quarta-feira, outubro 23

Uma ilha cheia de encantos

Sentia-me aliviado por ter encontrado um lugar de terra firme, que não se resumia a rochedos estéreis no meio do mar. Mas isso ainda não era tudo: aquela ilha parecia ocultar um segredo muito além da minha compreensão, pois eu era capaz de jurar que ela aumentava de tamanho, à medida que eu avançava para o seu interior. Era como se cada um de meus pequenos passos seu tamanho se multiplicasse em todas as direções; como se ela fosse se expandindo espontaneamente, a partir de não sei o quê.

Continuei a avançar por aquela trilha estreita, que logo se dividiu em duas, e tive de escolher uma direção a seguir. Tomei o rumo da esquerda, que mais à frente também se bifurcou. E novamente escolhi o caminho da esquerda.

Logo a trilha desapareceu num vale profundo entre duas montanhas. Ali, tartarugas gigantescas arrastavam-se por entre arbustos. As maiores tinham mais de dois metros de comprimento. Já ouvira falar de tartarugas assim tão grandes, mas era a primeira vez que as via com meus próprios olhos. Uma delas esticou a cabeça fora de sua carapaça e olhou para mim, como se quisesse me dar as boas-vindas à ilha.

Durante todo o dia continuei a caminhada. Vi outras florestas, vales, planaltos, mas nada de ver o mar. Tive a sensação de estar perdido numa paisagem mágica, uma espécie de labirinto às avessas, dentro do qual os caminhos nunca chegaram a uma parede.

Já no fim da tarde cheguei a um campo aberto, uma paisagem plana e vasta com um grande lago, cujas águas cintilavam intensamente à luz do sol da tarde. Deixei-me cair à margem e saciei minha sede. Pela primeira vez em semanas bebia uma água diferente da água do navio.

Há muito tempo também não tomava banho. Resolvi, então, arrancar aquela apertada roupa de marujo e saí nadando. Depois de toda a tarde andando sob o sol escaldante dos trópicos, experimentei uma indescritível sensação de frescor.

Só então percebi o quanto meu rosto e meu couro cabeludo tinham sido queimados pelo sol durante todos aqueles dias sem proteção no bote salva-vidas.
Mergulhei algumas vezes e quando abria os olhos dentro da água via enormes cardumes de peixes que tinham todas as cores do arco-íris. Alguns eram verdes como as folhagens da margem, outros azuis como pedras preciosas e outros ainda tinham um brilho dourado em suas escamas vermelhas, amarelas e alaranjadas. Ao mesmo tempo, cada um deles tinha uma faixa de todas as cores.

Nadei de volta até a margem e me deitei ao sol do fim da tarde para me secar. Só então senti como estava faminto. Olhei à minha volta e descobri um arbusto carregado com pesadas pencas de umas frutinhas amarelas do tamanho de morangos. Nunca tinha visto aquelas frutinhas, mas supus que fossem comestíveis. Tinham o gosto de uma mistura de nozes e de bananas. Depois de ter me fartado de comer, vesti de novo minhas roupas e acabei adormecendo, exausto, à margem do grande lago.

Na manhã seguinte, antes mesmo de o sol nascer, acordei daquele sono profundo e me senti desperto na mesma hora. Tinha sobrevivido a um naufrágio! Pensei. Só agora me dava conta disso. Era como se tivesse nascido de novo.

À esquerda do lago erguia-se um paredão rochoso absolutamente intransponível. Era coberto por gramíneas amarelas e flores vermelhas em forma de sinos, que se moviam com leveza à brisa fresca da manhã. Antes de o sol aparecer no céu, eu já tinha chegado ao ponto mais elevado de uma colina. E mesmo ali de cima não conseguia ver o mar. O que via na minha frente era uma vasta paisagem de dimensões continentais. Já tinha estado na América do Norte e do Sul, mas não era possível que estivesse lá. E em parte alguma via um vestígio sequer de gente.
Fiquei lá em cima da colina até que o sol apareceu no Leste: vermelho como um tomate, mas trêmulo como uma miragem. E com a linha do horizonte tão distante, aquele era o sol maior e mais vermelho que já tinha visto em toda minha vida, inclusive durante os tempos que passei no mar.

