Na esquina das ruas Pedro Américo e Bento Lisboa, no Catete, começou a passar mal. “Um copo d’água, pelo amor de Deus!”, suplicou, levando a mão até o peito. Tarde demais.
Quando o motorista voltou do botequim mais próximo, já encontrou o passageiro morto no banco de trás.
Vítima de um infarto fulminante, João do Rio morreu no dia 23 de junho de 1921, aos 39 anos.
“A notícia espalhou-se pela noite carioca como uma epidemia”, escreveu o jornalista João Carlos Rodrigues na biografia João do Rio – Vida, Paixão e Obra (Civilização Brasileira, 2024).
O corpo de João do Rio foi levado para a sede do jornal que ele fundou em 1920. O cadáver foi embalsamado e vestido com o fardão da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Apesar de ter sido eleito para a cadeira 26 em 1910, não frequentava a instituição desde 1919, quando Humberto de Campos (1886-1934), um antigo desafeto, tornou-se acadêmico.
Por essa razão, sua mãe doou a biblioteca do filho para o Real Gabinete Português de Leitura.
Assim como seu corpo não foi velado na ABL, também não foi sepultado no mausoléu da instituição.
Desavenças à parte, a popularidade de João do Rio era tanta que, segundo estimativas da época, 100 mil pessoas compareceram ao seu enterro no São João Batista, em Botafogo.
“Nessa época, o Rio tinha 400 mil habitantes”, estima Rodrigues. “Um quarto da população compareceu ao cemitério para prestar sua última homenagem”. A título de comparação, o funeral de Getúlio Vargas (1882-1954) atraiu 300 mil pessoas.
De luto pela morte de João do Rio, os teatros suspenderam as sessões e o comércio não abriu suas portas.
“Os taxistas ofereceram corridas gratuitas para quem morava no subúrbio chegar até o velório”, observa a jornalista e editora Graziella Beting, organizadora do livro de crônicas Gente às Janelas (Carambaia, 2024).
O funeral atraiu tanto anônimos, como ambulantes, estivadores e prostitutas, quanto famosos, como políticos, escritores e socialites.
Só ex-presidentes da República, foram dois: Hermes da Fonseca (1855-1923) e Nilo Peçanha (1867-1924). Quem não pôde ir passou telegrama de pêsames ou mandou coroa de flores.
Apesar de sua enorme popularidade, a obra de João do Rio logo caiu em esquecimento. Solteiro, não deixou filhos. Mas, deixou um acervo de 2,5 mil textos, entre crônicas, contos e romances.
Em 1912, teve uma de suas peças, A Bela Madame Vargas, encenada no Municipal. A obra escandalizou o público ao mostrar uma inédita cena de beijo.
“Era considerado imoral. Um verdadeiro tabu”, define Orna Messer Levin, doutora em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e organizadora da antologia de contos João do Rio (Editora Nacional, 2010). “Mais um traço do pioneirismo de João do Rio”.
A memória do jornalista e escritor começou a ser resgatada em 1978 quando Raimundo Magalhães Júnior (1907-1981), outro imortal da academia, escreveu sua primeira biografia, A Vida Vertiginosa de João do Rio.
Hoje, o autor de A Alma Encantadora das Ruas (1908), sua obra mais famosa, é homenageado na 22ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a mais importante do Brasil.
“Imagino que ele tenha ficado tanto tempo sem ser lido pelo próprio gênero em que escrevia – a crônica costuma ser tratada como um gênero menor – e porque não deixou herdeiros para levar adiante seu legado”, arrisca Ana Lima Cecilio, curadora do evento.
Há outras hipóteses para o fato de João do Rio ser menos lido do que alguns de seus contemporâneos, como Machado de Assis (1839-1908) e Lima Barreto (1881-1922).
“Durante muito tempo, não esteve nos livros didáticos e nas aulas de literatura, as duas principais portas de entrada da leitura no Brasil”, afirma Fabiano Ormaneze, doutor em Linguística pela Unicamp e autor do volume dedicado a João do Rio da coleção infantojuvenil Black Power da Editora Mostarda.
“A segunda razão é que, sendo mais conhecido como jornalista, a obra de João do Rio nem sempre esteve no cânone literário. Romances como Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881 - Machado de Assis) e Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915 - Lima Barreto) têm larga trajetória de aclamação pela crítica”.
Ao longo de sua curta trajetória, João do Rio sofreu incontáveis ataques por ser gordo, pardo e homossexual.
Em 1902, tentou a carreira diplomática, mas foi rejeitado pelo Barão do Rio Branco (1845-1912).
