quinta-feira, outubro 3

Duas irmãs

Às oito da noite do dia vinte de Maio, as seis baterias da brigada de artilharia de reserva N., em marcha para o acampamento, fizeram alto para pernoitar na aldeia de Mestétchki. No auge da barafunda, enquanto uns oficiais se atarefavam em volta dos canhões e outros, na praça, num magote encostado à cerca da igreja, se entendiam com o quartel‑mestre sobre o aboletamento, surgiu por trás da igreja um cavaleiro à civil montado num cavalo invulgar. Era um baio malhado, pequeno e raboto, de pescoço lindo, que não andava a direito, mas ladeava em passinhos curtos de dança como se estivessem a chicotear‑lhe as pernas. Chegado ao pé dos oficiais, o cavaleiro ergueu o chapéu e disse:

— Sua senhoria o tenente‑general e proprietário von Rabbeck manda convidar os senhores oficiais para tomarem chá lá em casa, agora mesmo…

O cavalo fez uma vénia, dançou e recuou ladeando; o cavaleiro voltou a erguer o chapéu e, num instante, desapareceu mais o cavalo por trás da igreja.

— Raios o partam — resmungava‑se entre os oficiais, que se puseram a caminho dos alojamentos. — Apetece é dormir, e vem este von Rabbeck com o chá dele! Já se sabe que rico chá vai ser!


Todos os oficiais das seis baterias recordavam nitidamente um caso do ano passado, durante as manobras, em que eles, juntamente com os oficiais de um regimento de cossacos, tinham sido convidados da mesma maneira para o chá, por um conde, também proprietário rural e militar na reserva; o conde fora hospitaleiro e simpático, serviu‑lhes o jantar e bebidas e não os deixou ir para onde estavam aboletados, fê‑los dormir em sua casa. Tudo bem, até óptimo, não fora o homem ter‑se, infelizmente, alegrado de mais com a visita dos jovens. Toda a noite falou, até ao amanhecer contou à rapaziada os episódios do seu belo passado, passeou‑os pelos aposentos, mostrou‑lhes telas caras, gravuras antigas, armas raras, leu‑lhes cartas que personalidades altamente colocadas lhe tinham endereçado, e os oficiais extenuados ouviam, olhavam e, na ânsia de uma cama, bocejavam à socapa nas mangas; quando, finalmente, o anfitrião os largou já não eram horas de dormir.

Não será igual, este Rabbeck? Seja ou não seja, nada a fazer. Os oficiais mudaram de roupa, aprontaram‑se e foram em bando à procura do solar do Rabbeck. Na praça, perto da igreja, tinham‑lhes dito que se podia chegar à propriedade por dois caminhos: o de baixo — descer, por trás da igreja, até ao rio, marginá‑lo até ao parque e, do parque, qualquer alameda os levava ao destino; o de cima — a partir da igreja, seguir a direito pelo caminho que, uns quinhentos metros mais à frente dava para os celeiros da propriedade. Escolheram o de cima. — Que Rabbeck será este? — cogitavam alto enquanto andavam. — Não é o que comandou em Plevna a divisão de cavalaria N.?

— Não, esse não era von Rabbeck, era simplesmente Rabbe, sem von.

— Mas que rico tempo está!

Junto do primeiro celeiro da propriedade, o caminho bifurcava‑se: um ramal seguia em frente e perdia‑se na bruma do crepúsculo; o outro metia para a direita, até à casa senhorial. Os oficiais viraram à direita e começaram a falar mais baixo… De ambos os lados do caminho erguiam‑se celeiros e mais celeiros de pedra com telhados vermelhos, pesados e severos, um pouco como casernas de cidade de província. Em frente luziam as janelas do solar.

— Meus senhores, bom sinal! — informou um dos oficiais. — O nosso setter vai à frente: fareja caça…

O tenente Lobitko, à frente de todos, alto e forte mas imberbe (passava dos vinte e cinco e não se lhe via um único pêlo na cara redonda e cevada), famoso na brigada pelo seu faro e capacidade de adivinhar à distância a presença de mulheres, virou‑se e disse:

— Sim, há mulherio para estes lados, o meu instinto sente‑o. À porta de casa, foram recebidos pelo von Rabbeck em pessoa. Andaria pelos sessenta anos, bem apessoado, trajando à paisana. Enquanto apertava as mãos aos convidados, ia dizendo que estava feliz e contente, mas pedia encarecidamente aos senhores oficiais, por amor de Deus, que lhe perdoassem por não os ter convidado a pernoitar lá em casa; é que tinham chegado de visita duas irmãs com os filhos, mais uns irmãos e uns vizinhos, não tinha um único quarto livre.

Pedia muitas desculpas, apertava as mãos de todos e sorria, mas via‑se‑lhe pela cara que estava, de longe, menos contente com a visita do que o conde do ano transacto e que só convidara os oficiais porque as conveniências assim o exigiam. Os oficiais sentiam‑no ao subirem a escadaria atapetada e, à vista da criadagem em roda‑viva a acender as luzes em baixo, à entrada, e em cima, no vestíbulo, começou a parecer‑lhes que estavam ali só porque seria indelicado não os convidarem e que introduziam naquela casa um incómodo e uma inquietação.

Numa casa em que, por um fausto de família qualquer, se reuniam duas irmãs com os filhos, e mais uns irmãos e uns vizinhos, alguma vez agradaria a invasão de dezanove oficiais desconhecidos?
Anton Tchékhov , "O Beijo"

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