quinta-feira, outubro 24

Cosmogonia G

O melhor lugar para se comer, quando não se tem onde comer, ainda é um bom velório — em casa de família modesta e decente.

Esta filosofia da fome levou-me ontem à noite, debaixo de chuva e tudo, a procurar pela cidade, de bairro em bairro, uma porta aberta por onde pudesse divisar algum defunto sobre uma mesa, já que todos os restaurantes me batiam com a porta na cara e os dois ou três transeuntes a quem pedi uma esmola nem sequer se dignaram a fitar-me no fundo dos olhos.

Depois de muito perambular, com o estômago às costas para pesar-me menos, acabei descobrindo um velório mais ou menos no estilo do que eu desejava, num canto de uma rua escura e sem bondes, onde as casas eram todas iguais e não traziam sequer um número para identificá-las. Se eu tivesse procurado, talvez houvesse encontrado mais adiante algo melhor e mais convidativo, mas confesso que a essa altura minhas pernas já não me aguentavam mais e tive que contentar-me com o que tinha pela frente.

Era uma casa modesta, sem nenhum quadro na parede — a não ser um espelho, que refletia o morto — e na pequena sala havia quando muito umas oito pessoas, sem contar o morto evidentemente. Havia também um cachorro junto à porta, um vira-lata como eu, mas penso que não fazia parte da família, pois nem sequer se aventurava a entrar dentro da casa, como eu fiz com o ar mais respeitoso deste mundo. Coloquei-me de início junto a um canto mais escuro, para estudar a situação, e depois, vendo quem é que chorava mais e tinha o ar mais compungido, aproximei-me e apresentei os pêsames, com uma ligeira entonação de luto na voz. Logo em seguida, e como mandam as boas maneiras, cheguei até a beira do caixão, levantei o pequeno lenço que encobria a cara do defunto, e dei com um sujeito de má catadura mas de fisionomia serena, que nunca antes havia visto em minha vida. À primeira vista pareceu-me um funcionário público aposentado, mas depois, observando melhor, cheguei à conclusão de que devia tratar-se de algum domador de circo, pela cicatriz bem visível que trazia numa das faces e que me lembrou um domador que eu conhecera, havia muitos anos, num subúrbio de Ankara.

Feitas as apresentações, e como o estômago já começasse a roncar-me mais forte do que um motor de cem cavalos, voltei discretamente ao meu canto e pus-me a aguardar a marcha dos acontecimentos, sentindo (talvez fosse apenas uma ilusão do olfato) um cheiro de café que vinha dos fundos da casa, na direção dos pés do morto.

Os circunstantes eram todos pessoas muitos distintas, embora vestidos pobremente e com o ar visivelmente cansado, e logo entabulei conversação, em voz baixa, com um senhor que se achava à minha direita e que fumava um charuto de péssima qualidade, a julgar pela fumaça que me jogava na cara e que por pouco não me obrigou a vomitar sobre o caixão e sobre algumas senhoras presentes, que pareciam dormir sobre a barriga do morto. Se não vomitei é que não havia mesmo o que vomitar, como pude concluir daí a um segundo, quando o referido senhor voltou a falar-me a menos de um palmo do meu nariz, envolvendo-me numa espessa cortina de fumo, como se estivéssemos num campo de batalha.

Sob pretexto de ir urinar, deixei meu enfumaçado interlocutor e dirigi-me na ponta dos pés para o fundo da casa, onde de fato havia uma cozinha e, na cozinha, um casal de namorados se bolinando e uma criança dormindo num berço a um canto. A moça fingia que fazia o café, ou talvez mesmo fizesse, mas o rapaz sem a menor cerimônia lhe passava as mãos pelos seios e pelas nádegas, apertando-a ainda de encontro ao sexo, numa espécie de cópula fictícia; ao me verem ficaram um pouco encabulados, mas logo se recompuseram e me ofereceram gentilmente uma xícara de café, com a condição de que eu esperasse que o mesmo fosse feito. Sempre detestei interromper a cópula dos outros, mesmo quando fictícia, e só mesmo para corresponder à gentileza dos dois foi que acedi em aceitar o café, indo para junto do pequeno berço para despistar. A pequena era uma garota de seus quinze anos, se tanto, mas de seios potentíssimos, e o rapaz em estado de ereção me pareceu apenas mais velho do que ela, ainda imberbe e com um enorme furúnculo à altura do ouvido. Eu mesmo, que não sou muito sensual, senti-me imediatamente ereto diante daquela cena de imprevista libidinagem junto ao cheiro do café e do morto, e não perdi vaza para lançar à menina o meu olhar mais luxurioso, que ela parece ter compreendido instantaneamente.

