terça-feira, novembro 30

Algo talvez poético

Tinha fé ainda na poesia aos oitenta anos, mas ela já o havia trocado por meia dúzia de rapagões de vinte.

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Poetas antigos, quando lhes dói o calo, sabem que é dia de arco-íris.

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Mundo, mundo, vasto mundo, Raimundo pode ser uma boa rima, porém não chega a ser um Drummond.


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A poesia, se não for essencial, há de ser ao menos especial. Um prosador pode dar-se ao luxo de não trazer um pássaro para o seu texto. Um poeta não merecerá o nome se não arranjar para o pássaro a melhor árvore de seu poema e não o fizer cantar.

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A virtude está no meio. A mediocridade também.

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De tanto ver triunfar nulidades, reuni meus zeros e me candidatei.

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Sou um idiota como qualquer outro. Com uma agravante: penso que sei fazer poesia.

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Versejar tem alguma coisa a ver com a poesia, embora cada vez menos.

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Foi um defunto tão desmazelado que parecia estar numa peça e ser um ator que tivesse faltado aos ensaios.

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O velho diz amor e a brisa que ontem se amornaria agora se encolhe e fica gelada como se fosse tocada por um defunto.

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Os tempos antigos também não tinham solução para o vazio da vida, mas sabiam fingir melhor.

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Ela se lembra dele com ternura. Que homem. Tratava-a como rainha. Dava-lhe tudo, ou tentava. Se ela lhe pedia algo salgado, ele perguntava se servia o mar.

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Certas noites ele ainda sonha com mulheres. Elas estão sempre se queixando porque ele ou não fez alguma coisa ou a fez muito mal.
Raul Drewnick

Numa esquina na Cornualha

 


O Brasil perdeu a graça

Sinto falta do Brasil acolhedor, solidário, inspirado no humor irreverente. Hoje, o País está intoxicado pelo veneno do ódio. Antônio Maria foi personagem de inesquecível geração de grandes talentos.

O título não idolatra o passado. Cada época tem graças e desgraças. Existem lapsos de tempo em que as civilizações brilham. Na Europa, a Belle Époque, (1870), apesar dos guerras mundiais, deixou traços indeléveis da Art Nouveau, do impressionismo e fortes marcas da cultura cosmopolita e hedonista.

No Brasil, estes anos dourados atingiram, de modo expressivo e diferenciado, Manaus, Belém, São Paulo, Minas, Salvador, Recife e o Rio de Janeiro, locomotiva dos novos tempos, encantadora e poderosa, tornou-se a eterna “Cidade Maravilhosa” batizada pelo escritor maranhense, Coelho Neto, transformada em hino pelo compositor André Filho.

Sinto falta do Brasil acolhedor, solidário, inspirado no humor irreverente. Este sentimento explodiu quando li "Vento Vadio – As crônicas de Antônio Maria", (Todavia, 2021) débito impagável com Guilherme Tauil (das 185, 132, inéditas). Hoje, o País está intoxicado pelo ódio.

Maria foi um “multimídia” avant la lettre. Teve o destino dos cometas hiperbólicos: brilho intenso e pouca duração. Morreu fulminado por um enfarte, em “casa”, a calçada de uma rua de Copacabana aos 43 anos (15/10/64, madrugada), como previra. Era um “cardisplicente”, distribuído no corpanzil de 1,80 e 120 quilos.

Filho de usineiro, abreviou outro destino: “Pai rico, filho nobre e neto pobre”. O pai especulou com o preço do açúcar: perdeu tudo. Com u´a mão na frente e outra atrás, Maria correu atrás do “pão dormido”: Recife/Rio/Recife/, Fortaleza, Salvador e Rio, seu palco iluminado.

O Rio de Janeiro atraia gente do Brasil inteiro. Muitos nordestinos. Maria, pernambucano, dividiu apartamento com os conterrâneos Fernando Lobo e Augusto Rodrigues. Aprontaram. Depois de muitos goles, disputaram uma prova de natação na banheira. Apartamentos inundados e os três despejados.

Os quatro verbos de Maria: amar, sofrer, esquecer e se divertir. O biógrafo Joaquim Ferreira dos Santos (Um Homem chamado Maria, Objetiva, Rio de Janeiro, 2006) relata fielmente a vida naquela época como uma aventura de apaixonados, encoberta pela frase imortal do biografado: “A noite é uma criança”.

Ele torrava o maior salário da TV Tupi: 50 mil cruzeiros. Liso, comprou um Cadillac, carro chique, apartamento improvisado e espaço para escrever textos.

Sedutor irresistível. O antigalã sabia escutar as mulheres. O sucesso “Ninguém me ama” era um apelo infalível. Viveu três anos com a belíssima Danuza Leão, ex-mulher do patrão.

Seus frevos poéticos fizeram de Maria, Patrono da Academia Pernambucana da Boemia composta por “[…] trinta homens sentados […] trinta copos de chope, trezentos desejos presos, trinta mil sonhos frustrados”.
Gustavo Krause

segunda-feira, novembro 29

O cachorro

A placa no portão diz
Chien méchant e o cachorro é méchant mesmo. Cada vez que ela passa, ele se joga contra o portão, uivando de desejo de alcançá-la e despedaçá-la. É um cachorro grande, um cachorro sério, alguma espécie de pastor-alemão ou rottweiler (ela sabe pouco sobre raças de cachorros). Em seus olhos amarelos ela sente ódio do tipo mais puro brilhando para ela.

Depois, quando a casa com o chien méchant fica para trás, ela rumina sobre esse ódio. Sabe que não é pessoal: qualquer um que chegue perto do portão, qualquer um que passe a pé ou de bicicleta, será a ponta receptora dele. Mas até que ponto esse ódio é sentido? É como uma corrente elétrica, ligada quando um objeto é avistado e desligada quando o objeto sumiu na esquina? Será que os espasmos de ódio continuam a sacudir o cachorro quando ele fica sozinho de novo, ou o ódio se apaga de repente ele volta a um estado de tranquilidade?

Ela passa de bicicleta na frente da casa duas vezes por dia, uma vez a caminho do hospital onde trabalha, uma vez quando termina seu turno. Como suas passagens são tão regulares, o cachorro sabe quando esperá-la: mesmo antes de ela estar visível ele está no portão, ofegando de ansiedade.

Como a casa fica numa ladeira, seu avanço de manhã, subindo, é lento; à tarde, felizmente, ela pode passar depressa.

Pode não saber nada de raças de cachorros, mas tem uma boa ideia da satisfação do cachorro nesses encontros com ela. É a satisfação de dominá-la, a satisfação de ser temido.

O cachorro é macho, não castrado pelo que ela pode ver. Ela não faz a menor ideia se ele sabe que ela é fêmea, se aos olhos dele um ser humano tem de pertencer a um de dois gêneros, correspondentes aos gêneros de cachorros, e portanto se ele sente dois tipos de satisfação ao mesmo tempo: a satisfação de um animal dominando outro animal, a satisfação de um macho dominando uma fêmea.

Como o cachorro sabe que, apesar de sua máscara de indiferença, ela tem medo dele? A resposta: porque ela exala o cheiro do medo, porque não consegue esconder isso. Toda vez que o cachorro avança nela, um arrepio lhe percorre a espinha e uma pulsação de odor se desprende de sua pele, um odor que o cachorro capta imediatamente.

Lança-o num êxtase de raiva, esse sopro de medo que vem do ser do outro lado do portão.

Ela o teme e ele sabe. Duas vezes por dia, pode esperar por isso: a passagem desse ser que tem medo dele, que não consegue esconder seu medo, que exala um cheiro de medo assim como uma cadela exala um cheiro de sexo.

Ela leu Agostinho. Agostinho diz que a prova mais clara de que somos criaturas decaídas está no fato de não conseguirmos controlar os movimentos de nossos corpos. Especificamente, um homem não consegue controlar os movimentos de seu membro viril. Esse membro se comporta como se possuísse vontade própria; até mesmo como se fosse possuído por uma vontade externa.

Ela pensa em Agostinho quando chega ao sopé da ladeira onde fica a casa, a casa com o cachorro.

Será que vai conseguir se controlar dessa vez, terá a força de vontade necessária para evitar exalar o humilhante cheiro de medo? E cada vez que escuta o rosnar no fundo da garganta do cachorro que pode ser tanto um rosnar de raiva como de tesão, cada vez que ela sente o choque dele contra o portão, recebe sua resposta: hoje não.

O chien méchant está fechado num jardim onde não cresce nada além de ervas daninhas. Um dia, ela desce da bicicleta, se apoia no muro da casa, bate na porta, espera e espera, enquanto a poucos metros o cachorro recua e se atira contra a cerca.

São oito da manhã, não é uma hora em que as pessoas batam na porta dos outros. Mesmo assim, a porta se abre um pouquinho. Na luz mortiça, ela divisa um rosto, o rosto de uma velha, com feições abatidas e cabelo grisalho despenteado. “Bom dia”, ela diz em seu francês nada mau. “Posso falar com
a senhora um momento?”
 J. M. Coetzee, "Contos morais"

Continue tentando

 


Como era a vida antes da internet? O catálogo das 100 coisas que perdemos

“Eu estava em um barco na Ilha Catalina, na Califórnia, com meus filhos”, explica a jornalista Pamela Paul. “Então, olhei para o telefone e a Catedral de Notre Dame estava pegando fogo. Escrevi para meus amigos que moram em Paris: ‘Meu Deus, é horrível’. Depois, recebi um e-mail de um produtor de Hollywood que estava com raiva de mim. E pensei: mas, se estou em um barco, por que estou sabendo do produtor e do incêndio?”

