— Ó basbaque, que fazes aí? Vejam só: chocando os ovos! Isso é serviço de tua mulher, basbaque!
Não é de crer que o corvo deixasse de dar as suas razões; deu-as, e numa linguagem de corvo, gritando. Contudo, ninguém o ouviu. Os tais pastores levaram o dia inteiro torturando-o com as suas pilhérias, até que um deles resolveu levá-lo consigo para a aldeia. Mas no dia seguinte, não sabendo o que fazer deste corvo enorme, dependurou-lhe, como lembrança, um guizo de bronze ao colo e o libertou de novo:
— Goza!
Só mesmo o corvo é que poderá saber a impressão que lhe causou aquele guizo sonoro, porque o arrastou consigo para o céu. Vendo-o voar, voar amplamente, cada vez mais alto, dir-se-ia que ele estivesse satisfeito, já agora esquecido do ninho e da mulher.
— Dim dimdim, dim dimdim...
Os camponeses que trabalhavam debruçados sobre a terra, ouviam aqueles guizos e erguiam o pescoço; olhavam aqui, ali, pela planície imensa que se estendia sob o incêndio do sol:
— Que é que está tocando? De onde vem esse som?
Mas se não havia vento, de que igreja distante podia chegar até eles esse bimbalhar festivo?
Supunham tudo menos que fosse um corvo no azul do céu.
— Espíritos! — pensou Ciché, que trabalhava sozinho numa herdade, atento a desencavar conchas em torno de alguns frutos de amendoeira, a fim de enchê-las de estrume. E fez-se o sinal da cruz. Porque ele acreditava piamente na existência de espíritos. Fizera experiências em outras ocasiões. E até ao voltar, certa noite, do campo, pela estrada que margeia as Fornaci extintas, que era onde eles moravam, no dizer de todos, ouviu que o chamavam. — Ciché! Ciché! E sentiu que os cabelos se eriçavam sob o boné.
Aquele bimbalhar ele o ouvira a princípio, à distância, depois mais perto, e depois novamente à distância. Em redor não havia viva alma: campo, árvores e plantas, que não falavam, sentiam, que com a sua impassibilidade tinham aumentado o seu espanto. À hora da merenda, que consistia num pedaço de pão e numa cebola, que trouxera de casa e que deixara dependurada numa sacola, perto dele, junto com o paletó, a uma árvore de oliveira, não encontrou a cebola; encontrou apenas o pedaço de pão. E foi assim durante três dias em seguida.
Não disse nada a ninguém, porque sabia que quando os Espíritos começam a atormentar uma pessoa, ai de quem se lamente! Fazem pior.
— Não me sinto bem — respondia Ciché, ao voltar de tarde para casa, à mulher que lhe perguntava a razão daquele seu aspecto transtornado.
— Mas, ao menos, coma! — observava-lhe a companheira, vendo que ele engolia duas ou três colheradas de sopa, uma após outra.
— Sim, como! — Mastigava Ciché, em jejum desde a manhã e com ódio por não poder abrir-se com a esposa.
Até que por todo o campo se espalhou a notícia daquele corvo ladrão que andava tocando o guizo pelo céu.
Ciché teve a desdita de não rir do caso como os demais camponeses, que também andavam com apreensões.
— Prometo e juro — disse ele — que me pagará caro a brincadeira!
E que fez? Trouxe na sacola, junto com o pedaço de pão e a cebola, quatro favas secas e quatro costuradas a barbante. Assim que chegou à herdade, tirou selim ao asno e o soltou pelo campo, livremente. Ciché falava com o asno como se fala com um cristão; e o asno, ora erguendo esta, ora erguendo aquela outra orelha, de quando em quando rugia, como se lhe respondesse a seu modo.
— Vá, Chico, vá — disse-lhe nesse dia Ciché. — E esteja atento, porque nos divertiremos!
Furou as favas; amarrou as quatro costuradas a barbante no selim, e as colocou em terra sobre a sacola. Depois afastou-se para começar a trabalhar.
Passou uma hora; passaram duas. De quando em quando, julgando ouvir o som da campainha pelo ar ele erguia o corpo e aprumava as orelhas. Nada. E continuava de movo a carpir.
Chegou a hora da ceia. Perplexo, sem saber se havia de ir logo ao pão ou esperar ainda um pouco, Ciché por fim se decidiu; vendo, porém, tão bem preparada a cilada, resolveu não mexer nela. Nisto, ouviu claramente um tinido distante. Ergueu a cabeça:
— Ei-lo!
E quieto e inclinado, com o coração que lhe pulsava violentamente, deixou o lugar e se escondeu ao longe.
Mas o corvo, como se se estivesse deliciando com o som da campainha, voava, voava, revoava, sempre no alto, cada vez mais alto e não tratava de descer.
