— Sabe o que significa acordar no meio da noite com a voz gélida de um soldado israelense dizendo para evacuar imediatamente porque os aviões vão bombardear sua área? — questiona. — Isso não pode ser chamado de vida. A rotina no Líbano virou apenas uma espera angustiante pela nossa vez de morrer.
O relógio no pulso de Joumana Haddad é como um alarme fora de controle. O tique-taque baixinho e constante sinaliza, como ela indica, que a cada instante alguém morre num local muitíssimo próximo. “Parece uma bomba prestes a explodir”, a escritora compara. São 3h30 da manhã, e um sem-número de artefatos de destruição desaba sobre Beirute, capital do Líbano, como a autora avisa, numa mensagem de áudio enviada a este repórter, na última semana. As janelas de sua casa tremem. Ouvem-se berros, latidos. O horror está logo ali. E ela não consegue dormir.
Escritora, jornalista e voz ativa numa nação com a história marcada por décadas e décadas de guerras, Joumana Haddad desembarcaria no Rio de Janeiro, no início deste mês, para acompanhar a estreia da primeira adaptação teatral do elogiado livro “Eu matei Sherazade”, publicado no Brasil pela editora Record. A escalada dos conflitos em seu país, alvo de ataques do exército de Israel — em bombardeios intensificados nos últimos dias em Beirute, onde ela mora — , a impossibilitou de sair. Ao GLOBO, Joumana ressalta que não aguenta mais “renascer das cinzas” e celebra, de longe, o sucesso do monólogo inspirado em sua obra, com a atriz Carol Chalita, em cartaz até 27 de novembro no Teatro Poeira, em Botafogo, na Zona Sul da capital fluminense.
Qual é a situação em que você e sua família estão? Como têm sido seus dias no Líbano?
Minha rotina em Beirute? É testemunhar diariamente a destruição e o extermínio. É viver em absoluto terror. É assistir a bombas caindo, ouvir gritos, ver crianças chorando e não conseguir dormir e comer. Como alguém aqui pode dormir com todas essas explosões ao redor e todo esse medo dentro de nós?
Imagino que você tenha presenciado, na infância, a Guerra Civil Libanesa, além de outros conflitos que marcaram a história do país.
Testemunhei tantas guerras e tragédias neste país, desde que era criança, que às vezes sinto que tenho 100 anos. Guerra civil, assassinatos, explosões, colapso econômico... Trauma após trauma. Estamos presos num ciclo interminável de morte e desespero. É como se nós, libaneses, estivéssemos destinados a ser eternos “danos colaterais”. E sabemos que não podemos fazer nada. Nós, cidadãos comuns, nos sentimos completamente impotentes, já que as decisões não estão em nossas mãos. Nosso destino é pagar o preço pelo que outros decidem e fazem.
Estou cansada da metáfora da Fênix sempre que falam do Líbano. Estou cansada de ouvir que somos um povo resiliente. Não queremos ser resilientes. Queremos viver. Merecemos viver. Hoje, todos estão falando sobre o Líbano. Mas por que temos que sofrer para que o mundo nos veja? Até que digam “basta”, quantas pessoas terão que morrer? Não somos seres humanos. Somos meros alvos.
Você já disse que incentiva seus filhos a deixarem o Líbano, e que está aí por uma “escolha” pautada por fatos que não aprova no país — como a situação das mulheres — e quer continuar criticando. É uma decisão política permanecer no Líbano?
Nunca disse que “incentivo” meus filhos a saírem. O que falei foi que não interfiro nas decisões deles e, se a decisão deles é sair, então eles devem fazer isso, porque é a vida deles, e a escolha deles. Respeito isso completamente. Mas, pessoalmente, nunca sairia daqui, embora pudesse fazer isso facilmente, já que também tenho nacionalidade europeia. É mais do que uma decisão política. É uma decisão intelectual, social e emocional. Não conseguiria escrever, sentir, pensar ou mesmo respirar se deixasse meu país. Entre os dois infernos — ficar ou sair —, escolhi o primeiro.
Alguns libaneses dizem que a vida precisa seguir sua rotina — com pessoas trabalhando, indo ao mercado ou à academia, passeando com cachorros —, mas, em meio ao conflito bélico, há a constante sensação de pavor. Dá para viver entre esses polos?