Pamela Paul, uma norte-americana de 50 anos e editora-chefa da seção de livros do The New York Times, acaba de publicar um ensaio, 100 things we’ve lost to the internet, para tentar entender por que “não vivia o momento” e 99 outras coisas que nós perdemos com a internet — a obra, por enquanto, só está disponível em inglês. O livro fala sobre sensações perdidas como “estar atento” às coisas, sentimentos como o “tédio” ou mesmo virtudes como a “paciência”, mas também há muitos objetos, como a “enciclopédia”, o “telefone na cozinha”, “o porta-cartões de visitas” ou os “cartões de aniversário”.

O livro não foi escrito para lamentar um mundo que desapareceu. “Sou nostálgica, sentimental e pessimista, mas também tenho consciência de que alguns desses desdobramentos são bons”, explica. “O que teríamos feito durante o confinamento sem a internet? Salvou nossas vidas”, diz Paul por videoconferência a EL PAÍS.

Paul pretende nos obrigar a fazer uma pausa para que nos perguntemos como chegamos aqui. “Às vezes odeio minha dependência da tecnologia e outras vezes não me preocupo em questioná-la porque me dá algo de que preciso”, diz. Mas em seguida vêm as dúvidas: “Posto uma foto no Instagram e muita gente gosta e me sinto muito bem. Mas paro um minuto e penso: ‘não é triste também?’. O que me fazia sentir bem desse modo antes? Isso é informação: de onde eu a tirava antes, vivia sem ela, vinha de outro lugar, como mudei para receber esse tipo de informação, preciso dela agora?”, se pergunta. “Não paramos para dizer, espere, como chegamos aqui. O que fazíamos antes de tudo isto? Esquecemos.”

Paul não assina nenhuma plataforma de TV pela internet, mas um serviço chamado dvd.com. O serviço permite que ela tenha sempre 4 DVDs em casa: quando devolve um, lhe mandam outro de uma lista de filmes que ela vai fazendo. Portanto, é sempre algo que deseja ver, mas nunca tem mais do que quatro opções. “Prefiro restringir a seleção e não gastar todo esse tempo rolando canais. Quando vou a um hotel ou para a casa dos meus sogros, não quero ver nada. Tudo tem o mesmo valor”, afirma. É esse tipo de decisão consciente que ela pede que seus leitores avaliem.

Ela também quer que entendamos que a tecnologia não é natural nem inevitável. E que pode ter nos tirado ou limitado coisas que eram boas. “Internalizamos a mensagem da indústria de que, se não adotamos ou usamos essa tecnologia, o problema é você, não o produto. E que você é um ludita e que nega o progresso”, diz Paul, que insiste em que as grandes tecnológicas são antes de tudo um negócio: “Será algo que foi criado para fazer um mundo melhor? Não. Temos a ingenuidade de que a tecnologia existe para nos servir. Absolutamente não. Ela está aqui para nos vender coisas”.

Sua filha acaba de entrar na faculdade e seu marido decidiu escrever cartas para ela. A jovem está irritada porque isso a obriga a ir ao correio. Mas na família eles não querem perder essa habilidade. Um dos 100 capítulos do livro se chama justamente Cartas a mão. Como trabalha com livros, Paul lembra que, ao deixar de escrever cartas, perdemos não apenas os maços que guardamos nas caixas de sapatos de quando escrevíamos anos atrás, mas também os livros epistolares e os arquivos de escritores ou pesquisadores: “No Times resenhamos pelo menos 10 livros de cartas por ano. Você consegue ver uma imagem diferente de alguém por meio de suas cartas e isso está tudo perdido. Como vai ser o futuro? Darão a senha da sua conta do Gmail?”

Paul acha que quem tem menos de 30 anos será mais “cético em seu consumo futuro” e “dirá que não precisa de algo ou que não vale a pena a esse custo”. Um dos capítulos se intitula Desinibição, e Paul teme seu desaparecimento entre os jovens: “Tenho muita compaixão por esta geração por vários motivos”, diz. Reflete sobre como teria sido sua adolescência se tivesse o medo constante de que qualquer erro, deslize ou indiscrição fosse lembrado pela internet para sempre. “Quando eu era adolescente, era muito insegura, se eu tivesse feito algo incrivelmente estúpido e me tornado um meme, teria sido assustador”, diz. “Viver sabendo que tudo o que você pode fazer, bobo, embaraçoso, estúpido, arriscado, perigoso para sua reputação pode ser 100 vezes maior do que você jamais imaginou e se perpetuar, é aterrador”, acrescenta. Esse medo pode chegar a modificar o seu comportamento cotidiano: “As pessoas dizem que estão arriscando menos são mais seguras, claro que são, imagine a ameaça de algo assim acontecer”.

Talvez por causa desse medo, Paul vê certa “evidência” de que muitas pessoas desejam algo diferente: “Um anseio ou desejo por uma vida mais simples, pré-internet, mesmo entre os adolescentes. Porque é extenuante”.

Existem capítulos mais ou menos previsíveis no livro, mas ver todos os 100 juntos com explicações que variam de uma a três páginas é impactante. Sobre as férias, por exemplo, Paul diz: “Quando você saía de férias há 20 anos, ao voltar tinha algumas cartas na caixa do correio, alguns recados na secretária eletrônica, no trabalho havia alguma coisa sobre a mesa, e isso era tudo. Agora é como ter hordas esperando na porta, você viu aquela mensagem, que reação você tem a essa foto, você tem 36 notificações, um montão de gente querendo se conectar com você no LinkedIn, Snapchat, Instagram. É incansável”, explica.

Em vez de ler o jornal no sábado de manhã, agora passamos a consultar uma rede social onde milhares de desconhecidos ou meio conhecidos gritam seus pensamentos. Paul acredita que nossos corpos não se adaptaram às reações que o mundo de hoje nos pede: “Há uma espécie de defasagem, nossos corpos e mentes ainda não captaram esse novo metabolismo”, diz.

Por exemplo, quando você descobre que alguém não muito próximo morreu. Mas aí logo esquece: “Muitas vezes eu percebo que esqueci completamente que o tio de tal pessoa tinha morrido porque aconteceu há seis horas e depois disso 30 outras coisas ocorreram. É uma chicotada constante de atenção emocional. É esgotador. Temos tantas reações emocionais porque há tanto a que reagir que é difícil a gente se recuperar no final do dia”, afirma.

Mas, como era antes? Fica claro que era mais silencioso, mas, era melhor? Quem se lembra da sensação de não carregar um celular no bolso?

Hoje, por exemplo, é muito difícil “se perder”, que é o título de um dos capítulos do livro. Mas é melhor nunca se perder, a lógica parece dizer. E ainda há alguém que possa citar alguma recordação magnífica por ter se perdido em outra cidade? Não ouvimos mais, diz Paul, as orientações de alguém que sabe como chegar a um lugar ou de quem conhece uma cidade. “Você se lembra da sensação de se reunir com amigos e ter alguém dizendo ‘Não, Sarah e Jeremy estão fora’? Eles estavam fora dos planos, você não deveria se preocupar com eles, eles estavam fora. Agora ninguém está fora. Você continua ouvindo tudo sobre Sarah e Jeremy. Haverá notificações, eles nos escreverão, ninguém nunca sai de cena.”

Agora, diz Paul, “é bom chegar atrasado”. Não é mais indelicado porque dá a você um pouco mais de tempo para ficar sozinho com seu celular. Coisas novas se cruzam e é difícil avaliar a perda. Desde a espera do lançamento de um novo álbum ou filme ou a hora da série ou do noticiário na TV (a paciência!), o contato visual, chegar tarde para atender o telefone e não saber quem era ou passar bilhetes em papel na escola.

O livro é uma avalanche de nostalgia reflexiva com o intuito de catalogar um mundo cotidiano que não existe mais e que não voltará. A esperança de Paul é que tenhamos consciência disso e recuperemos pedacinhos que contribuíram com algo. Não é fácil: quem quer viajar sem o celular deve quase renunciar a tirar fotos, ter mapa, mensagens de urgência (quem sabe os números de cor?) ou passagens de avião digitais.

Mas, na realidade, é possível mesmo sair do celular sem se desconectar? “Mesmo quando você desliga o celular, sabe que estão chegando coisas e que terá que olhá-las quando se reconectar. Você nunca está completamente livre dessa ideia de poder dizer que está sozinho aí no mundo”, diz Paul.

E, para finalizar, outra reflexão: “Na internet nada termina por completo”. Como os ex, que antes sumiam de nossas vidas e agora ainda estão presentes por causa das redes sociais. O último capítulo do livro fala justamente do encerramento ou conclusão, que com a internet nunca é definitivo. O passado sempre nos acompanha.

domingo, novembro 28

Paisagem

 


Sejamos telepáticos

Já tentou a telepatia? Alguém provavelmente irá responder à sugestão com uma boa gargalhada. Ou, quem sabe, com um olhar de compaixão, como o que recebeu García Márquez, de um amigo, ao defender a telepatia como uma “faculdade orgânica”. Conheço, no entanto, quem a pratique sem grandes constrangimentos. Telepáticos, que assim se sabem como quem se sabe notívago, por hábito de um gosto entranhado ou conhecimento de uma infrequentada língua estrangeira.

