Dulce Maria Cardoso
quarta-feira, outubro 30
Olhar do cão
A minha vida é sempre assim, antes e depois. E foi uma coisa que até podia ser literária. O olhar de um cão. O que me fez pensar no que andamos aqui a fazer foi o olhar de um cão. Era um cão abandonado que os meus pais recolheram e trataram, e a certa altura o veterinário disse que era impossível. Decidiu-se eutanasiá-lo. E eu, claro, não queria ir. O cão não me era muito próximo, tenho uma memória que nunca mais apaga e sabia que ia ficar com aquilo. Mas por qualquer motivo começou a encostar-se a mim e decidi que ia com ele até ao veterinário e depois não assistia. Mas lá, pior, pôs a cabeça sobre o meu colo, de forma impositiva. Tentaram tirá-lo e ele insistia. E eu disse: fico. Foi muito pacífico, muito belo mas naquele momento entre levar a injeção e morrer ele inclinou a cabeça para mim, com um olhar... O olhar dos cães é muito expressivo, mas era um olhar inquietante. E eu, durante um ano, dois, fiquei com o olhar do cão. Intrigou-me. E um dia estava naquelas minhas defesas - das mulheres, dos negros, dos ciganos, de todos os excluídos - e percebi: "Há aqui um grupo enorme de desprotegidos que nem sequer considero, que são os outros animais."
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário