segunda-feira, outubro 28

Catecismo do japonês

Hindu
É verdade que antigamente os japoneses não sabiam cozinhar, que haviam entregue seu reino ao grande lama, que o grande lama decidia soberanamente do que devíeis comer e beber e de tempos em tempos vos enviava um pequeno lama a fim de cobrar tributos, pagando-vos com um sinal de proteção feito com os dois primeiros dedos e o polegar?

Japonês

Ai! Nada mais verdadeiro. Todos os cargos de canusi – os grandes cozinheiros da nossa ilha – conferia-os o lama, e não certamente por amor de Deus. Além disso todas as famílias seculares pagavam uma onça de prata por ano a esse grande cozinheiro do Tibete. Em paga dava-nos minguados pratos de horrível paladar chamados sobejos. E quando lhe dava na veneta alguma nova fantasia, como declarar guerra aos povos do Tangate, escorchava-nos com subsídios suplementares. Muitas vezes nos queixamos, porém baldamente, quando não nos fazia pagar mais ainda. Por fim o amor, que tudo resolve maravilhosamente, libertou-nos dessa servidão. Um de nossos imperadores desaveio-se com o grande lama por causa. de uma mulher. Mas devo confessar que quem mais nos valeram nessa questão foram os nossos canusi, também chamados paiscospie. A eles devemos a libertação.

Eis o que se deu.

O grande lama tinha uma mania engraçada: julgava sempre ter razão. Uma vez ou outra, pelo menos, queriam os nossos canusi tê-la também. O grande lama achou absurda tamanha pretensão. Nossos canusi não arredaram pé e romperam definitivamente com ele.

Hindu
E de então em diante vivestes sem dúvida felizes e tranquilos?

Japonês
Não inteiramente. Fomos perseguidos, dilacerados, devorados durante perto de dois séculos. Em vão pleiteavam nossos canusi ter razão. Somente há cem anos são razoáveis. Também, desde então podemos orgulhosamente considerar-nos uma das nações mais felizes da terra.

Hindu
Como podeis ser felizes se – a crer no que me disseram – vosso império se acha dilacerado por doze facções de cozinha? No mínimo tereis doze guerras civis por ano.

Japonês
Por que? Será que por termos doze chefes de cozinha, cada qual com uma receita diferente, deveremos matar-nos em vez de jantar? Pelo contrário, comeremos todos às mil maravilhas, cada um do cozinheiro que mais lhe agradar.

Hindu
De fato gostos não se devem discutir. A história, porém, é que ninguém se compenetra disso. Discutem, e da discussão às do cabo é um passo.

Japonês
Depois de muito discutirmos, vendo que com isso só tínhamos que perder, acabamos optando tolerar-nos mutuamente. Era, não há dúvida, o melhor partido que nos restava tomar.

Hindu
Poderíeis dizer-me quais são os chefes de cozinha que partilham a vossa nação na arte de beber e comer?

Japonês
Primeiramente há os breuseh, que em caso algum vos dariam morcela ou lardo. Preconizam as fontes puras da cozinha do tempo do onça. Prefeririam morrer a mordiscar um frango. Quanto ao mais, exímios calculadores, e fosse o caso de dividir uma onça de prata entre eles e os onze outros cozinheiros, açambarcariam logo a metade, deixando o resto para os que melhor soubessem contar.

Hindu
Presumo não costumais cear com gente tão esdrúxula?

Japonês
Claro. Em seguida vêm os pispatas, que em determinados dias da semana e em boa parte do ano prefeririam cem vezes comer rodelas de rodovalhos, trutas, linguados, salmões, esturjões, a saborear uma fritada de vitela que lhes ficaria por um nada.

Quanto a nós outros canusi, somos devotos apreciadores de carne de vaca e de certa pastelaria que em japonês se diz pudim. Toda gente convém em que os nossos cozinheiros sejam muito mais hábeis que os dos pispatas. Ninguém melhor que nós sabe preparar o garum dos romanos, as cebolas do antigo Egito, a pasta de gafanhoto dos primeiros árabes, a carne de cavalo dos tártaros. Sempre há o que aprender nos livros dos canusi, comumente chamados paiscospie.