Seria aquele sol o mesmo que estaria iluminando meus pais lá em Lubeck?

Durante toda a manhã, continuei caminhando de paisagem em paisagem. Quando o sol estava a pino, cheguei a um vale cheio de roseiras amarelas. Borboletas gigantes voavam de roseira em roseira; as maiores tinham asas tão grandes quanto as de uma gralha, mas eram infinitamente mais bonitas. Eram de um azul-profundo e tinham nas asas duas grandes estrelas vermelha-sangue. Para mim era como se fossem flores vivas; era como se de repente algumas flores da ilha tivessem se libertado do chão, ganhando o ar e aprendido a arte de voo. O mais curioso, porém, era que o ruído das borboletas era como música. Elas sibilavam em diferentes tonalidades e espalhavam por todo o vale o som suave de suas flautas. Parecia que os flautistas de uma grande orquestra estavam afinando seus instrumentos. Às vezes, quando passavam por mim, suas asas macias roçavam minha pele. Percebi que elas tinham um perfume mais forte e mais doce do que o mais caro perfume.

Um rio de águas agitadas cortava o vale. Decidi seguir o seu curso para não ficar errando sem direção por aquela imensa ilha. Além disso, estava certo de que mais cedo ou mais tarde encontraria o mar. Pelo menos era o que eu achava. Só que isso era mais difícil do que eu pensava, pois a uma certa hora da tarde aquele extenso vale chegou ao fim. Primeiramente ele foi ficando estreito como um funil e então, de repente, vi-me bem na frente de um rochedo maciço.

A princípio não entendi nada. Afinal, um rio não pode simplesmente dar meia-volta e correr em sentido contrário sobre o leito de onde tinha vindo. Foi então que percebi que o rio entrava por uma caverna. Fui até a entrada da caverna no rochedo e olhei par dentro. No interior da caverna, a água corria mais calma e formava um canal subterrâneo.

Diante da entrada da caverna no rochedo alguns sapos enormes saltavam na margem do rio. Eram do tamanho de coelhos, coaxavam sem parar numa confusão de ruídos e provocavam um barulho infernal. Para mim era novidade que existissem na natureza sapos daquele tamanho. Pela relva úmida das margens também se arrastavam gordos lagartos e iguanas maiores ainda. Já estava habituado a ver animais como esses nas muitas cidades portuárias por onde tinha passado. Mas não daquele tamanho e nem naquelas cores: na ilha, os répteis eram vermelhos e amarelos e azuis.

Descobri que era possível adentrar a caverna seguindo pela margem do rio. Decidi entrar para ver até onde eu chegava.

Continuei minha jornada vale adentro. E ali descobri os milucos...

Já tinha ficado espantado com as abelhas e as borboletas da ilha; mas embora elas fossem mais belas e maiores do que seus parentes na Alemanha, ainda assim continuavam sendo abelhas e borboletas. E o mesmo valia para os sapos e répteis. Agora, porém, o que eu via eram animais brancos, de grande porte, tão diferentes de tudo o que eu já tinha visto ou ouvido falar na minha vida de esfregar os olhos várias vezes para acreditar no que via.

Era um rebanho de uns doze ou quinze animais. Eles eram do tamanho de cavalos e vacas, mas tinham uma pele grossa e branca, que lembrava a pele dos porcos. E todos tinham seis patas! Suas cabeças eram enormes e mais pontiagudas que as do cavalos e vacas. E de vez em quando erguiam o pescoço para o céu e emitiam um som mais ou menos assim: Brasch, brasch!

Não tive medo: os animais de seis patas pareciam tão tolos e amigáveis quanto as vacas que eu conhecia na Alemanha. A sua aparição só me deixava clara uma coisa: eu estava num lugar que não existia no mapa. Literalmente! E a sensação que tive ao constatar isso foi comparável, talvez, à sensação de encontrar uma pessoa sem rosto.
Jostein Gaarder, "O dia do Curinga"

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