“Por ser gorducho e amulatado, estava bem distante do tipo garboso preferido pelo chanceler”, descreve Rodrigues em sua biografia.
Apesar dos ataques racistas e homofóbicos, não foi o preconceito ou a discriminação os responsáveis pelo seu “apagamento histórico”.
“Houve quem criticasse o que João do Rio escrevia. Não era unanimidade. Para muitos, era considerado pré-moderno”, observa a historiadora Tânia Regina de Luca, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e organizadora do volume O Momento Literário (Rafael Copetti Editorial, 2019).
“Os autores modernistas e os críticos paulistanos estavam mais interessados em promover a ideia de vanguarda. Neste sentido, o Rio de Janeiro da Belle Époque foi entendido como ‘atrasado’”, endossa Giovanna Dealtry, doutora em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e organizadora do volume de crônicas Vida Vertiginosa (José Olympio, 2021).
“Uma literatura que, com exceção de Lima {Barreto} e Euclides da Cunha (1866-1909), não pensava no Brasil. Como vemos, um grande erro”.
Pouco mais de um século depois de sua morte, João do Rio volta às livrarias. A começar pela biografia de João Carlos Rodrigues, publicada pela última vez em 2010.
“Teve a coragem de afrontar a sociedade com ideias moderníssimas. À frente de seu tempo, defendeu, entre outras pautas, o voto feminino e o divórcio”, ilustra.
Outros títulos, como A Alma Encantadora das Ruas, Pavor Dentro da Noite e Memórias de Um Rato de Hotel, também ganharam novas edições da José Olympio, Antofágica, Carambaia, Bandeirola e Elo.
“A redescoberta tardia da obra de João do Rio tem algumas vantagens. Está sendo lido por prazer e não por obrigação”, afirma Ormaneze.
João do Rio é o pseudônimo mais famoso de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto. Era filho de Alfredo Coelho Barreto, um professor de matemática gaúcho, e Florência dos Santos Barreto, uma negra alforriada carioca, e irmão de Bernardo Gutemberg, dois anos mais novo.
Se Paulo Barreto, seu nome de batismo, nasceu no dia 3 de agosto de 1881, no sobrado de número 284 da Rua do Hospício, atual Rua Buenos Aires, João do Rio, seu alter-ego, nasceu na redação do jornal Gazeta de Notícias no dia 26 de novembro de 1904. Houve outros, porém: X, Joe, Claude, João Coelho, José Antônio José...
A inspiração para o pseudônimo famoso veio da França. Napoléon-Adrian Marx (1837-1906) assinava sua coluna no Le Figaro como Jean de Paris. “De Jean de Paris para João do Rio foi um pulo”, brinca Rodrigues.
Na infância, Paulo Barreto estudou no Colégio São Bento e, na adolescência, no Ginásio Nacional, atual Colégio Pedro II.
Seu caçula, de saúde frágil, não conseguiu ir tão longe – morreu precocemente, aos 12 anos. Ainda no colégio, Paulo Barreto montou seu primeiro jornal, O Ensaio, com alguns colegas de turma.
Seu primeiro trabalho, não por acaso, foi em um jornal: A Tribuna, em 1899. Seu primeiro texto foi uma crítica da peça Uma Casa de Bonecas (1879), do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906).
“Viver da pena é difícil. Mas, João do Rio conseguiu ascender socialmente como jornalista. Não teve emprego público”, observa Tânia de Luca.
“Em 1919, foi mandado para a Europa, como correspondente estrangeiro, para cobrir a Conferência de Versalhes pelo jornal O Paiz”. A viagem deu origem a três volumes de crônicas e reportagens.
João do Rio se distinguiu dos colegas de profissão por trocar a redação pela rua. Em vez de escrever a matéria a partir do relato de terceiros, se transformou em testemunha ocular da própria notícia.
“Foi o primeiro a visitar um terreiro de candomblé, a assistir a uma roda de samba e a cobrir uma partida de foot-ball”, destaca a editora Beting.
Foi assim que nasceu, entre outras reportagens, As Religiões no Rio, uma série sobre diversidade religiosa publicada no jornal Gazeta de Notícias entre janeiro e março de 1904.
O repórter entrevistou líderes religiosos, como evangélicos, judeus, espíritas, cartomantes e até um exorcista do Morro do Castelo!
Até 1889, data da Proclamação da República, era proibido praticar outra religião que não fosse a católica.
Em dezembro de 1904, a série foi transformada em livro e, em apenas seis meses, vendeu oito mil exemplares. Um verdadeiro best-seller!
Outra série famosa assinada por João do Rio foi O Momento Literário. Publicada na Gazeta entre março e maio de 1905, trazia entrevistas, feitas por carta ou presencialmente, com 28 escritores.
