pablo!
Nos ilumine em versos, Antônio Francisco!
Elilson José Batista, "Alumbramentos – Inéditos e Afins"
os amores, a vida
já te tratam com apupos,
vaias, assobios, pateadas:
chute o balde,
desligue a tela,
Faça uma canção, Zelito!
Saboreie um livro, Januário!
Registre um instante, Véscio!
Reconstitua a madeira, Emanuel!
Afine a viola, Wescley!
Engendre um ideal, Heitor!
Usufrua de sua paleta, Pablo!
Nos ilumine em versos, Antônio Francisco!
Elilson José Batista, "Alumbramentos – Inéditos e Afins"
O mistério da poesia
Não sei o nome desse poeta, acho que boliviano; apenas lhe conheço um poema, ensinado por um amigo. E só guardei os primeiros versos: Trabajar era bueno en el Sur. Cortar los árboles, hacer canoas de los troncos.
E tendo guardado esses dois versos tão simples, aqui me debruço ainda uma vez sobre o mistério da poesia.
O poema era grande, mas foram essas palavras que me emocionaram. Lembro-me delas às vezes, numa viagem; quando estou aborrecido, tenho notado que as murmuro para mim mesmo, de vez em quando, nesses momentos de tédio urbano. E elas produzem em mim uma espécie de consolo e de saudade não sei de quê.
Lembrei-me agora mesmo, no instante em que abria a máquina para trabalhar nessa coisa vã e cansativa que é fazer crônica.
De onde vem o efeito poético? É fácil dizer que vem do sentido dos versos; mas não é apenas do sentido. Se ele dissesse: Era bueno trabajar en el Sur, não creio que o poema pudesse me impressionar. Se no lugar de usar o infinito do verbo cortar e do verbo hacer usasse o passado, creio que isso enfraqueceria tudo. Penso no ritmo; ele sozinho não dá para explicar nada. Além disso, as palavras usadas são, rigorosamente, das mais banais da língua. Reparem que tudo está dito com os elementos mais simples: trabajar, era bueno, Sur, cortar, árboles, hacer canoas, troncos.
Isso me lembra um dos maiores versos de Camões, todo ele também com as palavras mais corriqueiras de nossa língua: “A grande dor das coisas que passaram.”
Talvez o que impressione seja mesmo isso: essa faculdade de dar um sentido solene e alto às palavras de todo dia. Nesse poema sul-americano a ideia da canoa é também um motivo de emoção.
Não há coisa mais simples e primitiva que uma canoa feita de um tronco de árvore; e acontece que muitas vezes a canoa é de uma grande beleza plástica. E de repente me ocorre que talvez esses versos me emocionem particularmente por causa de uma infância de beira-rio e de beira-mar. Mas não pode ser: o principal sentido dos versos é o do trabalho; um trabalho que era bom, não essa “necessidade aborrecida” de hoje. Desejo de fazer alguma coisa simples, honrada e bela, e imaginar que já se fez.
Fala-se muito em mistério poético; e não faltam poetas modernos que procurem esse mistério enunciando coisas obscuras, o que dá margem a muito equívoco e muita bobagem. Se na verdade existe muita poesia e muita carga de emoção em certos versos sem um sentido claro, isso não quer dizer que, turvando um pouco as águas, elas fiquem mais profundas…
Rubem Braga, "A traição das elegantes"
E tendo guardado esses dois versos tão simples, aqui me debruço ainda uma vez sobre o mistério da poesia.
O poema era grande, mas foram essas palavras que me emocionaram. Lembro-me delas às vezes, numa viagem; quando estou aborrecido, tenho notado que as murmuro para mim mesmo, de vez em quando, nesses momentos de tédio urbano. E elas produzem em mim uma espécie de consolo e de saudade não sei de quê.
Lembrei-me agora mesmo, no instante em que abria a máquina para trabalhar nessa coisa vã e cansativa que é fazer crônica.
De onde vem o efeito poético? É fácil dizer que vem do sentido dos versos; mas não é apenas do sentido. Se ele dissesse: Era bueno trabajar en el Sur, não creio que o poema pudesse me impressionar. Se no lugar de usar o infinito do verbo cortar e do verbo hacer usasse o passado, creio que isso enfraqueceria tudo. Penso no ritmo; ele sozinho não dá para explicar nada. Além disso, as palavras usadas são, rigorosamente, das mais banais da língua. Reparem que tudo está dito com os elementos mais simples: trabajar, era bueno, Sur, cortar, árboles, hacer canoas, troncos.
Isso me lembra um dos maiores versos de Camões, todo ele também com as palavras mais corriqueiras de nossa língua: “A grande dor das coisas que passaram.”
Talvez o que impressione seja mesmo isso: essa faculdade de dar um sentido solene e alto às palavras de todo dia. Nesse poema sul-americano a ideia da canoa é também um motivo de emoção.