— Desconfio que me está vendo — pensou Ciché; e ergueu-se para ir esconder-se mais longe.
O corvo continuou voando sem dar demonstrações de que pretendia descer. Ciché estava com fome, mas mesmo assim não queria dar-se por vencido. Pôs-se de novo a carpir. Espera, espera, e o corvo sempre no alto, como se estivesse fazendo de propósito. Esfomeado, com o pão a dois passos dali, meus senhores, e sem poder pegá-lo! Ciché remoia-se todo por dentro, mas resistia, indignado, obstinado.
— Hás de descer! hás de descer! Também tu hás de ter fome!
O corvo, entretanto, do alto do céu, com o som da campainha, parecia que lhe respondia irônico:
— Nem tu nem eu! Nem tu nem eu!
Passou-se assim o dia. Ciché, exasperado, desafogou-se com o asno, tornando a meter-lhe o selim, de que pendiam, como um adorno de novo gênero, as quatro favas. E enquanto caminhava, mordeu indignado aquele pão, que fora o seu suplício o dia inteiro. A cada mordida, soltava um palavrão para o corvo: — carrasco, ladrão, traidor... — porque não se deixara prender na cilada.
Mas no dia seguinte tudo correu bem.
Armada a cilada das favas com o mesmo cuidado, pusera-se a trabalhar quando ouviu um bimbalhar convulso ali perto e um grasnar desesperado, entre um furioso sacudir de asas. Foi ver o que era. O corvo estava ali, preso pelo barbante que lhe saía do bico e o estrangulara.
— Ah, caíste? — gritou-lhe ele, aferrando-o pelas asas enormes. — É boa a fava? Agora é a minha vez, besta feroz! Vais ver.
Cortou o barbante e, para começar, aplicou dois piparotes na cabeça do corvo.
— Este pelo medo e este pelo jejum!
O asno que não estava muito disposto a arrancar as ervas do caminho, ouvindo grasnar o corvo saiu correndo, em disparada, assustado. Ciché fê-lo parar com um grito e de longe lhe mostrou a besta negra:
— Ei-lo aqui, Chico! Prendemo-lo! Amarrou-o pelos pés, dependurou-o na árvore e voltou ao trabalho. Enquanto carpia, pôs-se a pensar na desforra. Ter-lhe-ia cortado as asas, para que não pudesse nunca mais voar; depois o entregaria aos filhos e as crianças da vizinhança para que se divertissem à custa dele. E ria, ria, entre dentes.
Ao anoitecer, colocou o selim no asno, desamarrou o corvo e prendeu-o pelos pés ao rabicho do asno; cavalgou e se pôs a caminho de casa. A campainha amarrada ao pescoço do corvo, começou a tilintar. O asno eriçou as orelhas e se pôs em pé.
— Vamos! — gritou-lhe Ciché, dando um soco na cabeça do animal.
E o asno se pôs de novo a caminho, não muito conformado com aquele som insólito que acompanhara o seu lento trotear sobre a poeira da estrada.
Ciché começou a pensar que desse dia em diante ninguém mais havia de ouvir bimbalhar no céu o corvo de Mizzaro. Tinha-o ali e não dava mais sinal de vida.
— Que fazes? — lhe perguntou, virando-se e dando-lhe uma chicotada. — Estás dormindo?
O corvo, em resposta ao látego:
— Cráh!
Diante dessa voz inesperada, o asno estacou de golpe, com as orelhas estendidas.
Ciché explodiu numa risada.
— Vamos, Chico! De que te assustas?
E com a corda bateu na orelha do asno. Pouco depois, de novo, repetiu a pergunta ao corvo:
— Adormeceste?
E uma chicotada mais forte. E o corvo, por sua vez, mais forte ainda:
— Cráh!
Mas desta vez o asno deu um salto e saiu em disparada. Em vão Ciché, com toda a força dos braços e das pernas, procurou detê-lo. O corvo, sacudido naquela corrida desenfreada, começou a grasnar como um desesperado: e quanto mais grasnava tanto mais o asno corria, espantado.
— Cráh! Cráh! Cráh!
Ciché gritava, por sua vez, puxava a rédea, puxava, mas já agora as duas bestas pareciam enfurecidas pelo espanto que se incutiam mutuamente, uma grasnando e a outra fugindo. Ecoou, durante certo tempo, dentro da noite, a fúria daquela corrida desenfreada; ouviu-se depois um formidável tombo, e mais nada.
No dia seguinte. Ciché foi encontrado, no fundo de um barranco, esfacelado, sob o asno também esfacelado: uma carniça que fumegava sob o sol, entre nuvens de moscas.
O corvo de Mizzaro, negro no azul da formosa manhã, soava de novo pelos céus a sua campainha, livre e feliz.
Luigi Pirandello
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