A gente habitua-se à noite, tanto quanto os pássaros acabam por habituar-se a viver nas gaiolas suspensas das empenas. Se acontece de alguém erradamente os soltar, conhecem apenas a tristeza de umas asas sem préstimo. Perderam o sentido da orientação. Não sabem que as árvores servem para nelas pousarem. Remam no ar, contra o vento, embatem em obstáculos súbitos e inevitáveis. Desconhecem um mundo e recusam-se a aprendê-lo de novo. Cheios do tédio do infinito, permanecem atónitos e dificilmente escapam às doenças que existem só nos desertos. Se os não voltam a fechar nas gaiolas, morrem facilmente, perdidos da alegria. E já não têm idade. E nada sabem a respeito dos outros pássaros de voo largo e horizontal que, sendo livres, pousam tão devagar na alegria. Até medo lhes ganham. Afigura-se-lhes que os objectos que eles se tinham habituado a olhar à distância, por detrás da sua prisão de canas fictícias, estão agora para os devorar.
João de Melo, "A Divina Miséria de Entre Pássaro e Anjo"
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