sexta-feira, outubro 18

Rua do passado

Como quem ouve uma melodia muito triste, recordo a casinha em que nasci, no Caleijão. O des­tino fez-me conhecer casas bem maiores, casas onde parece que habita constantemente o tumulto, mas nenhuma eu trocaria pela nossa morada coberta de telha francesa e emboçada de cal por fora, que meu avô construiu com dinheiro ganho de-riba da água do mar. Mamãe-Velha lembrava sempre com orgu­lho a origem honrada da nossa casa. Pena que o meu avô tivesse morrido tão novo, sem gozar direi­tamente o produto do seu trabalho.

E lá toda a minha gente se fixou. Ela povoou-se das imagens que enchiam o nosso mundo. O nasci­mento dos meninos. O balanço da criação. O traba­lho das hortas e a fadiga de mandar a comida para os trabalhadores. A partida de Papai para a América. A ansiedade quando chegavam cartas. Os melhora­mentos a pouco e pouco introduzidos com os dóla­res que recebíamos. Mamãe deslisava como uma sombra silenciosa no trafêgo da casa. Mamãe-Velha não parava, indo de um lado para outro, como se nada pudesse fazer-se sem a sua fiscalização e os seus gritos. A minha avó só sabia querer a sua gente descompondo.

Ao lado da casa grande, de quatro quartos, ficava a casinha desaguada, onde Mamãe fazia a despensa, e que nos dias de chuva servia para abrigar as gali­nhas da criação. Encostada à casa de moradia, ela tinha de longe, com o seu teto retangular, inclinado para drenar a água, um ar de bezerro a pojar nas mamas da mãe.

Baltasar Lopes, "Chiquinho"

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