Não há coisa mais simples e primitiva que uma canoa feita de um tronco de árvore; e acontece que muitas vezes a canoa é de uma grande beleza plástica. E de repente me ocorre que talvez esses versos me emocionem particularmente por causa de uma infância de beira-rio e de beira-mar. Mas não pode ser: o principal sentido dos versos é o do trabalho; um trabalho que era bom, não essa “necessidade aborrecida” de hoje. Desejo de fazer alguma coisa simples, honrada e bela, e imaginar que já se fez.
Fala-se muito em mistério poético; e não faltam poetas modernos que procurem esse mistério enunciando coisas obscuras, o que dá margem a muito equívoco e muita bobagem. Se na verdade existe muita poesia e muita carga de emoção em certos versos sem um sentido claro, isso não quer dizer que, turvando um pouco as águas, elas fiquem mais profundas…
Rubem Braga, "A traição das elegantes"
Os amantes da Terra Redonda
Despediam-se com lágrimas de nunca mais, quando um deles lembrou:
– A Terra é redonda!
E sorrindo seguiram então em direções opostas.
José Rezende Jr, "Estórias mínimas"
– A Terra é redonda!
E sorrindo seguiram então em direções opostas.
José Rezende Jr, "Estórias mínimas"
'Não me gritem!'
Os estudos poderiam querer enganar-nos, mas a realidade ainda somos nós quem a faz todos os dias. E certamente todos os dias há menos um espectador clássico de televisão, e no seu lugar nasce o programador da sua própria emissão, vista na plataforma que entende, às horas que quer, e como quer. Os estudos reconhecem-no, por piores que estas noticias sejam para os seus principais utilizadores, que constitui toda a gama de intermediários que nasce no produtor e acaba no consumidor. Nunca como hoje fomos tão donos das nossas escolhas – com dinheiro, sem dinheiro, em espaço público ou privado – o que deve dar dores de cabeça a quem tem por obrigação vender-nos “coisas” em massa. Costumo dizer que o único lugar onde ainda me apanham a ver publicidade num ecrã é mesmo nas Caixas Multibanco, porque sou forçado a esperar pelas instruções do bonequinho...
Ainda assim, deve haver uns “chatos” profissionais cuja missão consiste em atazanar a cabeça dos publicitários, dos compradores de espaço, dos negociadores dos canais de TV, e que ainda não perceberam quão prejudicial pode ser a publicidade martelada para quem só aguarda pacientemente pelo bloco de notícias seguinte.
Falo por mim. Escolho os raros programas que me interessam nas TV’s generalistas e de cabo, e opto por gravar e ver mais tarde, ou agarrar-me ao comando a puxar “a fita” para trás (tão anos 80, não é?). Mas confesso que ainda sou um “viciado” em noticias e, além de um dos 3 telejornais dos canais generalistas (vou alternando, sem grande critério...), acabo por “perder” mais alguns bocados da noite no clássico zapping por entre os canais informativos especializados (incluindo a CMTV, não me envergonha dizê-lo...). Imagino que, desorientados e sem margem de manobra, os negociadores de espaço, depois do “discurso oficial” sobre os media, que não estão a saber adaptar-se ao digital (como se eles tivessem no bolso a chave do tesouro...), cedam ou convençam ou se convençam que chegam lá pela insistência.
O resultado é trágico: além de desligar o som quando sou apanhado na curva por um bloco publicitário de longuíssimos minutos, tenho um top de marcas e produtos que, de tantas vezes me chamarem atrasado mental, martelando na mesma mensagem e no mesmo discurso, como se tivesse cinco anos, estão riscados da lista de potencial cliente, mesmo que “de borla”. A memória é manhosa, mas nunca me verão tomar Memofante; talvez pague os mais caros seguros do automóvel do mundo, mas não me passa pela cabeça ligar à Tele-seguro; o nome Trivago causa-me urticária; recuso-me a entrar na Worten; só a tiro de caçadeira abrirei conta no Bankinyter; e fujo a sete pés das promoções da marca Finish. Não adianta falar de automóveis e de promoções do mundo das telecomunicações, porque a confusão e a tentativa de canibalizar mercados chegou ao ponto de já não distinguir um BMW de um Renault. Este conjunto pequeno daquilo a que chamo “marcas-melga” está a afastar-nos até dos produtos de que potencialmente seríamos compradores e a que ainda nos prendia alguma publicidade: a imaginação, a criatividade, a surpresa, o momento bem escolhido para entrar “no ar”. No desespero de vender um pouco mais pela insistência, pela martelada, pela falsa ideia de que somos moscas atrás do néon iluminado, causa repulsa e só consegue incomodar.
Nos (escassos) casos contrários, uma marca consegue criar empatia até com aqueles que a podem dispensar, por fazer efectivamente parte dos seus dias. Recordo agora – e é recente - a campanha que assinalou os 90 anos da cerveja Superbock. Os filmes históricos. Os vídeos virais. As edições com receitas antigas. As garrafas e os rótulos. Sem incomodar em demasia. Escolhendo os espaços e horários adequados.
