sexta-feira, outubro 11

As Marias

Maria, filha de Maria, a filha de Maria, tem trinta e um desgostos. Lava a roupa, lava a louça, varre que varre, e a patroa – Jesus Maria José? – a patroa ralhando.

Aos sete anos, foi esquecida pela mãe na primeira esquina. Mulher cheia de filhos, não podia com mais um: deu a pobre da Maria.

Sempre em casa estranha, dormindo em cama-de-vento, comendo em pé ao lado do fogão. Trabalhadeira, era de confiança e não tinha boca para pedir. Pálida, vivia debaixo de chá de ervas. Sonhando, rilhava os dentes, com as bichas alvoraçadas. Maria, ai dela, nunca soube qual o gosto de uma pêra-d’água! O guarda-comida trancado a chave, ela roía com fome um naco de rapadura, escondida sob o travesseiro.

Lenço amarrado na bochecha, usava cera milagrosa para dor de dente – até que perdia o dente. Vagarosa por culpa de unha encravada. De lidar na potassa, partiam-se os dedos e sofria de panarício. Nunca se despedia, era despachada pela patroa, aborrecida de suas aflições e sua cara de pamonha.

Ao rolar de uma para outra casa, engordava com os anos, gemia de dor nas cadeiras e enleava-se no serviço. Sua alegria era lavar o cueiro do bebê. Ah, mas beijar a criancinha...

- Está proibida, ouviu, Maria?

Criada não conhece o seu lugar, podia ter alguma doença.

Menina séria, não ia ao baile com as outras. No carão anêmico esfregava papel de seda escarlate molhado na língua e, mal surgia à janela, a espiar um soldadinho verde, a patroa ralhava.

- Maria, já escolheu o arroz?

- Maria, já passou a roupa?

- Já encerou a casa, ó Maria?

Areada a chapa do fogão, guardava a louça, varrida a cozinha, chegava-se medrosa à porta. O soldado rondava, parava, batia continência. Tinha pressa como soldado era de guerra: queria pegar na mão e cobrir de beijos.

- Deus me livre, podia ter algumas doenças!

Maria faz o sinal-da-cruz: a boca só o marido é que iria beijar.

Onde estão os praças de cavalaria, o tinir das esporas na calçada? Trinta e um anos de Maria! Até proibida de passear com a Maria.

- Pois vá chorar no quarto – ordena-lhe a patroa. – Não suporto cena de gentinha!

Essa Maria, um objeto de casa, o capacho da porta, a vassoura no prego.

Maria não vai ao circo, o palhaço é tão gozado.

Maria não vai ao Passeio Público ver o macaquinho comer banana.

Maria não vai ao cineminha na sexta-feira assistir à Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Maria, a filha de Maria, distraída no domingo com a Marta, viu seu coração rolar do peito e, prato que lhe escapou dos dedos gordurosos ( a patroa vai ralhar?), partir-se em sete pedaços de sangue pelo chão.

Era um cabo? Maria nunca soube de que arma. Falava lindo e tão difícil, puxando no xis – vixto, mocinha? – que ela saltitar ora numa perna ora noutra, esganada roía as unhas.

- Tem gente, cabo. Você me respeite, ó cabo?

Ele a levou ao circo e Maria entrou soberba como uma patroa entre a gentinha que fazia cena: no pescoço a velha pele de coelho mordendo a cauda. A charanga, o peludo de cara pintada, o cabo das grandes botas de general. Um palhaço xinga o outro de “Gigolô”!, o circo vem abaixo de tanta gargalhada. Maria sorri, o cabo lhe tira sangue do peito.

- Ocê me deixa louco, Maria.

Sob o espanto do baleiro, anunciando “Oia a bala oi...”, ela beijou a mão do cabo.

Em nove meses Maria, filha de Maria, vai ser mãe de Maria.

Dalton Trevisan

Nenhum comentário:

Postar um comentário