Gabo brincava telepaticamente com seu amigo desconfiado. Tinha também na família uma avó exímia na ciência dos presságios. Dos telepáticos que conheço, há pelo menos duas escorpianas, e a palavra que me faz rir, nesse caso, é “coincidência”. Uma delas é minha mãe, desde muito tempo, pelo que sei, com livre trânsito pelos becos da minha cabeça. Está certo que as coisas aí se imbricam e, na linha do provérbio do diabo, talvez mais saiba uma mãe por ser mãe do que por ser telepática.

Mas então há essa minha amiga escorpiana, poeta amiga de Cecília, cronista amiga de Clarice, que, não bastasse ser aeronauta e notívaga, tem conversas de silêncio com o Destino de quando em quando. Além de ser habitada por muitas sombras e vozes, essa minha amiga Ângela Vilma sabe expedir e receber sinais em verdadeiros colóquios de pensamento. E antes que seja inevitável especular sobre a relação dessa misteriosa prática com a poesia, vem-me novamente o interlocutor ou destinatário telepático amigo de Gabo, que tomava como acaso os sinais que lhe chegavam. Quantos dos nossos pequenos eventuais clarões não são correios de outra esfera funcionando?

E se o que nos leva, meio distraidamente, até o pensamento do outro é de repente o outro compenetradamente nos chamando? É assim que nos meus dias encontro imprevistos de vitrais e jasmins, que recebo como bilhetes, entre inúmeros outros que, suponho, sequer identifico. Por via das dúvidas, deixo entreaberta a passagem. E daqui envio meus sinais, ou assim acredito. Se chegarão ou a entrada lhes será barrada, se passarão em branco, se serão descridos ou abraçados, tudo se iguala na desobrigação de uma resposta. Mas, sim, há também quem nos responda.

Mariana Ianelli

Leitura da manhã

 


Notícia de jornal

Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, 30 anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante 72 horas, para finalmente morrer de fome.

Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do pronto-socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxíio ao homem, que acabou morrendo de fome.

Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era da alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome.

O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Anatômico sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.

Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa - não é um homem. E os outros homens cumprem seu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum. Passam, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.

Não é da alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.

E o homem morre de fome. De trinta anos presumiveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.

E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição, tombado em plena rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, estado da Guanabara, um homem morreu de fome.

Morreu de fome.

Fernando Sabino, "Amulher do vizinho"

sexta-feira, novembro 26

As avós

De ambos os lados de um pequeno promontório, pontilhado de cafés e restaurantes, havia um mar brincalhão porém digno, bem diferente do verdadeiro oceano que rugia e roncava do outro lado da bocejante baía cercada de rochas que todos chamavam - até nos mapas tinha este nome - de Dentes de Baxter. Quem fora Baxter? Uma boa pergunta, repetida sempre, e cuja resposta, enquadrada numa folha de papel habilmente envelhecido, estava pregada na parede do restaurante que ficava no ponto mais alto do morro, o que tinha a melhor, a mais proeminente e a mais atraente posição. Baxter's, esse era o nome, e lá todos afirmavam que a saleta feita de tijolos finos e junco fora a casa que Bill Baxter construíra com as próprias mãos. Viajante incansável, ele tivera a chance, como marinheiro, de topar com aquele paraíso de baía cercada por uma pequena língua de rochas. Versões anteriores dessa mesma lenda sugeriam nativos pacíficos e acolhedores. Onde foi que os Dentes entraram na história? 
Baxter era um explorador inveterado de praias e ilhas próximas até que, numa noite enluarada, tendo-se enfiado num barco minúsculo, feito de sobras de madeira e experiência, acabou indo a pique entre aqueles sete rochedos negros, bem diante de sua casinha, onde uma lanterna tão confiável quanto um farol dava as boas-vindas aos barcos que eram pequenos o bastante para entrar na enseada depois de transpor o arrecife.

Baxter's era agora muito bem plantada com grandes árvores que sombreavam mesas e cadeiras, e dos três lados abaixo havia o mar amigo.

Um caminho que atravessava em ziguezague os arbustos ia dar nos Jardins de Baxter, e, uma tarde, seis pessoas subiam o suave aclive, quatro adultos e duas meninas bem pequenas, cujos gritos de prazer faziam eco ao barulho das gaivotas.

Dois belos homens vinham na frente, não jovens, mas apenas o despeito poderia dizer que eram de meia idade. Um deles mancava. Em seguida duas mulheres tão bonitas quanto eles, de uns sessenta anos - mas ninguém nem sonharia em chamá-las de velhas. Numa mesa evidentemente conhecida deixaram sacolas, cangas e brinquedos, gente serena e radiante, como são os que sabem usar o sol. Arrumaram-se todos, as pernas morenas e sedosas das mulheres terminando em sandálias negligentes, mãos competentes temporariamente em descanso. Mulheres de um lado, homens do outro, as duas meninas impacientes - seis belas cabeças? Com certeza eram parentes? Aquelas tinham de ser as mães dos homens; e eles só podiam ser os filhos. As meninas, clamando pela praia, no fim de uma trilha de pedra, foram avisadas pelas avós, e depois pelos pais, que deveriam se comportar e brincar sem alvoroço. Elas sentaram e começaram a desenhar figuras na areia com a ajuda dos dedos e de gravetos. Meninas muito bonitas - e assim tinham de ser, com progenitores tão belos.
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De uma janela do Baxter's, uma moça chamou-os: "O de sempre? Querem que eu leve o de sempre?". Uma das mulheres acenou para ela, dizendo que sim. Logo apareceu uma bandeja, cujos sucos de fruta fresca e sanduíches integrais asseguravam que a família se importava com a saúde. Theresa, que acabara de fazer os exames finais do ensino médio, estava passando um ano fora da Inglaterra, para onde regressaria assim que começassem as aulas da universidade. Essa informação ela oferecera meses antes, e em troca mantinha-se a par dos avanços das duas meninas em sua primeira escola. Nesse momento, Theresa indagava como estavam indo e, primeiro uma, depois outra, informaram-lhe que a escola estava indo muito bem. A bela garçonete voltou para seu posto dentro do Baxter's lançando um sorriso para os dois homens, o que fez com que as mulheres sorrissem entre si e depois para os filhos, um dos quais, Tom, comentou: "Mas ela nunca vai conseguir voltar para a Inglaterra, todos os rapazes estão dando em cima dela para que ela fique".

"Ela vai fazer papel de boba se casar e jogar fora essa chance", disse uma das mulheres, Roz - na verdade Rozeanne, a mãe de Tom. Porém a outra, Lil (ou Liliane), a mãe de Ian, argumentou: "Ah, não sei não", enquanto olhava para Tom. Essa permissão - ou saudação - ao que vinha a ser a reivindicação de ambos à vida fez com que meneassem a cabeça um para o outro, lábios comprimidos, de modo engraçado, como se estivessem escutando um diálogo muito ouvido, ou alguma coisa assim.

"Bem", disse Roz, "eu não me importo, dezenove é jovem demais."

"Mas quem sabe como pode acabar?", perguntou Lil, corando. Sentindo o rosto quente, fez uma pequena careta, que a deixou com uma expressão travessa, ou ousada, e isso estava tão distante do que ela era de fato que os outros trocaram olhares que não poderiam ser explicados tão facilmente.

Todos suspiraram, escutaram os suspiros uns dos outros e riram, uma risada franca e cheia que parecia reconhecer coisas não ditas. Uma das meninas,
Shirley, falou: "Do que vocês estão rindo?". E a outra, Alice: "Qual é a graça? Não vejo nada engraçado", e copiou o ar de travessura consciente da avó, que na verdade não fora intencional. Lil não estava à vontade e corou de novo.
Shirley persistiu, querendo atenção: "Qual é a piada, papai?". Ao que os dois pais começaram a atiçar e a fustigar as filhas, atirando-as de um lado a outro, enquanto as meninas protestavam, desviavam o corpo e voltavam para mais, até o momento em que fugiram para os braços e o colo das avós, em busca de proteção. E lá ficaram, dedos na boca, olhos caídos, bocejando. Era uma tarde quente.

Uma cena de sonolência e satisfação. Em mesas semelhantes, ao redor das grandes árvores, pessoas tão felizes quanto eles curtiam o calor. O mar a toda volta, poucos metros abaixo, sussurrava, zombava e rebentava, e as vozes eram baixas e preguiçosas.
Doris Lessing 

quinta-feira, novembro 25

A verdadeira face do 'ghostwriter'


 

O vento que vinha trazendo a lua

Alexandra Thompson
Eu estava no apartamento de um amigo, no Posto 6, e quando cheguei à janela vi a Lua: já havia nascido toda e subido um pouco sobre o horizonte marinho, avermelhada. Meu amigo fora lá dentro buscar alguma coisa e eu ficara ali, sozinho, naquela janela, presenciando a ascensão da Lua cheia.

Havia certamente todos os ruídos da cidade lá embaixo, havia janelas acesas de apartamentos. Mas a presença da Lua fazia uma espécie de silêncio superior e de majestade plácida; era como se Copacabana regressasse ao seu antigamente sem casas, talvez apenas alguma cabana de índio humilde entre cajueiros e pitangueiras e árvores de mangue, talvez nem cabana de índio nenhum, índio não iria morar ali sem ter perto água doce. Mas dava essa impressão de coisa antiga, esse mistério remoto. Era um acontecimento silencioso e solene pairando na noitinha e no tempo, alguma coisa que irmana o homem e o bicho, a árvore e a água – a Lua...

Foi então que passou por mim a brisa da terra; e essa brisa que esbarrava em tantos ângulos de cimento para chegar até mim ainda tinha, apesar de tudo, um vago cheiro de folhas, um murmúrio de grilos distantes, um segredo de terra anoitecendo.