Três anos depois, ao publicar o livro homônimo, João do Rio acrescentou mais oito sabatinas. Participaram do projeto, entre outros literatos, Aluísio Azevedo (1857-1913), Olavo Bilac (1865-1918) e Graça Aranha (1868-1931).
Outro diferencial do autor, apontado como um dos pais da crônica moderna, foi conciliar técnicas jornalísticas com recursos literários.
Em suas andanças pela capital federal, João do Rio se vestia como um autêntico dândi: fraque, cartola, bengala e monóculo.
Certa ocasião, ao entrar em um teatro com um chamativo colete cor de cereja, ouviu um princípio de vaia.
À época, o prefeito Pereira Passos (1836-1913) sonhava transformar o Rio numa espécie de “Paris tropical”.
Diante da recusa do Barão do Rio Branco de aceitá-lo no Itamaraty, João do Rio tentou uma vaga na ABL. Em 1905, perdeu para Heráclito Graça (1837-1914) por oito votos a 17; dois anos depois, desistiu da disputa em prol da candidatura de Artur Jaceguai (1843-1914) e, em 1910, ganhou de Pereira Barreto (1840-1923) por 23 a cinco.
“Até hoje, João do Rio ostenta o título de ser o mais jovem a ser eleito para a ABL”, afirma Ormaneze. “Não bastasse, foi também o primeiro a tomar posse usando o famoso fardão da academia”.
Humberto de Campos não foi o único a trocar farpas com João do Rio. Seu desafeto mais famoso foi Lima Barreto. Ao escrever Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto criou Raul Gusmão à imagem e semelhança do rival.
“A orientação sexual de Paulo Barreto sempre gerou suspeita e troça por parte dos colegas. Talvez levado pela caçoada geral, Lima, em vez de poupar o colega, incendiou ainda mais os termos: ‘mescla de suíno e símio’, ‘fisionomia de porco Yorkshire’ e ‘corpo alentado de elefante indiano’ são algumas das imagens que usa”, relata a historiadora e acadêmica Lilia Schwarcz na biografia Triste Visionário (Companhia das Letras, 2017).
Em 1908, ao viajar para Portugal, João do Rio deu o troco. Ao ser indagado por um livreiro lisboeta se já tinha ouvido falar de um tal de Lima Barreto ou, então, de seu romance, Isaías Caminha, responde que não.
Dias depois, ao cruzar pelas ruas do Rio com Lima Barreto, abre um sorriso como se nada tivesse acontecido. “Que filho da p***!”, vociferou seu oponente em carta para Noronha Santos.
Quando João do Rio morreu, Lima Barreto até pensou em se candidatar para sua vaga na ABL. Chegou a se inscrever, mas, dois meses depois, mudou de ideia.
“Talvez soubesse que jamais seria eleito”, especula Schwarcz em Triste Visionário. Lima Barreto morreu em 1922, aos 41 anos, sem realizar o sonho de ingressar na instituição.
“Os 15 dias mais felizes da minha vida”
Para Rodrigues, suspeitava-se da homossexualidade de João do Rio por três razões: morava com os pais; não tinha noiva (ou amante) e era fã de Oscar Wilde (1854-1900).
Entre outros títulos do escritor irlandês, traduziu para o português o romance O Retrato de Dorian Gray (1890) e a peça Salomé (1891).
Já sua obesidade era fruto de hipotireoidismo. Isso explicaria, segundo seu biógrafo, o rosto inchado, os lábios espessos e o excesso de peso.
“Ninguém é gordo por prazer”, queixou-se João do Rio. Por repetidas vezes, refugiou-se em uma fazenda em Poços de Caldas, a 461 quilômetros de Belo Horizonte, para cuidar da saúde.
Ao todo, João do Rio viajou quatro vezes para a Europa – três a passeio e a última, em 1919, a trabalho.
Da primeira vez, visitou o túmulo de seu escritor favorito no badalado Père-Lachaise, o cemitério das celebridades de Paris. Noutra ocasião, fez amizade com a dançarina americana Isadora Duncan (1877-1927).
Em 1916, durante visita ao Brasil, os dois tiveram um romance. Isadora teria dançado nua para seu amado. Onde? Não se sabe. “Uns dizem a Cascatinha da Tijuca; outros, a Praia de Ipanema”, conta Rodrigues. O local exato, a julgar por uma carta escrita por João do Rio para o poeta português João de Barros (1881-1960), parece não ter importância. O que importa é que deixou saudades. “Passei os 15 dias mais felizes da minha vida”, derrete-se.
André Bernardo
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