É um excelente exemplo para responder a esta espécie de esquizofrenia que tomou conta dos bocadinhos em que ainda “nos apanham” a ver televisão. Ninguém quer pensar nisto? Ou preferem continuar a perder tempo a dizer que os media estão perdidos e, nestas circunstancias, o melhor é assobiar para o ar e subir o volume do som quando gritamos, como a Mafaldinha, “não me gritem!”.
Nota – Todas as referências a marcas, produtos, e a escolha final dos anúncios, é pessoal, sem qualquer interferência de empresas de qualquer espécie, e inteiramente assumida como integrante de uma filosofia de vida onde a publicidade faz parte da comunicação e da informação. Aliás, nenhuma destas marcas foi sequer por mim contactada (ou me contactou) no âmbito desta ou de outra matéria. Infelizmente, no hipermercado da blogoesfera é preciso fazer estes tipo de "disclaimer"...
Pedro Rolo Duarte
Ainda assim, deve haver uns “chatos” profissionais cuja missão consiste em atazanar a cabeça dos publicitários, dos compradores de espaço, dos negociadores dos canais de TV, e que ainda não perceberam quão prejudicial pode ser a publicidade martelada para quem só aguarda pacientemente pelo bloco de notícias seguinte.
Falo por mim. Escolho os raros programas que me interessam nas TV’s generalistas e de cabo, e opto por gravar e ver mais tarde, ou agarrar-me ao comando a puxar “a fita” para trás (tão anos 80, não é?). Mas confesso que ainda sou um “viciado” em noticias e, além de um dos 3 telejornais dos canais generalistas (vou alternando, sem grande critério...), acabo por “perder” mais alguns bocados da noite no clássico zapping por entre os canais informativos especializados (incluindo a CMTV, não me envergonha dizê-lo...). Imagino que, desorientados e sem margem de manobra, os negociadores de espaço, depois do “discurso oficial” sobre os media, que não estão a saber adaptar-se ao digital (como se eles tivessem no bolso a chave do tesouro...), cedam ou convençam ou se convençam que chegam lá pela insistência.
O resultado é trágico: além de desligar o som quando sou apanhado na curva por um bloco publicitário de longuíssimos minutos, tenho um top de marcas e produtos que, de tantas vezes me chamarem atrasado mental, martelando na mesma mensagem e no mesmo discurso, como se tivesse cinco anos, estão riscados da lista de potencial cliente, mesmo que “de borla”. A memória é manhosa, mas nunca me verão tomar Memofante; talvez pague os mais caros seguros do automóvel do mundo, mas não me passa pela cabeça ligar à Tele-seguro; o nome Trivago causa-me urticária; recuso-me a entrar na Worten; só a tiro de caçadeira abrirei conta no Bankinyter; e fujo a sete pés das promoções da marca Finish. Não adianta falar de automóveis e de promoções do mundo das telecomunicações, porque a confusão e a tentativa de canibalizar mercados chegou ao ponto de já não distinguir um BMW de um Renault. Este conjunto pequeno daquilo a que chamo “marcas-melga” está a afastar-nos até dos produtos de que potencialmente seríamos compradores e a que ainda nos prendia alguma publicidade: a imaginação, a criatividade, a surpresa, o momento bem escolhido para entrar “no ar”. No desespero de vender um pouco mais pela insistência, pela martelada, pela falsa ideia de que somos moscas atrás do néon iluminado, causa repulsa e só consegue incomodar.
Nos (escassos) casos contrários, uma marca consegue criar empatia até com aqueles que a podem dispensar, por fazer efectivamente parte dos seus dias. Recordo agora – e é recente - a campanha que assinalou os 90 anos da cerveja Superbock. Os filmes históricos. Os vídeos virais. As edições com receitas antigas. As garrafas e os rótulos. Sem incomodar em demasia. Escolhendo os espaços e horários adequados.
É um excelente exemplo para responder a esta espécie de esquizofrenia que tomou conta dos bocadinhos em que ainda “nos apanham” a ver televisão. Ninguém quer pensar nisto? Ou preferem continuar a perder tempo a dizer que os media estão perdidos e, nestas circunstancias, o melhor é assobiar para o ar e subir o volume do som quando gritamos, como a Mafaldinha, “não me gritem!”.
Nota – Todas as referências a marcas, produtos, e a escolha final dos anúncios, é pessoal, sem qualquer interferência de empresas de qualquer espécie, e inteiramente assumida como integrante de uma filosofia de vida onde a publicidade faz parte da comunicação e da informação. Aliás, nenhuma destas marcas foi sequer por mim contactada (ou me contactou) no âmbito desta ou de outra matéria. Infelizmente, no hipermercado da blogoesfera é preciso fazer estes tipo de "disclaimer"...
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