quinta-feira, outubro 24

Sonho com a Terra Proibida

Nasci e cresci num apartamento muito pequeno, ao rés-do-chão, de teto baixo e medindo uns trinta metros quadrados: meus pais dormiam num sofá-cama que, ao ser aberto à noite, ocupava praticamente todo o espaço do quartinho deles. De manhã bem cedo, enfiavam esse sofá bem enfiado dentro dele mesmo, sumiam com a roupa de cama no escuro do caixote que lhe servia de base, viravam, encaixavam, empurravam e comprimiam o colchão, e estendiam uma forração cinza-clara sobre o sofá devidamente fechado e bem prensado. Por fim, espalhavam algumas almofadinhas orientais bordadas, fazendo desaparecer da vista qualquer vestígio do sono noturno. Deste modo, o quarto de dormir servia também de escritório, de biblioteca, de sala de jantar e de sala de visitas. 

Em frente a esse quarto e pintado de verde-claro, estava o meu quartinho, onde um armário parrudo ocupava mais da metade do espaço. Um corredor escuro e estreito, baixo e um pouco torto, como um túnel cavado para fugir da prisão, ligava os minúsculos cozinha e banheiro aos dois pequenos quartos. Uma lâmpada fraca, prisioneira de uma gaiola de ferro, espalhava por esse corredor, dia e noite, uma luz mortiça e triste. Havia apenas uma janela no quarto dos meus pais e uma no meu, ambas protegidas por venezianas de metal, ambas tentando desesperadamente vislumbrar através das frestas a paisagem que se estendia a oriente, mas conseguindo apenas avistar um cipreste poeirento e um muro de pedras irregulares. Por uma janelinha gradeada, a cozinha e o banheiro espiavam o pequeno pátio, que se assemelhava ao de uma prisão, com seu piso cimentado, cercado por muros altos. Pátio onde agonizava, por falta de um mísero raio de sol, um pálido gerânio plantado numa lata enferrujada de ervilhas. Sobre o peitoril das nossas janelinhas havia sempre potes de vidro lacrados com pepinos em conserva, ou algum cacto tristonho enterrado numa tigela que, depois de rachada, fora convocada a desempenhar a função de vaso de plantas. 

Era um apartamento semi-enterrado: o pavimento térreo do prédio fora escavado na encosta da montanha. E a montanha era o nosso vizinho do outro lado da parede - um vizinho pesado, introvertido e silencioso, uma velha montanha melancólica, com seus hábitos de solteirona inveterada; sonolenta, na sua quietude invernal, nunca arrastava móveis, nunca recebia visitas, jamais emitia algum som, não incomodava, mas pelas paredes que nos separavam alcançava-nos constantemente algo como um leve e persistente relento de bolor, e o frio, a escuridão, o silêncio e a umidade desse vizinho taciturno. 

E era assim que ao longo do verão perdurava sempre um pouco de inverno em nossa casa. 

As visitas diziam: Como é agradável a casa de vocês nos dias mais escaldantes de sharav. Como é fresquinho e tranquilo, até frio, mas como é que vocês aguentam isso aqui no inverno? As paredes não ressumam bolor? Não é meio deprimente? 


Dois quartinhos, um banheiro mínimo e uma cozinha apertada. Estes, e principalmente o corredor que os ligava, eram muito mal iluminados. Os livros estavam por toda a casa: meu pai lia em dezesseis ou dezessete idiomas diferentes e falava onze (todos eles com sotaque russo). Minha mãe falava seis ou sete idiomas e lia em sete ou oito. Falavam entre si em russo ou polonês quando não queriam que eu entendesse (quase sempre não queriam - quando mamãe disse uma vez na minha presença a palavra "cavalgadura" em hebraico, e não numa das outras línguas, meu pai ficou muito zangado e gritou com ela em russo:
"Sto s tavoi?! Videsh maltchik riodom s nami!" [Pare com isso! Você não vê que o menino está escutando?]). Se no mais das vezes liam livros em inglês e alemão por razões de ordem cultural, certamente era em ídiche que sonhavam à noite. Mas a mim só ensinaram hebraico: quem sabe temiam que, se eu ficasse conhecendo muitas línguas, também fosse seduzido pelos encantos da Europa maravilhosa e fatal. Pela escala de valores dos meus pais, quanto mais ocidental fosse uma coisa, mais alta se encontrava no plano da cultura. Por mais que Tolstoi e Dostoievski fossem caros a sua alma russa, tenho a impressão de que a Alemanha - apesar de Hitler - parecia-lhes mais culta do que a Rússia e a Polônia. A França, mais do que a Alemanha. A Inglaterra situava-se talvez um pouco acima da França. Quanto aos Estados Unidos, não estavam muito seguros: afinal, esse era um país onde as pessoas atiravam nos índios, assaltavam trens pagadores, cavavam à procura de ouro e caçavam mocinhas. 

A Europa era para eles a Terra Prometida proibida - o continente encantado dos campanários, das praças calçadas com pedras muito antigas, dos bondes, das pontes e torres de igrejas, das aldeias remotas, das fontes de águas medicinais, das florestas e dos prados cobertos de neve. 

As palavras "chalé", "prado" e "pastora de gansos" me fascinaram e comoveram durante toda a infância. Havia nelas a fragrância voluptuosa de um mundo genuíno, sereno, distante do zinco dos telhados empoeirados, dos terrenos baldios com suas carcaças enferrujadas e moitas espinhosas, das encostas áridas da Jerusalém sufocada sob o peso do verão esbranquiçado. Bastava sussurrar para mim mesmo "prado" - e já ouvia os mugidos das vacas com seus sininhos pendurados no pescoço e o murmúrio dos regatos. De olhos fechados, eu contemplava a linda pastora de gansos, que para mim era sexy até as lágrimas, antes mesmo que eu entendesse alguma coisa.
Amós Oz, "De amor e trevas"

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