Conversa vai, conversa vem, fiquei sabendo que o morto era nada menos do que o pai legítimo da jovem bolinada, e que o rapaz furunculoso era seu primo e por conseguinte sobrinho direto do dono da casa, o que em parte justificava o afã com que os dois se entregavam à liberdade dos seus instintos, agora que não tinha mais quem os vigiasse por detrás das portas. Quanto à criança, que me pareceu um tanto ou quanto japonesa, nada tinha a ver com a história, estando ali como Pilatos no Credo, com eu mesmo ali estava sentado no meu canto e à espera do café.

Pronto o café, pedi delicadamente um pedaço de pão e o devorei quase que de uma só dentada, embora procurando disfarçar minha fome de três dias, e aceitei como sobremesa três bananas e quatro laranjas que a jovem órfã me ofereceu, sempre com o seu par de seios apontando em ar de desafio. Ainda ereto, pedi um copo d’água para ajustar a digestão e me levantei cheio de dignidade, palitando os dentes com um palito de fósforo que encontrei sobre a mesa e que me pareceu relativamente limpo; depois tomei o rumo da sala de visitas, com as mãos nos bolsos, dando a entender que não voltaria ali tão cedo e que eles poderiam continuar bolinando-se à vontade, desde que o japonesinho o permitisse.

Nem bem passaram uns quinze minutos, e um barulho infernal de buzinas e foguetes subiu de todo o bairro circundante e entrou pela porta aberta, chegando até os ouvidos do morto, que todavia manteve sua atitude impassível e absolutamente compenetrada. Como eu me mostrasse surpreso, quase tanto quanto o cachorro que agora se achava dentro da sala e se pusera a latir, um sujeito de óculos e que até então me passara despercebido explicou-me que estávamos entrando no Ano Novo (menos o morto, evidentemente) e que não se tratava, por conseguinte, de nenhuma nova revolução, embora o barulho fosse exatamente o mesmo. Arranquei do bolso meu relógio, que fez grande efeito entre os presentes, e verifiquei que realmente era meia-noite em ponto, nem um minuto a mais nem a menos, o que veio demonstrar que o meu enforcado era um sujeito metódico e geralmente bem informado, e que a pontualidade para ele era uma questão muito séria, pela qual teria que pautar todos os seus atos.

Após chorar um pouco mais, para não dar na vista, despedi-me da viúva e de um sujeito que me pareceu ser seu amante, e ganhei discretamente a porta da rua, por onde justamente nesse instante ia passando um bloco carnavalesco de pretos e mulatos, vestidos a caráter e entoando aos berros um sucesso para o próximo carnaval, que me pareceu de melodia muito fácil e agradável.

O bloco levou-me, aos gritos, até o centro da cidade, onde alguns soldados, de arma embalada, mantinham a ordem e faziam ver aos mais exaltados que o Ano Novo era exatamente igual ao Ano Velho, apesar das buzinas, dos sinos e dos foguetes pirotécnicos, e espancavam sem a menos cerimônia a torto e a direito, como se essa fosse a sua função estrita dentro do mundo. (Vi cair um velho fantasiado de palhaço, com um enorme rombo no meio da testa, bem como assisti a um golpe de baioneta que levou bem no meio das nádegas uma matrona sem compostura, que só por estar vestida de Maria Antonieta se julgara com força suficiente para invectivar o governo e xingar dos piores nomes Sua Excelência o presidente da República.)

Como não tinha nada a ver com a história, e mesmo porque o 1.° de janeiro sempre me pareceu apenas o dia seguinte ao 31 de dezembro, tratei de pôr-me a salvo o quanto antes, numa rua que se abriu exatamente à minha frente e que, como pude verificar depois, ia dar justamente à beira de um cais deserto, que eu nunca vira antes em nenhuma tela de cinema e nem mesmo no meu manual de geografia, em geral tão bem informado.
Campos de Carvalho, "A Lua Vem da Ásia"

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