Não acho que agora alguém tenha uma “vida comum” no Líbano. A verdade é que nenhum lugar é seguro, e nenhuma pessoa está a salvo. Sem mencionar a quantidade de 1,5 milhão de deslocados, muitos dos quais estão dormindo nas ruas ou em abrigos, seja porque suas casas foram bombardeadas, seja porque podem ser atingidas em breve. Como levar uma vida “normal” ao ver milhares de pessoas em calçadas e praças, sofrendo tremendamente? Não acho que alguém esteja em tal negação ou tão desprovido de humanidade e compaixão a ponto de conseguir esquecer o que está acontecendo.
Você sempre foi uma defensora das mulheres árabes e da liberdade de expressão. Como as mulheres no Líbano estão sendo afetadas pelo novo conflito?
Como já disse e escrevi repetidamente, os homens fazem a guerra, e as mulheres pagam o preço. Agora, mais de meio milhão de mulheres e meninas estão deslocadas e em extrema necessidade por abrigo e segurança. E sabemos que as taxas de violência doméstica aumentam durante crises, à medida que vários homens descontam suas frustrações em mulheres e crianças. Comida, medicamentos e outras necessidades básicas seguem escassos; milhares de mulheres grávidas estão em situação de angústia, pois várias delas devem dar à luz nos próximos três meses... Há uma quantidade intolerável de incerteza e medo.
Em “Eu matei Sherazade”, o assassinato da lendária personagem de “As mil e uma noites” representa, a rigor, o fim da submissão das mulheres. Como você vê a relevância dessa narrativa sendo adaptada no Brasil?
O sexismo e outros componentes patriarcais ainda estão vivos em todo o mundo, na Europa, nos Estados Unidos, nos países árabes ou na América Latina. Continuamos a ouvir histórias horríveis de feminicídios, violência doméstica e discriminação. Infelizmente, esse meu texto ainda é pertinente e reflete o estado atual das coisas em muitas regiões e culturas, mesmo tendo sido escrito há 15 anos. Realmente, espero que um dia ele se torne obsoleto, porque aí todas essas injustiças terão desaparecido. Mas, honestamente, não sei se isso acontecerá em breve... O patriarcado é um sistema de governo profundamente enraizado na política, na religião, na economia, na sociedade, na polícia. É como um dragão com várias cabeças.
Percebe mudanças positivas na realidade de mulheres árabes nos últimos anos?
Notei uma mudança positiva — o fato de que as mulheres estão com mais voz para falar sobre as dificuldades que enfrentam. O universo digital incentiva que elas apontem o dedo e responsabilizem homens machistas ou instituições patriarcais. Esse é o único efeito construtivo da redes sociais, ambiente assolado por ódio, superficialidade e bullying.
Como você vê hoje o papel da literatura diante da guerra?
Tenho que admitir que me sinto pessimista sobre qualquer papel que a literatura possa desempenhar em tempos como estes. O mundo atingiu um nível de criminalidade e desumanidade que me deixa profundamente chocada e me faz sentir cada vez mais impotente em relação ao papel da literatura. Sim, usamos palavras e a arte para expor fatos da realidade e envergonhar os outros. Mas isso pode levar a uma mudança? Infelizmente, não.
Mas há algo em particular que você sentiria necessidade de expressar por meio da arte?
A política é cínica demais para ser influenciada ou movida pela criatividade. É particularmente terrível e desanimador ver como, nos mais altos níveis de governança mundial, parece não haver interesse ou urgência em remediar essa situação dramática da guerra. O que vemos são promessas vazias apenas para preencher o silêncio com palavras inúteis. Em teoria, a comunidade internacional, composta por países que se consideram as “grandes potências do mundo”, tem todos os recursos necessários para iniciar uma solução real ou uma mudança duradoura. A realidade, porém, é que todos continuam indiferentes ao massacre e ao sofrimento incalculável de milhares de vítimas inocentes, porque todos eles, no Ocidente e no Oriente, usam nossa miséria para negociar lucros políticos, estratégicos e monetários nos bastidores.
No Brasil, o livro “Eu matei Sherazade” tem sido celebrado desde que foi publicado. Surpreende-se?
Amo o povo brasileiro e sou muito grata por meu livro ser tão bem recebido. Quando visitei diferentes partes do país, há alguns anos, logo me senti em casa. Já entendo o português, mas ainda não consigo falar. Estou aprendendo... Fiquei de coração partido por não poder participar da estreia da peça baseada no meu livro, da extraordinária atriz Carol Chalita. Mas não poderia deixar minha família para trás, sem saber se poderia voltar ou não.
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