E pensei em uma pessoa; e sonhei que poderíamos estar os dois juntos, vendo a ascensão da Lua; deslembrados, inocentes, puros, na doçura da noitinha como dois bichos mansos vagamente surpreendidos e encantados perante o mistério e a beleza da Lua.

Rubem Braga

Paisagem de leitura

 

Antonio Calderara

A especulação imobiliária

Erguer os olhos do livro (sempre lia no trem) e reencontrar a paisagem parte por parte — o muro, a figueira, a nora, os juncos, a cadeia rochosa —, as coisas vistas desde sempre e que somente agora, por ter estado distante, percebia: era assim que, todas as vezes que voltava para ali, Quinto retomava contato com sua terra, a Riviera. No entanto, como já fazia anos essa história de distância e de retornos esporádicos, qual era a graça? Ele já sabia tudo de cor; mesmo assim, continuava buscando novas descobertas, de relance, um olho no livro e outro para além da janela, e era quase uma mera checagem de observações, sempre as mesmas.



Mas toda vez havia algo que interrompia o prazer desse exercício e o forçava a voltar às linhas do livro, um incômodo que nem ele entendia bem. Eram os edifícios: todas essas novas construções que surgiam, conjuntos urbanos de seis, oito andares, a reluzir maciços como barreiras de contenção contra o desmoronamento das encostas, debruçando sobre o mar o maior número de janelas e varandas que podiam. A febre do cimento se apossara da Riviera: ali se avistava um prédio já habitado, com os canteiros de gerânio todos iguais nas sacadas; aqui, moradias recém-terminadas, com os vidros marcados por serpentes de giz, à espera de famílias lombardas ansiosas pelo banho de mar; mais adiante, um castelo de andaimes e, embaixo dele, a betoneira girando e o cartaz da imobiliária anunciando a venda de unidades.

Nas cidadezinhas íngremes, dispostas em patamares, os prédios novos brincavam de montar uns nos ombros dos outros, e, em meio àquilo, os donos das casas antigas espichavam o pescoço dos telhados. Em ***, a cidade de Quinto, antes circundada por umbrosos jardins de eucaliptos e magnólias onde, de uma sebe a outra, velhos coronéis ingleses e misses idosas se emprestavam mutuamente edições Tauchnitz e regadores, as escavadeiras agora reviravam o terreno macio das folhas apodrecidas ou granuloso do pedrisco das aleias, enquanto as picaretas demoliam os sobrados de dois andares e os machados abatiam num chiado de papel os leques das palmeiras washingtônias, varridas do céu onde surgiriam os futuros três quartos ensolarados com área de serviço.

Quando Quinto subia até sua casa, que noutros tempos dominava toda a extensão dos telhados da cidade nova e os bairros baixos da marina e do porto, mais para cá o monte de casas mofadas e musguentas da cidade velha, entre a encosta oeste da colina onde os olivais se adensavam sobre os hortos e, a leste, um reino de palacetes e hotéis verdes como um bosque, sob o dorso árido dos campos de cravos cintilantes em serras que se estendiam até o Cabo, agora não avistava mais nada, só um sobrepor-se geométrico de paralelepípedos e poliedros, pontas e lados de casas, de cá e de lá, tetos, janelas, muros cegos para servidões contíguas com apenas os basculantes esmerilhados dos banheiros uns sobre os outros.

Toda vez que ele chegava a ***, a primeira coisa que sua mãe fazia era levá-lo ao terraço (ele, com uma saudade indolente, distraída e logo inapetente, teria ido embora sem subir até lá):

— Agora vou lhe mostrar as novidades — e indicava as novas construções. — Ali os Sampieri estão levantando mais um andar, aquele lá é o prédio novo de um pessoal de Novara, e as freiras, até as freiras — lembra o jardim com bambus que a gente via lá embaixo? —, agora veja o buraco que elas fizeram, quem sabe quantos andares vão querer erguer com essas fundações! E a araucária da vila Van Moen, a mais linda da Riviera: agora a empresa Baudino comprou toda a área, e uma árvore que devia ter sido tombada pela prefeitura virou madeira de lenha; aliás, seria impossível transplantá-la, quem sabe até onde iam as raízes. Agora venha ver desse lado: a gente já não tinha vista para o nascente, mas veja o novo telhado que apareceu; pois bem, agora o sol da manhã chega meia hora depois.
Ítalo Calvino

quarta-feira, novembro 24

'Garimpando' em Bagda

 


Crônica na pedra

Aquela era uma cidade assombrosa, que parecia ter brotado do vale num repente de uma noite de inverno, como um ser pré-histórico, e, rastejando com enorme esforço, galgado a face do monte. Tudo naquela cidade era velho e pétreo, desde as ruas e ruelas até os telhados das casas, grandes, seculares, cobertos de placas de pedra cinzenta, semelhantes a escamas gigantescas. Era difícil acreditar que dentro daquelas duras couraças palpitava e repetia-se a tenra e branda carne da vida.

Em cada viajante que a via pela primeira vez, a cidade despertava o impulso das comparações, mas logo, quando o forasteiro caía em suas garras, ela repelia os paralelos, pois era uma cidade que não se parecia com nada. Não absorvia cotejos, assim como não absorvia as chuvas, as nevascas, os arco-íris e as multicoloridas bandeiras estrangeiras que iam e vinham sobre seus tetos, tão temporárias e etéreas como se estranhassem a pétrea constância do lugar.

Era uma cidade torta, talvez a mais torta do mundo, contrariando todas as leis do urbanismo. Graças à sua enorme tortuosidade, ocorria de o telhado de uma casa estar no mesmo nível das fundações de outra. Com certeza era o único lugar do mundo em que alguém podia escorregar na rua e, em vez de cair na sarjeta, tombar talvez no telhado de uma casa de vários andares. Quem melhor sabia disso eram os beberrões.

Era, com efeito, uma cidade de muitas surpresas. Você podia passear pela rua e, querendo, esticar o braço e pendurar o chapéu no topo de um minarete. Muitas coisas ali eram inacreditáveis e muitas pareciam sonhos.

Ao guardar a custo a vida humana em suas juntas e sob suas cascas de rocha, a cidade sem querer causava-lhe muita dor, arranhões, feridas. Era algo natural, já que era uma cidade de pedra, áspera e fria ao tato.

Não era fácil ser criança naquela cidade.

Ismail Kadaré

terça-feira, novembro 23

Leitora navegante


 

O homem do boné cinzento

Eu, Nabucodonosor, estava sossegado em minha casa, e florescente no meu palácio.
(Daniel, IV, 1)


O culpado foi o homem do boné cinzento.

Antes da sua vinda, a nossa rua era o trecho mais sossegado da cidade.Tinha um largo passeio, onde brincavam crianças. Travessas crianças. Enchiam de doce alarido as enevoadas noites de inverno, cantando de mãos dadas ou correndo de uma árvore a outra.

A nossa intranquilidade começou na madrugada em que fomos despertados por desusado movimento de caminhões, a despejarem pesados caixotes no prédio do antigo hotel. Disseram-nos, posteriormente, tratar-se da mobília de um rico celibatário, que passaria a residir ali. Achei leviana a informação. Além de ser demasiado grande para uma só pessoa, a casa estava caindo aos pedaços. A quantidade de volumes, empilhados na espaçosa varanda do edifício, permitia suposições menos inverossímeis. Possivelmente a casa havia sido alugada para depósito de algum estabelecimento comercial.

Meu irmão Artur, sempre ao sabor de exagerada sensibilidade, contestava enérgico as minhas conclusões. Nervoso, afirmava que as casas começavam a tremer e apontava-me o céu, onde se revezavam o branco e o cinzento. (Pontos brancos, pontos cinzentos, quadradinhos perfeitos das duas cores, a substituírem-se rápidos, lépidos, saltitantes.)

Daquela vez, a mania de contradição me arrastara a um erro grosseiro, pois antes de decorrida uma semana chegava o novo vizinho. Cobria-lhe a cabeça um boné xadrez (cinzento e branco) e entre os dentes escuros trazia um cachimbo curvo. Os olhos fundos, a roupa sobrando no corpo esquelético e pequeno, puxava pela mão um ridículo cão perdigueiro. Ao invés da atitude zombeteira que assumi ante aquela figura grotesca, Artur ficou completamente transtornado:

- Esse homem trouxe os quadradinhos, mas não tardará a desaparecer.

Não foram poucos os que se impressionaram com o procedimento do solteirão. Os seus hábitos estranhos deixavam perplexos os moradores da rua. Nunca era visto saindo de casa e, diariamente, às cinco horas da tarde, com absoluta pontualidade, aparecia no alpendre, acompanhado pelo cachorro. Sem se separar do boné que, possivelmente, escondia uma calvície adiantada, tirava baforadas do cachimbo e se recolhia novamente. O tempo restante conservava-se invisível.

Artur passava o dia espreitando-o, animado por uma tola esperança de vê-lo surgir antes da hora predeterminada. Não esmorecia, vendo burlados os seus propósitos. A sua excitação crescia à medida que se aproximava o momento de defrontar-se com o solitário inquilino do prédio vizinho. Quando os seus olhos o divisavam, abandonava-se a uma alegria despropositada:

- Olha, Roderico, ele está mais magro do que ontem!

Eu me agastava e lhe dizia que não me aborrecesse, nem se ocupasse tanto com a vida dos outros. 
Fazia-se de desentendido e, no dia seguinte, encontrava-o novamente no seu posto, a repetir-me que o homenzinho continuava definhando.

- Impossível - eu retrucava -, o diabo do magrela não tem mais como emagrecer!

Pois está emagrecendo.

