domingo, outubro 27

Nada restou

Os anos transcorrem em silêncio. Meu substituto não chegou. Para o lugar do guarda veio seu cunhado, e há rumores de que o guarda demitido se juntou aos contrabandistas das colinas. Ainda estou em meu posto, mas cada vez mais exausto. Eles já não me chamam de senhor nem se dão ao trabalho de tirar seus bonés esfarrapados para me cumprimentar. Os desinfetantes já acabaram. As mulheres, sem me fazer qualquer pagamento, retiram pouco a pouco o resto de estoque da farmácia. Parece que minha mente e minha vontade se deterioram gradativamente. Ou talvez sejam apenas meus olhos a escurecer, a ponto de até mesmo a luz do meio-dia lhes parecer sombria, e a fila de mulheres à porta da farmácia se assemelhar a uma fileira de sacos abarrotados. Com o passar do tempo, quase me acostumei a seus dentes podres e à onda de fedor que emana de seus hálitos. Assim vou levando, da manhã à noite, dia após dia, do verão ao inverno. Há muito deixei de sentir as picadas dos insetos. Meu sono é profundo e tranqüilo. O musgo cresce em meus lençóis e manchas de fungo florescem em todas as paredes. De vez em quando, uma ou outra aldeã se apieda de mim e me alimenta com um líquido viscoso, provavelmente feito de cascas de batata. Todos os meus livros estão mofados, as encadernações se esfarelam e desmancham. Nada me restou, e não saberei distinguir um dia do outro, ou a primavera do outono, ou um ano de outro qualquer. Às vezes, à noite, tenho a impressão de ouvir o lamento distante de algum instrumento de sopro antigo, e não tenho a menor noção de qual seja ou de quem o está tocando, e se o estão tocando na floresta, ou talvez nas colinas, ou talvez dentro de meu crânio, debaixo de meus cabelos cada vez mais grisalhos e ralos. Vou, assim, lentamente, voltando as costas a tudo o que me circunda, e a mim mesmo também. 
Amós Oz, "Cenas da vida na aldeia"

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