segunda-feira, julho 1

Ragnarök

Nos sonhos (escreve Coleridge) as imagens figuram as impressões que pensamos que causam; não sentimos horror porque uma esfinge nos oprime — sonhamos uma esfinge para explicar o horror que sentimos. Se isto é assim, como poderia uma simples crônica de suas formas transmitir o estupor, a exaltação, os alarmes, a ameaça e o júbilo que teceram o sonho dessa noite? Não obstante, tentarei essa crônica; talvez o fato de que uma única cena integrou aquele sonho apague ou mitigue a dificuldade essencial.

O lugar era a Faculdade de Filosofia e Letras; a hora, o entardecer. Tudo (como costuma ocorrer nos sonhos) era pouco nítido; uma ligeira magnificação alterava as coisas. Elegíamos autoridades; eu falava com Pedro Henriques Urefia, que na vigília morreu há muitos anos. Bruscamente aturdiu-nos um clamor de manifestação ou de charanga. Alaridos humanos e animais chegavam de Abaixo. Uma voz gritou: Aí vêm! e depois Os Deuses! Os Deuses!

Quatro ou cinco sujeitos saíram da turba e ocuparam o estrado da Aula Magna. Todos nós aplaudimos, chorando; eram os Deuses que voltavam depois de um desterro de séculos. Alteados pelo estrado, a cabeça lançada para trás e o peito projetado para a frente, receberam com soberba nossa homenagem. Um sustinha um ramo, que se conformava, sem dúvida, à botânica simples dos sonhos; outro, com um largo gesto, estendia uma de suas mãos, que era uma garra; uma das caras de Jano olhava com receio o recurvado bico de Toth. Excitado talvez por nossos aplausos, um, já não sei qual, prorrompeu em um cacarejo vitorioso, incrivelmente áspero, com algo de gargarejo e de assovio. A partir daquele momento, as coisas mudaram.

Tudo começou pela suspeita (talvez exagerada) de que os Deuses não sabiam falar. Séculos de vida fugitiva e selvagem haviam atrofiado neles o lado humano: a lua do Islã e a cruz de Roma tinham sido implacáveis com estes prófugos. Rostos muito baixos, dentaduras amarelas, bigodes ralos de mulatos ou de chineses e beiçolas bestiais tornavam pública a degeneração da estirpe olímpica. Seus adereços não correspondiam a uma pobreza decorosa e decente, mas sim ao luxo malévolo das casas de jogo e dos lupanares de Abaixo. A uma botoeira sangrava um cravo; em um casaco ajustado se adivinhava o vulto de uma adaga. Bruscamente sentimos que eles jogavam sua última cartada, que eram matreiros, ignorantes e cruéis como velhos roedores e que, se nos deixássemos possuir pelo medo ou pela piedade, acabariam por destruir-nos.

Sacamos os pesados revólveres (na hora surgiram revólveres no sonho), e alegremente demos morte aos Deuses.

Jorge Luis Borges, "Livro de Sonhos"

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