Ainda encontrava-me na cama, quando Artur entrou no meu quarto sacudindo os braços, gritando:
-  Chama-se Anatólio!

Respondi irritado, refreando a custo um palavrão: chamasse Nabucodonosor!

Repentinamente emudeceu. Da janela, surpreso e quieto, fez um gesto para que eu me aproximasse. Em frente ao antigo hotel acabara de parar um automóvel e dele desceu uma bonita moça. Ela mesma retirou a bagagem do carro. Com uma chave, que trazia na bolsa, abriu a porta da casa, sem que ninguém aparecesse para recebê-la.

Impelido pela curiosidade, meu irmão não me dava folga:

- Por que ela não apareceu antes? Ele não é solteiro?

- Ora, que importância tem uma jovem residir com um celibatário?

Por mais que me desdobrasse, procurando afastá-lo da obsessão, Artur arranjava outros motivos para inquietar-se. Agora era a moça que se ocultava, não dava sinal da sua permanência na casa. Ele, porém, se recusava a aceitar a hipótese de que ela tivesse ido embora e se negava a discutir o problema comigo:

- Curioso, o homem se definha e é a mulher que desaparece!

Três meses mais tarde, de novo abriu-se a porta do casarão para dar passagem à moça. Sozinha, como viera, carregou as malas consigo.

- Por que segue a pé? Será que o miserável lhe negou dinheiro para o táxi?

Com a partida da jovem, Artur retornou ao primitivo interesse pelo magro Anatólio. E, rangendo os dentes, repetia:

- Continua emagrecendo.

Por outro lado, a confiança que antes eu depositava nos meus nervos decrescia, cedendo lugar a uma permanente ansiedade. Não tanto pelo magricela, que pouco me importava, mas por causa do mano, cujas preocupações cavavam-lhe a face, afundavam-lhe os olhos. Para lhe provar que nada havia de anormal no solteirão, passei a vigiar o nosso enigmático vizinho.

Surgia à hora marcada. O olhar vago, o boné enterrado na cabeça, às vezes mostrava um sorriso escarninho.

Eu não tirava os olhos do homem. Sua magreza me fascinava. Contudo, foi Artur que me chamou a atenção para um detalhe:

- Ele está ficando transparente.

Assustei-me. Através do corpo do homenzinho viam-se objetos que estavam no interior da casa: jarras de flores, livros, misturados com intestinos e rins. O coração parecia estar dependurado na maçaneta da porta, cerrada somente de um dos lados.

Também Artur emagrecia e nem por isso fiquei apreensivo. Anatólio tornara-se a minha única preocupação. As suas carnes se desfaziam rapidamente, enquanto meu irmão bufava, pleno de gozo:

- Olha! De tão magro, só tem perfil. Amanhã desaparecerá.

Às cinco horas da tarde do dia seguinte, o solteirão apareceu na varanda, arrastando-se com dificuldade. Nada mais tendo para emagrecer, seu crânio havia diminuído e o boné, folgado na cabeça, escorregara até os olhos. O vento fazia com que o corpo dobrasse sobre si mesmo. Teve um espasmo e lançou um jato de fogo, que varreu a rua. Artur, excitado, não perdia o lance, enquanto eu recuava atemorizado.

Por instantes, Anatólio se encolheu para, depois, tornar a vomitar. Menos que da primeira vez. Em seguida, cuspiu. No fim, já ansiado, deixou escorrer uma baba incandescente pelo tórax abaixo e incendiou-se. Restou a cabeça, coberta pelo boné. O cachimbo se apagava no chão.

- Não falei! - gritava Artur, exultante.

A sua voz foi ficando fina, longínqua. Olhando para o lugar onde ele se encontrava, vi que seu corpo diminuíra espantosamente. Ficara reduzido a alguns centímetros e, numa vozinha quase imperceptível, murmurava:

- Não falei, não falei.

Peguei-o com as pontas dos dedos antes que desaparecesse completamente. Retive-o por instantes. Logo se transformou numa bolinha negra, a rolar na minha mão.
Murilo Rubião

segunda-feira, novembro 22

Café com arte

 


Da impossibilidade de conhecer a história dos homens

Rudolf Koivu
Quando o jovem príncipe Zémire sucedeu ao seu pai, no trono da Pérsia, chamou todos os académicos do seu reino e, tendo-os reunido, disse-lhes:


- “O Doutor Zeb, meu mestre, ensinou-me que os soberanos se exporiam a menos erros se fossem esclarecidos pelo exemplo do passado. Eis por que quero estudar os anais dos povos. Incumbo-vos, pois, de comporem uma história universal e de nada negligenciarem, para que ela resulte completa.”

Os sábios prometeram satisfazer o desejo do príncipe e, tendo-se retirado, meteram mãos à obra. Ao fim de vinte anos, apresentaram-se ao rei, seguidos por uma caravana de doze camelos, carregando cada um deles quinhentos volumes. O secretário da academia, tendo-se prostrado nos degraus do trono, falou nestes termos:

- “Senhor, os académicos do vosso reino têm a honra de depositar aos vossos pés a história universal que compuseram, à atenção de Vossa Majestade. Ela compreende seis mil tomos e engloba tudo o que nos foi possível reunir, no que respeita aos costumes dos povos e às vicissitudes dos impérios. Inserimos nela as antigas crónicas que foram felizmente preservadas e enriquecemo-las com notas sobre a geografia, a cronologia e a diplomacia. Os prolegómenos formam, por si só, o carregamento de um camelo e os paralipómenos são carregados, com grande dificuldade por outro camelo.”

O rei respondeu:

- “Meus senhores, agradeço-vos o incómodo que vos causei. Mas estou muito ocupado com os cuidados do governo. De resto, envelheci enquanto fazíeis o vosso trabalho. Já cheguei, como diz o poeta persa, ao meio do caminho da vida e, mesmo supondo que morro velho, não posso razoavelmente esperar ter tempo para ler uma história tão longa. Ela será, pois, depositada nos arquivos do reino. Façam-me um resumo mais proporcionado à brevidade da existência humana:”

Os académicos da Pérsia trabalharam mais vinte anos, levando depois ao rei mil e quinhentos volumes, carregados por três camelos.

- “Senhor”, disse o secretário perpétuo, com uma voz enfraquecida, “eis a nova obra. Julgamos não ter omitido nada de essencial.”

- “Pode ser que sim”, respondeu o rei, “mas não vou lê-la. As tarefas longas não dizem com a minha idade: resumi mais e sem demora.”

Eles demoraram tão pouco que, ao fim de dez anos, voltaram seguidos por um elefante jovem, carregando quinhentos volumes.

- “Gabo-me de ter sido sucinto”, disse o secretário perpétuo.

- “Não o fostes suficientemente”, respondeu o rei. “Cheguei ao fim da vida. Resumi, resumi, se quiserdes que eu conheça, antes de morrer, a história dos homens.”

Voltou a ver-se o secretário perpétuo, diante do palácio, ao fim de cinco anos. Caminhando com muletas, ele trazia, pela arreata, um burrico que carregava um livro enorme.

- “Apressai-vos”, disse um funcionário, “o rei está mesmo a morrer.”

De facto, o rei encontrava-se no leito de morte. Dirigiu ao académico e ao enorme livro um olhar quase apagado e disse, suspirando:

- “Vou morrer sem conhecer a história dos homens!”

- “Senhor”, respondeu o sábio, quase tão moribundo como o rei, “vou-vo-la resumir em três palavras: Eles nasceram, sofreram e morreram”

Foi assim que o rei da Pérsia aprendeu, já tarde, a história universal.
Anatole France, "As opiniões de M. Jerôme Goignard "

Leitor do cão

 


Uma vara espetada na terra

Faltam duas semanas para o meu aniversário. Quarenta e sete anos, nem sequer um número redondo, um cinquenta ou um quarenta e cinco, mas chegará um instante em que terá passado um tempo certo de um instante certo, que aconteceu. Irá acontecer também esse instante que celebra o outro, anterior. Com muita probabilidade, haverá um período desse dia em que me sentirei nostálgico, irá talvez parecer-me que tudo passou demasiado depressa.

Em tantos aspetos, o tempo é uma pergunta. Somos capazes de calculá-lo, podemos lembrá-lo ou prevê-lo, mas a resposta última que encontramos para a grande questão que nos coloca é dada por cada decisão que formos capazes de tomar agora. Estamos aqui e, por isso, somos donos deste momento preciso. Somos donos de tanto.

Nasci às duas e meia da tarde.

Na primavera do meu primeiro ano de escola, 1981, houve uma manhã em que, ainda antes do recreio, saímos para o pátio. De bata, seguimos a Dona Arcângela. Sob a nossa admiração, escolheu um lugar na terra e espetou uma vara. Observámos a sombra que estendia, uma linha reta. Assinalámo-la com pedras. Voltámos mais tarde e a sombra estava já noutro ponto. Durante o recreio, brincámos à volta desse vara, nunca lhe tocando, como se contivesse um mistério importante. E continha.

 Jacques de Loustal 

Em casa, eu tinha um relógio na parede da cozinha e um despertador antigo na mesinha de cabeceira. O sino da vila tocava de quarto em quarto de hora. Num dos meus aniversários de adolescente, o meu pai ofereceu-me um relógio eletrónico, comprado em Badajoz. Sei que sorri. Não sei quanto tempo passei a acertá-lo com o bico de uma caneta ou a assistir à passagem lenta dos segundos. O meu pai tinha um relógio de bolso, a ponta da corrente pendia-lhe de uma das presilhas das calças. Eu tinha um relógio espanhol de pulso: 14:30.