Escuso-me de falar dos que comem a Teluro, assim como dos adeptos do regime de Vicalno, dos batistandos e que tais. Os quekars, porém, merecem atenção particular. São os únicos convivas que nunca vi se emborracharem nem praguejarem. Dificílimos de enganar, também nunca enganam ninguém. Parece que a lei que manda amar o próximo como a si mesmo foi feita especialmente para eles. Porque, verdade se diga, como pode um japonês dizer amar o próximo como a si próprio se por uma bagatela mete-lhe uma bala de chumbo na cabeça ou decapita-o com um cris de quatro dedos de largo? Quando ele próprio vive em constante risco de ser degolado ou engolir balas de chumbo? Com mais propriedade se dirá que ele odeia o próximo como a si mesmo. Os quekars nunca tiveram desses furores. Dizem eles serem os homens efêmeros vasos de argila e que não vale a pena se despedaçarem deliberadamente uns contra os outros.

Confesso que se não fosse canusi não me desagradaria ser quekar. Força é reconhecer que não há meio de brigar com cozinheiros tão pacíficos. Há outros, em número incontável, a que chamamos diestas. Dão os diestas de comer a toda gente indiferentemente e em sua casa sois livre de comer o que vos der na língua - recheado, lardeado, sem recheio, sem lardo, com ovos, com óleo; perdiz, salmão, vinho palhete, vinho tinto, tudo lhes é indiferente. Contanto que façais alguma oração a Deus antes ou após o jantar, ou simplesmente antes do almoço, e sejais honrado, de bom grado rirão convosco à custa do grande lama, de Vicalno, de Memnão e o mais que segue. Felizmente reconhecem que nossos canusi são doutíssimos em matéria culinária, e sobretudo nunca falam em cercear nossas rendas. Assim, vivemos na mais edênica harmonia.

Hindu
Mas a final deve haver uma cozinha predominante, a cozinha do rei.

Japonês
Confesso-o. Mas naturalmente depois de seus gordos banquetes o rei está derretendo de bom humor e não põe embargos à digestão de ninguém.

Hindu
E se algum cabeça dura encasquetar de comer no nariz do rei salsichas que lhe repugnem? Se se reunirem armados de grelhas quatro ou cinco mil desses indivíduos para cozer suas salsichas? Se insultarem as pessoas avessas e salsichas?

Japonês
Nesse caso será preciso puni-los como bêbedos que perturbam o repouso dos cidadãos. Previmos o perigo. Só os que comem à real são contemplados com as dignidades do estado. Todos os outros podem comer como lhes ditar a fantasia, porém são excluídos dos cargos. Soberanamente interditos e punidos sem remissão são os tumultos à mesa. Atalha-se cuidadosamente toda discussão, consoante o preceito do grande cozinheiro japonês Sufi Raho Cus Flac, que escreveu na língua sagrada:

Natis in usum laetitae scyphis
pugnare Thracum est…

O que quer dizer: O jantar foi feito para gáudio recatado e mundo, e não se devem atirar copos à cabeça.

Com essas máximas vivemos felizmente em nossa terra. A liberdade individual roborou-se sob os nossos tecosema. Cresce nossa riqueza. Possuímos duzentos juncos de linha, e constituímos o terror dos nossos vizinhos.

Hindu
Por que motivo então o bom versificador Recina, filho do poeta indiano do mesmo nome, tão delicado, tão exato, tão harmonioso, tão eloquente, disse em uma obra didática rimada intitulada A Graça (não As Graças):
O Japão, onde brilharam tantas luzes,
hoje é um triste acervo de loucas visões – ?

Japonês
O próprio Recina de que me falais é um grande visionário. Ignorará esse mísero hindu que fomos nós quem lhe ensinamos o que é a luz? Que se na Índia conhecem a rota dos planetas, a nós o devem? Que fomos nós quem ensinamos aos homens as leis primordiais da natureza e o cálculo do infinito. Que, se é preciso descer a coisas mais triviais, conosco aprenderam os hindus a construir juncos segundo proporções matemáticas? Que nos devem até os borzeguins chamados meias do ofício com que cobrem as pernas? Seria possível que tendo inventado tantas coisas admiráveis ou úteis não fôssemos nós mais que loucos, e que um homem que escreveu em versos os desvairos de outrem fosse o único sábio? Deixe-nos com a nossa cozinha, e se quiser que faça versos sobre assuntos mais poéticos.

Hindu
Que quereis. Ele está intoxicado dos preconceitos de sua terra, de seu partido e dos seus próprios.

Japonês
Arre! Quanto preconceito!

Voltaire, "Dicionário filosófico"

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