sexta-feira, outubro 25

A arte de engolir sapos

O Adão, meu amigo, professor de biologia, já encantado, amava os sapos. Dedicou sua vida a estudá-los. Estudava e admirava. Era capaz de identificá-los não só por sua aparência física como também pelo seu canto. Creio que o Adão achava os sapos bonitos. E é certo que eles têm uma beleza que lhes é peculiar. O filósofo Ludwig Feuerbach diria que para os sapos não existe nada mais belo que o sapo e, se entre eles houvesse teólogos, haveriam de dizer que Deus é um sapo. Cada forma de vida é o Bem Supremo para si mesma.

Eu mesmo, sem ter a sensibilidade do Adão, escrevi um livro para crianças em que um dos heróis é o sapo Gregório. Mas desejo confessar que não acho os sapos bonitos. Bonita eu acho a sua cantoria durante a noite, a despeito da sua falta de imaginação e da sua monotonia. Mas o que ela perde em riqueza estética é plenamente compensado pelo seu poder hipnótico, o que é bom para fazer dormir.

Mas o fato é que nós, humanos, não consideramos os sapos como animais com que gostaríamos de conviver. Ter um cãozinho, um gato ou um coelho como bichinho de estimação, tudo bem. Mas se o menino quisesse ter um sapo como bichinho de estimação, os pais tratariam de levá-lo logo a um psicólogo para saber o que havia de errado com ele. Sapo é bicho de pesadelo.


Quem sugere isso são as Escrituras Sagradas. Está relatado, no capítulo oitavo do livro de Êxodo, que Deus, para dobrar a obstinação do faraó egípcio que não queria deixar que o povo de Israel se fosse, enviou-lhe uma série de pragas de horrores, uma delas sendo a dos sapos. Diz o texto que a praga era de rãs, mas não faz muita diferença.

Eis que castigarei com rãs todos os teus territórios. O rio produzirá rãs em abundância, que subirão e entrarão em tua casa, e no teu quarto de dormir, e sobre o teu leito, e nas casas dos teus oficiais, e sobre o teu povo, e nos teus fornos, e nas tuas amassadeiras.

Já imaginaram o horror? A gente entra debaixo das cobertas e sente o frio das rãs que lá estão. Morde o pão e dentro dele está uma rã assada.
Nas estórias infantis é a mesma coisa. A bruxa poderia ter transformado o príncipe numa girafa, num tatu ou num gato. Escolheu transformá-lo no mais nojento, um sapo. E há aquela outra estória em que o sapo queria dormir na cama com a princezinha. Tão horrorizada ela ficou de ter de dormir com um sapo que, para evitar os beijos e seus desenvolvimentos inevitáveis, pegou-o pela perna e jogou-o contra a parede. Esse ato teve efeito mágico, pois, ao cair no chão, o sapo transformou-se em príncipe. Já aconselhei pessoas a lançar contra a parede seus sapos e sapas conjugais, para ver se o contrafeitiço funciona também para os humanos. Parece que não.

O horror do sapo aparece também numa sugestiva expressão popular: “ter de engolir sapo”. Por que não “ter de engolir gato”, “ter de engolir borboleta”, “ter de engolir tico-tico”? Porque mais nojento que sapo não existe.

Essa expressão traz o sapo para o campo das atividades alimentares. Engolir é comer. O ato de comer é presidido pelo paladar. O paladar é uma função discriminatória. Ele separa o saboroso do não saboroso. O saboroso é para ser engolido com prazer. O não saboroso, o corpo se recusa a comer. Cospe. “Ter de engolir sapo”: ser forçado a colocar dentro do corpo aquilo que é nojento, repulsivo, viscoso, frio, mole.

Não há forma de engolir sapo com prazer. Engolir um sapo é ser estuprado pela boca. Há um ditado inglês que diz: “If you are going to be raped, and there is nothing you can do about it, relax and enjoy it”: se você vai ser estuprado e você não pode fazer nada para impedi-lo, relaxe e trate de gozar o mais que puder. Esse ditado sugere a possibilidade de sentir prazer em ser estuprado. Pode até ser. A psicanálise me ensinou a aceitar a possibilidade dos mais estranhos prazeres perversos. Mas não há relaxamento que faça do ato de engolir um sapo uma experiência prazerosa.

Por que engolir um sapo?

Há pessoas que engolem sapos por medo. Bem que seria possível evitar a repulsiva refeição: o sapo é um sapinho. Mas elas preferem engolir o sapo a enfrentá-lo. Não têm coragem de pegá-lo e jogá-lo contra a parede. Pessoas que fizeram do ato de engolir sapos um hábito acabam por ficar parecidas com eles: andam aos pulos, sempre rente ao chão e coaxam monotonamente.

Mas há situações em que é inevitável engolir o sapo. Eu mesmo já engoli muitos sapos e disto não me envergonho. O meu desejo, com esta crônica, é dar uma contribuição ao saber psicanalítico, que até agora fez silêncio sobre o assunto. Muitos dos sintomas neuróticos que afligem as pessoas resultam de sapos engolidos e não digeridos.

Tudo começa com um encontro: à minha frente um sapo enorme, ameaçador, com boca grande. A prudência me diz que é melhor engolir o sapo a ser engolido por ele. É melhor ter um sapo dentro do estômago (sapos engolidos nunca vão além do estômago) do que estar no estômago do sapo.

Aí, impotente e sem opções, deixo que ele entre na minha boca, aquela massa mole e nojenta. É muito ruim. O estômago protesta, ameaça vomitar. Explico-lhe as razões. Ele cessa os seus protestos, resignado ao inevitável. Não consigo mastigar o sapo. Seria muito pior. Engulo. Ele escorrega e cai no estômago.

Alimentos não digeríveis são eliminados pelo aparelho digestivo de duas formas: ou são expelidos pelo vômito ou são expelidos pela diarreia. Os sapos são uma exceção. Não são digeridos, mas não são expelidos nem pelas vias superiores nem pelas vias inferiores. Os sapos se alojam no estômago. Transformam-no em morada. Ficam lá dentro. Por vezes hibernam. Mas logo acordam e começam a mexer.

Ninguém engole sapo de livre vontade. Engole porque não tem outro jeito. Tem sempre alguém que nos obriga a engolir o sapo, à força. A pessoa que nos obriga a engolir o sapo, a gente nunca mais esquece. Diz a Adélia que “aquilo que a memória amou fica eterno”. Aí eu acrescento algo que aprendi no Grande sertão. Conversa de jagunços matadores. Diz um: “Mato, mas nunca fico com raiva”. Retruca o outro, espantado: “Mas como?”. Explica o primeiro: “Quem fica com raiva leva o outro para a cama”. É isso. A gente leva para a cama a pessoa que nos obrigou a engolir o sapo. A raiva também eterniza as pessoas. Não adianta falar em perdão. A gente fica esperando o dia em que ela também terá de engolir um sapo. Ou, como dizia uma propaganda antiga de loteria, a gente reza: “O seu dia chegará...”.

Rubem Alves, "Palavras para desatar nós"

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