Agora, respiro. Tenho o conhecimento teórico de que possuo um coração a bater-me no peito. Estou aqui há tempo suficiente para saber que, depois do dia, virá a noite. Entretanto, espero ser capaz de desfrutar do entardecer, lento.

Existem os números, mas existem também as plantas, as árvores. Uns e outros explicam-nos este mistério importante: estamos aqui. Agora, com a ponta dos dedos, poderíamos sentir a nossa presença física, temos braços e pernas, temos rosto, temos uma idade precisa, contada a partir de um instante irrepetível. Estamos aqui e, ao mesmo tempo, avançamos. A seiva atravessa o interior das plantas e, ao mesmo tempo, o ponteiro dos segundos faz o seu caminho em todos os relógios do mundo. Somos contemporâneos de tudo isto que nos rodeia. Podíamos agora olhar em volta. Em cada pormenor da paisagem, está uma possibilidade deste tempo que nos leva e nos pertence. O futuro é uma montanha. O passado é uma montanha. O presente é uma montanha ainda maior. Imaginamos uma, recordamos a outra e estamos no topo da mais alta. A neblina e a distância apenas permitem nitidez ao lugar onde pousamos os pés. Não é pouco, é tudo o que precisamos. Podemos encher o peito e respirar.

Em redor dos meus pés, crescem ervas, são sábias. Alimentam-se da terra, a mesmo onde, há anos, a Dona Arcângela, espetou uma vara. Estou ainda a aprender tudo o que começou a ensinar-me nesse instante. Talvez as lições mais importantes sejam mistérios maiores do que uma vida e talvez esteja bem assim, talvez seja justo assim. Nenhuma tristeza ou amargura nessa constatação simples.

O relógio de bolso do meu pai é agora meu, parado para sempre no meio-dia ou na meia-noite. Marca uma hora que passou, não voltei a dar-lhe corda, está certo nessa hora. Há vezes, em que o pouso na palma da mão, redondo, liso, e sinto a sua corrente entre os dedos.
José Luís Peixoto

domingo, novembro 21

Convívio de amigos

 


Assim começa...

Em torno da sepultura, no cemitério malcuidado, reuniam-se alguns de seus ex-colegas de trabalho da agência publicitária nova-iorquina, relembrando sua energia e originalidade e dizendo a sua filha, Nancy, como fora divertido trabalhar com ele. Havia também pessoas que tinham vindo de carro de Starfish Beach, a comunidade de aposentados na costa de Nova Jersey onde ele morava desde o Dia de Ação de Graças de 2001 — os idosos que recentemente tinham sido seus alunos num curso de pintura. Vieram também os dois filhos, Randy e Lonny, homens de meia-idade, filhos do turbulento primeiro casamento, que eram muito próximos à mãe e que, em consequência disso, do pai conheciam pouco de bom e muito de péssimo, e só estavam ali por obrigação, mais nada. O irmão mais velho dele, Howie, e sua cunhada também estavam presentes, tendo vindo da Califórnia de avião na véspera; e também uma de suas três ex-esposas, a do meio, a mãe de Nancy, Phoebe, uma mulher alta, magérrima, de cabelo branco, cujo braço direito pendia inerte ao longo do corpo. Quando Nancy lhe perguntou se ela queria dizer alguma coisa, Phoebe balançou a cabeça, tímida, mas logo em seguida começou a falar em voz baixa, uma fala um pouco arrastada. “É muito difícil de acreditar. Fico lembrando o tempo todo dele nadando na baía — só isso. É o que vejo, ele nadando na baía.” E mais Nancy, que havia negociado com a agência funerária e telefonado para as pessoas que compareceram ao enterro, para que não estivessem presentes apenas ela, sua mãe, o irmão e a cunhada dele. Havia uma única pessoa presente que não tinha sido convidada, uma mulher atarracada com um rosto redondo e simpático, de cabelo pintado de ruivo, que simplesmente apareceu no cemitério e 10 apresentou-se como Maureen, a enfermeira particular que havia cuidado dele após a cirurgia do coração, anos antes. Howie lembrava-se dela, e foi dar-lhe um beijo no rosto. 

Nancy disse a todos: “Eu queria começar falando alguma coisa a respeito deste cemitério, porque descobri que o avô do meu pai, meu bisavô, não apenas está enterrado na parte mais antiga, ao lado de minha bisavó, como também foi um dos seus fundadores, em 1888. A associação que financiou e construiu este cemitério era formada pelas sociedades funerárias das organizações beneficentes e congregações judaicas dos condados de Union e Essex. Meu bisavô era dono de uma pensão em Elizabeth, que recebia principalmente imigrantes recém-chegados, e ele se preocupava muito com o bem-estar deles, mais do que se espera de um dono de pensão. É por isso que ele estava entre os que compraram a terra e aplainaram o terreno e fizeram o tratamento paisagístico, é por isso que atuou como primeiro diretor do cemitério. Na época, era relativamente jovem, mas tinha muito vigor, e o nome dele é o único que assina o documento em que está especificado que o cemitério se destinava a ‘enterrar os sócios falecidos de acordo com as leis e os rituais do judaísmo’. Como vocês podem ver, a manutenção dos túmulos, da cerca e dos portões não é mais como deveria ser. Há coisas apodrecidas e despencadas, os portões estão enferrujados, as trancas desapareceram, houve vandalismo. Com o tempo, o cemitério ficou muito próximo ao aeroporto, e o ruído distante que vocês estão ouvindo é do tráfego constante dos carros na rodovia expressa de Nova Jersey. Naturalmente, de início pensei nos lugares realmente bonitos em que meu pai poderia ser enterrado, os lugares onde ele e minha mãe iam nadar quando eram jovens, as praias que ele frequentava. No entanto, por mais triste que eu fique quando olho à minha volta e vejo toda essa deterioração — vocês provavelmente também sentem o mesmo, e talvez até se perguntem por que é que estamos reunidos num cemitério tão maltratado pelo tempo —, queria que meu pai ficasse junto das pessoas que o amaram e das quais descendeu. Ele amava seus pais, e é importante que 11 fique perto deles. Eu não queria que ficasse em outro lugar, sozinho”. Nancy permaneceu em silêncio por um momento para controlar as emoções. Uma mulher de trinta e poucos anos, de rosto suave, de uma beleza simples, tal como sua mãe outrora, ela não parecia de modo algum uma pessoa investida de autoridade, nem mesmo corajosa; mais parecia uma menina de dez anos sem saber o que fazer. Virando-se para o caixão, pegou um punhado de terra e, antes de lançá-lo sobre a tampa, disse com simplicidade, ainda com um ar de menina perplexa: “Pois é, é isso. Não há mais nada que a gente possa fazer, papai”. Então lembrou-se da máxima estoica de seu pai, de tantos anos atrás, e começou a chorar. “Não há como refazer a realidade”, disse ela ao pai. “O jeito é enfrentar. Segurar as pontas e enfrentar.”

Leitura com mesa farta

 


Uma viagem com minha filha ao País dos Biscoitos

É de manhã, muito cedo. Enquanto escrevo, ouço alguém arranhando a porta do meu escritório. Vou abrir. A minha filha de três anos entra, muito direita e sorridente, exibindo o vestidinho azul com que foi ao casamento do primo. É como abrir a porta a um arco-íris, a um rio carinhoso, a um ciclone de bolso. Kianda senta-se à minha secretária e no mesmo instante desmonta meu dia. 

— Você tem biscoitos? — pergunta com voz macia. 

— Não tenho. Aliás, sua mãe não me autoriza a comer biscoitos enquanto estou trabalhando. 

— Vamos fugir? — propõe.

— Para onde? 

— Para o País dos Biscoitos. Lá, é proibido não comer biscoitos…

— Já gostei. E que mais?…

No País dos Biscoitos, acrescenta a intrusa, os meninos só podem comer o bolo de chocolate depois de terminarem os biscoitos. Além disso, a polícia multa com biscoitos quem for apanhado a trabalhar sem um pratinho de biscoitos ao lado.


Pouco antes de Kianda me interromper eu estava lendo o post de um amigo angolano, no Facebook. Segundo o meu amigo, no Calulo, pequena cidade no interior de Angola, uma senhora foi perseguida por uma multidão, acusada de ser bruxa. As pessoas corriam atrás dela com pedras e paus. A mulher terá conseguido escapar ao linchamento transformando-se numa porta. A turba passou através da porta, sem se aperceber da ilusão, e no instante seguinte estavam correndo numa praia, a trezentos quilômetros de distância do Calulo.

A mim, o que me convinha era uma casa com portas instaladas por essa bruxa. A primeira das portas abriria para a luminosa mansidão do Índico, na Ilha de Moçambique. Atravessando a segunda eu estaria no quintal da minha infância, no Huambo, em Angola. Abrindo a terceira, entraria na Livraria da Travessa do Leblon. A quarta daria para o meu apartamento na Lapa, em Lisboa, onde ainda guardo a maioria dos meus livros. Finalmente, a quinta porta poderia levar-me a mim e à minha filha até ao País dos Biscoitos. Lá, além de comermos os melhores biscoitos do mundo, até não podermos mais, estaríamos a salvo de todos os perigos e incoerências que atormentam o tempo e universo em que nos calhou viver. Seria muito bom. 

— Lembra-te, no País dos Biscoitos não tem coronavírus — assegura Kianda, muito séria, brandindo o argumento definitivo.

