sexta-feira, outubro 11

As Naus

O homem de nome Luís misturou-se com os ressuscitados que povoam as trevas de Lixboa, amanuenses sem plumas de falcão na boina, espadachins em desgraça a engolirem a sua sopa de mendigos a um canto, rabis de barbicha sebosa, a malta dos veleiros contrabandeando pelas mesas relógios e canetas a cinquentonas que tronavam diante do chá de tília da reforma, engraxadores moiros de vão de escada, de algibeiras cheias de escovas e de panos. Xarangas de bailes de bombeiros desafinavam no jogo do galo das travessas, eriçadas de carteiristas e polícias. Os homens-mulheres discutiam preços com os choferes dos carros, introduziam as cabeças enormes no intervalo dos vidros, trotavam a passo manso no sentido de uma pensão vizinha, três pisos de bacias com uma luz vermelha no cimo da escada, a ajudar as órbitas de toupeira vesga de quem chega. E discotecas semelhantes a caldeiras de barco e o suor do Tejo, por revoadas, de acordo com as manias das correntes, trazendo consigo vestígios de esgoto e de lugares perdidos.




Levado por um cardume de safios que desfolhavam sardinheiras de varanda com os dentes, flutuou pelos ministérios do Terreiro do Paço, frente ao rio, onde os aleijados tocavam nas arcadas sambas de rabeca e a amplidão da água se abria a seguir aos degraus que descem para o mar e aos retroseiros e cavernas de ginjinha da Rua Augusta. Os travestis ficaram definitivamente para trás com os seus colares de missanga e as suas écharpes de cocote, dado que esta praça, à hora de dormir, pertence a um silêncio de redoma antiga e aos acordeões dos cegos. Um deles, de instrumento às costas, marchou à minha frente, a agitar a bengalinha apressada, para Santa Apolónia, estação de carruagens de Franças, de Alemanhas e de Bélgicas com uma fila de táxis, à espera de viajantes e de malas, contornando o edifício enorme, mais monstruoso que uma caserna ou uma prisão, onde os sons se quebravam no cimento. Lá dentro, junto aos esguichos a ferver das locomotivas de partida, havia uma lâmpada de capitel de circo, uma esplanada em sossego, emigrantes que cabeceavam sobre embrulhos gordurosos e um funcionário idoso a varrer as beatas do chão para uma pá de alumínio. Por um momento o homem de nome Luís perdeu o cego das músicas, que trauteava a antena da ponteira pela gare adiante, de forma que acabou por sentar-se a uma mesa da esplanada com o pai amolgado num assento próximo, a olhar uma vendedeira de jornais e revistas que contava as notas do avental. Se chegasse a uma das portas topava com certeza o Tejo, isto é, torpedeiros e golfinhos e estivadores de blusa estampada e fervores de desembarque, as fábricas do Barreiro que principiavam a distinguir-se à medida que a linha do horizonte se definia, além do lombo da encosta.

Um empregado de casaco branco de que a cirrose do flúor acentuava as nódoas e os rasgões debruçou-se para mim como uma Pietà aborrecida, e pedi um quarto de água das pedras cujas bolhinhas saltavam do fundo como ovos de insecto: talvez que houvesse um cemitério complacente num intervalo da desordem de pombais e de telhados de Lixboa, com antenas de televisão cravadas nas lápides dos defuntos, e nisto cuidou distinguir o cego dos sambas, guiado pela vivacidade da bengala, a trotar ao longo da plataforma do foguete do Porto, mas atentando melhor não era ele e sim um agulheiro qualquer, de boné na cabeça, armado de uma espécie de pé de cabra comprido destinado a alterar o norte dos comboios. O empregado, sem clientes na esplanada vazia, veio sentar-se numa mesa a dois metros, a puxar cigarros do bolso, e o homem de nome Luís surpreendeu-se com o seu rosto de flibusteiro e o corpo mole, abatido em pregas redondas, à espera do colega da manhã.

Os dois, lado a lado, separados pelo morto, assistiram à chegada do pelotão das mulheres da limpeza, que se sumiu a arrastar os chinelos numa espécie de guarda-vento de hotel. Um casal de pedintes de botas sem atacadores, com sacos de plástico nos dedos, estendeu-se num banco de ripas a fim de descansar de infinitas peregrinações de mão estendida. Uma composição avançou a uivar para os longes de um túnel, e eu pensei Daqui a nada apagam as luzes e fico a mirar a lividez da aurora nos caixilhos do átrio, os prédios feios, de escritórios, lá de fora, encimados por clarabóias de estufa e habitados por traças funerárias. Ficamos, o empregado e eu, neste ilimitado espaço de carruagens, num silêncio de sótão que a bengala do cego percorre para trás e para a frente a tilintar sem repouso. As lâmpadas desmaiaram um pouco e o rio inchou para além das entradas laterais, sem barcos nem pássaros, crestado e rugoso como o fundo dos tachos. Uma voz anunciou aos microfones o rápido de Paris, e uma desordem de emigrantes em férias, embrutecidos pelo torpor da viagem, coxeou na direcção dos táxis arrumados em minguante junto aos edifícios de escritórios. O homem de nome Luís percebeu o cego no roldão dos passageiros, logo adiante de um senhor de gabardina que sacudia uma criança pelo braço, escutou o morse da ponteira no cimento, mas o da gabardina esfumou-se ao passar perto dele, dissolvido num grupo de malas às costas, cambaleando de sono. O empregado da esplanada, esquecido da esferográfica e do bloco das somas, levantou-se como um harmónio se desdobra e enfiou-se de viés numa espécie de arrecadação ou de cozinha: Aposto que vai apagar as luzes, pensei eu, aposto que vai trancar tudo agora que os franceses chegaram, correr as aldrabas, verificar os fechos, partir, abandonar-me a mim e ao cego nesta garagem de ecos e vapores. Então afastei a garrafa de água das pedras para um canto da mesa, agarrei na caneta e no caderno do criado sem ossos, sacudi-me melhor na cadeira, apoiei o cotovelo esquerdo no tampo, e de ponta da língua de fora e sobrancelhas unidas de esforço, comecei a primeira oitava heróica do poema.

António Lobo Antunes

Nenhum comentário:

Postar um comentário