Era desnecessário porque, a essa altura, já estou totalmente convencido. Ajudo-a a arrumar numa pequena mochila tudo aquilo de que necessitará no País dos Biscoitos. Não é muita coisa. Uma garrafinha com água. Uma muda de roupa. A mãe chega no preciso instante em que nos preparamos para fugir, e leva-a para a escola — com a mochila. Fico sozinho, pensando na infinita responsabilidade que é a de tentar criar um arco-íris. Um rio. Um ciclone em miniatura. Como educar um rio? Como deixar que um ciclone cresça e se desenvolva saudavelmente, sem que engula tudo ao seu redor? Ou sem que o engulam a ele?

Olho para Kianda e sinto que não tenho mãos suficientes para a amparar e proteger. A falta que me faz a casa de cinco portas. Caramba, só queria uma porta! Ou um mapa, ao menos um mapa, para o País dos Biscoitos.

sábado, novembro 20

Leitura não tem idade

 


Chuva

Houve um prefeito, paisano e sem imaginação, que resolveu acabar com as inundações do Rio. Foi o engenheiro João Carlos Vital, cujo breve reinado se perde, na série imensa dos prefeitos, entre um calvo general atrabiliário que construiu o Maracanã e um bravo coronel do PTB. que ali recebeu a mais estrondosa das manifestações.

Vital foi um Frontin às avessas, e conseguiu livrar o Rio do excesso de água com esta providência original: mandou desentupir os bueiros. Nunca ninguém se lembrara disso antes; e depois, como se viu no dia de ontem, nunca ninguém voltou a se lembrar. Tivemos ruas, praças e amplas avenidas transformadas em córregos, lagoas e rios. Foi a bela resposta do coronel à população que no estádio lhe gritava: "Água, água!"

"Pois tomem água!" ― Disse ele.

Eu tive pena foi de sair de casa calçado e, além disso, com 30 anos de idade mais do que o conveniente. Descalço e menino, faria o que os meninos descalços eu vi fazendo: entraria na enchente, patinaria na lama, soltaria na esquina meus barcos de papel, e me divertiria imenso com a aflição da gente grande a empilhar trastes e móveis no andar térreo e a buzinar nervosamente atrás de um carro de capota levantada e distribuidor enlameado.

A infância pobre do Rio, sempre esquecida, teve ontem um lindo dia de folga e festa: desculpa para não ir à escola e divertimentos animados na grande alegria das enxurradas.

Quando a infância ri, Deus está contente. O telhado de minha mansarda amanheceu limpinho, e as árvores da rua engordaram de verde, pingando alegria, muito gratas ao senhor prefeito. Os chauffeurs de táxi tungaram alegremente seus passageiros; não é à toa que esses marotos gostam de ter, no quadro do carro, a imagem de São Cristóvão carregando o menino Jesus no ombro durante uma enchente.

Salve, portanto, a chuva, amiga das crianças, da lavoura e dos motoristas. Cheguei em casa de pés molhados, mas um gole de pisco, lembrança do Peru, me esquentou os pés e a alma. Para dizer a verdade, foi um gole para os pés e outro para a alma; e para dizer toda a verdade, houve mais um de lambuja. Haja pisco; motivos para beber não hão de faltar neste país sempre desgovernado e às vezes, graças a Deus, chuvoso.

Rubem Braga

Para o café do leitor

 


Amar o Rashi

E o que diz Rashi?

Eu amo Rashi.

Por quê? Porque sim.

Por causa de uma pergunta que ouvi e repeti durante anos e anos. "Un vos zogt Rashi?" E o que diz Rashi?

Como a maior parte das crianças judias de minha cidade, de todas as cidades judaicas do mundo extinto da Europa oriental, eu amava Rashi. Para nós, meninos e adolescentes judeus exilados, ele era um companheiro de viagem culto e sábio que nos guiava, primeiramente pelo Humash, ou Pentateuco, e depois pelo reino conciso da Mishna e pelo fascinante universo da Gemara. Eu o amava porque ele comentava o Talmude babilônio, mas não o palestino? Ele preferia os judeus da Diáspora, para quem o estudo funcionava como um elo nostálgico com uma pátria invisível, porém inviolável? Ele estava sempre ali, pronto para nos ajudar a decifrar uma palavra difícil, a compreender uma situação intricada, a assimilar uma idéia complexa. Rashi era o farol, o simplificador. Sem ele, o caminho que se estendia diante de nós muitas vezes era escuro e ameaçador.

Era isso o que eu pensava, quando era um pequeno kheider yingel, um aluno da yeshiva. Eu achava que amava Rashi porque ele facilitava a minha vida.

Hoje em dia ainda o amo - e até mais, porém por outro motivo. Eu o amo porque ele adora perguntas.

Veja como se inicia seu magistral comentário da Torá:

Amar Rabbi Itzhak - disse o rabino Itzhak. A Torá devia começar com a primeira lei imposta ao povo de Israel (referente ao calendário). Por que começa com a criação do Universo? Por esta razão, explica Rashi. Se um dia as nações do mundo dissessem ao povo de Israel: "Sois ladrões, pois conquistastes terras pertencentes a sete nações", o povo de Israel responderia: "O mundo inteiro pertence a Deus; e Ele o dá a quem bem entender. Ele tinha dado esta terra às outras nações, porém a tomou de volta e a deu para nós".

Eu sei: esse comentário pode suscitar uma interpretação política. Como se Rashi (nacionalista fervoroso?) estivesse anunciando ao planeta inteiro que a terra de Israel não pertence aos cristãos, nem aos muçulmanos, e sim ao povo de Israel. Sem essa propriedade legítima, não haveria, para os judeus cumprirem, mitzvot - mandamentos - relacionados com a terra e o Templo.

Não obstante, convém sermos cautelosos. Aqui o rabino Shlomo ben Itzhak, conhecido pelo acrônimo Rashi, não fala como político, nem como teólogo. Fala como? Retomaremos essa pergunta mais adiante.

Quem é esse rabino Itzhak que ele está citando? Rashi não o identifica. Um comentarista afirma que ele quis prestar homenagem ao pai, o rabino Itzhak, mencionando seu rico comentário sobre as Escrituras para desmentir os que o retratavam como um judeu ignorante. Verdadeira ou não, a teoria é tocante, mas não necessariamente esclarecedora. Pois tudo que sabemos sobre o rabino Itzhak é que era pai de Rashi e que Rashi o adorava.

O problema é que no Midrash Tanhuma encontramos um rabino Itzhak fornecendo-nos a mesma explicação sobre o versículo inicial da Bíblia.

Provavelmente Rashi tirou-a daí.

Ademais, um renomado estudioso, o rabino Haim David Azulai, cabalista-viajante do século XIX, escreveu que o pai de Rashi era um grande erudito e não precisava que o filho defendesse sua reputação. Conclui-se, portanto, que a referência não tem caráter pessoal?

Proponho ficarmos fora dessa discussão.

Por enquanto, só quero expressar minha gratidão ao pai por nos ter dado um filho de tamanha grandeza e tanta generosidade. Há oito ou nove séculos, todos nós estamos em dívida com Rashi.

O rabino Nahman, de Bratslav, chamou-o de "o irmão da Torá". Com efeito, para mestres e discípulos é como se a Torá e o comentário de Rashi fossem inseparáveis: ele continua sendo o companheiro de todos os que estudam e de todos os que ensinam. Sem ele, quantas vezes eu teria me perdido no grande labirinto do Talmude? Eventualmente, ao me confrontar com uma passagem obscura, surpreendo-me murmurando: "Un vos zogt Rashi? ". E o que diz Rashi? No mesmo instante, faz-se a luz sobre as palavras e seu significado.

Rashi é celebrado e amado até hoje graças à sua abordagem precisa e clara do que atualmente chamamos de análise textual.

E, no entanto, podemos afirmar, com segurança, que sua biografia está longe de ser precisa ou clara.

Como explicar o mistério que envolve alguns aspectos de sua vida? Não sabemos nem se ele era ashkenazi ou sefardim - não que isso tenha muita importância. Sua data de nascimento é tema de discussão entre os estudiosos. O ano mais citado é o de 1040. Por quê? Porque foi quando faleceu o ilustre Rabbeinu Gershom Meor Hagolah, "a Luz do Exílio". E acreditamos que nenhuma geração se sustentaria sem um grande mestre em seu meio: quando o sol se põe, outro sol deve surgir. Também há quem situe o nascimento de Rashi em 1030, ou ainda em 1037. Mas ninguém sugere o mês ou o dia. Sabemos, contudo, a data exata de sua morte: 13 de julho de 1105 - ou, no calendário hebraico, o 29o. dia de tamuz do ano de 4865 após a criação. Essa informação consta de um manuscrito citado por Shimon Schwarzfuchs, erudito francês. E diz o seguinte:

O arco divino, o santo dos santos, o grande mestre Rabbeinu Shlomo - que o nome desse justo seja uma bênção e uma proteção para todos nós -, filho do santo rabino Itzhak o Francês, nos foi tirado na quinta-feira, 29o. dia de tamuz, no 4865o. ano da criação do mundo. Tinha 65 anos de idade quando foi chamado a morar na academia celestial.

Onde ele morreu? Infelizmente não se encontrou sua sepultura. Onde nasceu? Em Troyes? Em Mainz? Em Worms, talvez? Como no caso de Homero, mais de uma cidade o reivindica como filho.

Com relação a seu nascimento circularam várias lendas. Parece que seus pais possuíam uma pedra preciosa que continha uma luz rara, e a Igreja queria adquiri-la a qualquer preço. Receberam polpudas ofertas. Recusaram-nas. Coagidos e temerosos de cair em tentação, decidiram jogar a pedra no mar. Sua recompensa? Um filho cuja luz era ainda mais radiosa que a da gema.

Dizem que, ainda grávida, a mãe de Rashi caminhava por uma rua estreita e por pouco não foi atropelada por uma carruagem que avançava na direção oposta. Ela se apoiou numa parede e, em contato com sua barriga, a parede recuou - consta que até hoje se pode ver o nicho ali criado por seu ventre.

Segundo outra lenda, o rabino Itzhak temia não reunir um minyan para realizar a circuncisão de seu único filho. Não havia motivo. O profeta Elias, ou Abraão - ou ambos -, teria prazer em comparecer. Por causa do filho? Por causa do pai também. Mais tarde, seus contemporâneos o chamaram de ha kadosh, homem santo, porque ele morreu como mártir da fé.

Troyes tinha, na época, uma comunidade judaica de cento e poucas famílias.

A precocidade de Rashi não é ficção. Ainda jovem, ele deixou Troyes e foi para Mainz, onde estudou com os três grandes mestres locais - todos discípulos do Rabbeinu Gershom. Esses homens lhe deram acesso a suas anotações e, por meio delas, puseram-no em contato com os ensinamentos de seu falecido mentor.

Hoje em dia é difícil imaginar o impacto do Rabbeinu Gershom sobre seus contemporâneos. Ele era a autoridade haláquica e espiritual da Diáspora. Sua palavra era lei. O Rabbeinu Gershom proibiu a poligamia e a separação sem o consentimento da esposa. Também proibiu que se humilhassem os penitentes com a lembrança de antigos pecados. Outra proibição que leva seu nome: a de abrir correspondência alheia.

Uma tragédia ensombrou-lhe a vida. Seu filho foi obrigado a converter-se, e ele guardou luto. Porém nunca se tornou amargo. Era humanista demais para isso.

Rashi estudou com os rabinos Ya'akov ben Yakar - seu principal mentor -, Itzhak Halévy e Itzhak, filho do rabino Yehuda, cuja lápide, recém-descoberta, revela que ele faleceu no ano de 4824 depois da criação - 1063 ou 1064 no calendário gregoriano. Portanto, Rashi foi seu discípulo até o fim. Os três rabinos dirigiam academias talmúdicas, ou yeshivot. Na época, essas escolas tinham dimensões modestas e se localizavam na própria casa do rabino. Não havia necessidade de angariar fundos para mantê-las.

Aos 25 anos, Rashi voltou para Troyes. Casou-se, teve três ou quatro filhas - nenhum varão - e assumiu o posto de rabino e diretor de sua própria yeshiva. O que acarretava muitas responsabilidades. Embora não recebesse salário, ele tinha de subsidiar sua escola e seus alunos, procedentes de toda a França e da Renânia.

Por sorte, dispunha de meios para tanto. Era rico? Casou-se com uma moça de família abastada? Graças a seus vinhedos, que figuravam entre os melhores da Champagne, devia levar uma vida confortável. Mas e os dotes para as filhas? Miriam esposou o rabino Yehuda ben Nathan, e Yokheved se uniu ao rabino Meir ben Shmuel. Quanto a Rachel, seu casamento com um certo Eliezer acabou em divórcio. Famosa por sua beleza, Rachel recebeu o apodo de "Belle Assez", Assaz Bela. Os netos de Rashi se tornaram seus alunos fervorosos e influentes tossafistas. Entre eles estavam o Rashbam e o Rabbeinu Tam, que vivia de emprestar e cambiar dinheiro.

O Rabbeinu Tam era muito criança para estudar com o avô: tinha quatro anos de idade quando Rashi faleceu. Contudo, em mais de um aspecto, podemos incluí-lo entre seus discípulos.

Rashi era amigo de seus alunos. Correspondia-se com eles, assim como com outros mestres; nenhuma carta ficava sem resposta. No âmbito da Responsa, registraram-se 334 de suas decisões. Uma pergunta dirigida a ele provoca riso. Em uma comunidade onde há apenas uma sinagoga, que din (lei) vigora, se dois kohanim (sacerdotes), ambos hatanim (recém-casados), desejam ser o primeiro convidado a ler a Torá? A quem caberá essa honra? Naturalmente, uma comunidade que tenha apenas uma sinagoga é inimaginável. Rashi, porém, pensava em todas as situações possíveis. Em geral, alinhava-se com Hillel o Velho, a quem admirava pela moderação e pela tolerância. Nesse aspecto, seguia o Rabbeinu Gershom. Como ele, permitia que os anusim - conversos involuntários ao cristianismo - retomassem o judaísmo e proibia que os outros lhes lembrassem seu passado. Se o converso era um kohen, descendente de Aarão, ordenava que lhe restituíssem o status de sacerdote. Assim, nos dias festivos, o ex-converso podia abençoar a congregação.

Tudo isso é historicamente comprovado. No entanto, como freqüentemente ocorre com grandes personalidades, Rashi teve sua cota de hagiógrafos. Comentaristas imaginativos sustentam que ele viajou pelo mundo inteiro, visitou o poeta e rabino Yehuda Halévy na Espanha e o duque de Praga em seu castelo, e que Godofredo de Bouillon se apresentou a ele antes de partir com a primeira cruzada para libertar Jerusalém.

Seus admiradores estavam convencidos de que ele falava todas as línguas, dominava todas as ciências e possuía todos os poderes místicos necessários para tornar-se invisível.

Os autores hassídicos dedicam profunda afeição ao mestre que chamam de der heiliger Rashi - o santo Rashi. Acreditam que a própria Shekhina inspirou sua obra. Um deles chega a dizer que Rashi não morreu de morte natural. Em termos mais simples, não morreu. Subiu ao céu - vivo.

O rabino Yitzhak-Eizik, de Ziditchoiv, escreveu:

Quando Deus, bendito seja Seu nome, pôs termo às tribulações de Abraão e lhe ordenou que poupasse seu filho, já amarrado no altar, Abraão não deu ouvidos ao anjo que lhe transmitiu a ordem divina. Só obedeceu quando Deus lhe prometeu que um de seus descendentes seria um certo Shlomo, filho de Isaac ou Itzhak de Troyes.

Mas entre os seguidores de Rashi não havia só judeus instruídos. Teólogos cristãos também sofreram sua influência. O padre Nicholas de Lyre, que viveu no final do século XIII e começo do XIV, cita Rashi tantas vezes em sua tradução da Bíblia que um tal Jean Mercier, do Colégio Real de Paris, o teria chamado de "Simius Solomonis" - macaco de Shlomo. E por meio de Nicholas de Lyre Rashi influenciou Martinho Lutero, cuja tradução da Bíblia deve muito à dele. Hoje em dia, os lingüistas estudam Rashi por diferentes motivos. Graças a ele têm a oportunidade de redescobrir termos do francês antigo. Os que Rashi usou em seus vários comentários - be'la'az - somam 3 mil.

O que nós devemos a Rashi? Devemos-lhe o compromisso com a intrigante e indispensável arte do comentário.

Comentar um texto é, antes de tudo, estabelecer com ele uma relação de intimidade: exploro suas profundezas para captar seu significado transcendental. Em outras palavras, ao comentar um texto, elimino distâncias. Leio uma frase formulada pelo rabino Akiba, talvez lá no outro lado dos mares e dos séculos e, a fim de penetrar seu intento original, deixo-a percorrer outras frases para emergir em minha mente.

Comentar um texto, sobretudo um texto antigo, é saber que, embora nem sempre eu consiga chegar à verdade, posso chegar perto de sua fonte. É remontar às origens de uma palavra ou de um nome cujas raízes estão na Revelação do Sinai. O Talmude freqüentemente usa a expressão Halakha le' Moshe mi' Sinai - a Lei transmitida a ou por nosso mestre Moisés no Sinai. Maimônides também a emprega. Sua especial importância consiste em encerrar o debate. No momento em que identificamos a gênese de uma decisão, devemos nos dar por satisfeitos. E todo o resto é comentário.

Em hebraico, comentário é perush. Mas o verbo lifrosh também significa separar, distinguir, isolar - ou seja, separar a aparência da realidade, a clareza da complexidade, a verdade de seu disfarce. Descobrir a substância - sempre. Descobrir a centelha, eliminar o supérfluo, afastar a obscuridade. Comentar é resgatar do exílio uma palavra ou uma noção que pacientemente esperavam fora do reino do tempo e dentro dos muros da memória.

Quando rezamos, dizia o falecido Louis Finkelstein, falamos com Deus; quando estudamos, Deus fala conosco. Se estudo é descoberta, comentário é aventura. Quando começo a escavar os recessos de um texto, descobrindo uma camada após outra, encontro predecessores que apontam o caminho. Atrevo-me a ir mais longe e mais fundo que eles? Isso é possível? Um comentarista moderno pode superar Rashi? Não - e, no entanto, somos incentivados a superá-lo. Qualquer estudioso pode comentar os comentários de Rashi para melhor entender um versículo bíblico ou uma passagem talmúdica. Assim, o processo do comentário nunca termina.

Mas como identificar a interpretação correta? Observando se ela enriquece a memória. Se a distorce, a interpretação é errada. Em outras palavras, um excesso de imaginação pode danificar o pensamento original. Para entender Isaías, devo procurá-lo na poesia majestosa e geralmente brutal de seus discursos públicos. Para apreender os preceitos de Hillel, devo mergulhar em suas lições e manter-me leal a elas. Como em tudo o mais, em termos de comentário a palavra-chave é lealdade.
Elie Wiesel, "Homens sábios e suas histórias"