terça-feira, maio 31

Sísifo

 

Ali Divandari (Iran)

O vapor das panelas e o tinir das moedas

Existem em Alexandria umas ruas chamadas “dos sarracenos”, que gozam de especial renome porque os árabes que mantêm ali suas tendas são os melhores cozinheiros, e os pratos que eles preparam deliciam os gastrônomos mais exigentes. Os sibaritas, gente verdadeiramente refinada em assuntos de mesa, frequentam aquelas ruas da mesma forma que, nas cidades elegantes, as pessoas frequentam as ruas onde há comércio de quadros.

Encontrava-se na sua cozinha um daqueles famosos cozinheiros, chamado Fabrac, quando se apresentou ali, com uma empada na mão, um mendigo sarraceno, que nem de longe tinha dinheiro para pagar o preço de um daqueles pratos famosos. O mendigo segurou a empada sobre a panela em que estava sendo preparado um guisado, e ela foi sendo impregnada pelo cheiroso vapor que dela se desprendia. Depois que a sentiu bem no ponto, retirou-a e se deliciou com o resultado do seu expediente culinário.

Fabrac não gostou daquilo. Não achava correto o procedimento do mendigo, e o intimou:

— Agora você tem de me pagar o que pegou da minha cozinha.

— Da sua cozinha eu não peguei nada. Só usei um pouco do seu vapor.

— Que seja! Você tem de me pagar então o vapor que pegou.

Tanto discutiram, tanto se encresparam, e tal escândalo moveram por causa da estranha reclamação, que a coisa chegou aos ouvidos do sultão. Como o assunto era muito original, o sultão não quis resolvê-lo antes de conhecer a opinião dos dois contendores. Chamou-os à sua presença, e a questão foi planteada pelo cozinheiro nos termos mais enérgicos.

Os sábios da corte do sultão começaram a discutir, argumentar, distinguir e sutilizar, como só os orientais o sabem fazer. Um dizia que o vapor não era do cozinheiro, pois se tratava de coisa que o demandante não podia reter, e se dissipava na atmosfera, além de carecer de substância corpórea e não deter propriedades úteis. Portanto, o mendigo não estava obrigado a pagar.

Outros, pelo contrário, sustentavam que o vapor era uma propriedade inerente ao que estava sendo cozinhado, algo consubstancial com ele, produzido por ele e só atribuível a ele; e como o prato saboroso era um resultado da perícia do cozinheiro e do seu trabalho, sendo do seu trabalho que cada homem deve viver, era lógico que o demandante recebesse um pagamento pelo uso daquele resultado do seu trabalho.

Muitos foram os argumentos, as razões, as argúcias e até os sofismas que se esgrimiram na contenda. Mas nada superou a engenhosa solução dada pelo sultão.

— Senhores, quando o cozinheiro vende a alguém o prato que preparou, é justo que esse resultado material e tangível do seu trabalho seja pago com algo também material e tangível, que são as moedas. Tendo em vista que o vapor é a parte sutil e não tangível do prato que o cozinheiro preparou, deve também ser paga com algo imaterial e intangível.

Dirigindo-se então ao mendigo, perguntou:

— Tens aí algumas moedas?

— Sim, senhor, pois as pessoas me ajudam geralmente com moedas, ainda que de pouco valor.

— Então tome-as dentro de um saquinho, e agite-as bem.

Feito isso, o sultão despediu o demandante, dizendo-lhe:

— Considere-se pago, e muito adequadamente, pois o tinir das moedas é a parte imaterial e intangível delas.
Novellino

Serafim

Tinha feito uma viagem. Conhecera a Europa “pacífica” de 1912. Uma sincera amizade pela ralé notívaga da butte Montmartre, me confirmava na tendência carraspanal com que aqui, nos bars, a minha atrapalhada situação econômica protestava contra a sociedade feudal que pressentia. Enfim, eu tinha passado por Londres, de barba, sem perceber Karl Marx.

Dois palhaços da burguesia, um paranaense, outro internacional “le pirate du lac Leman” me fizeram perder tempo: Emílio de Menezes e Blaise Cendrars. Fui com eles um palhaço de classe. Acoroçoado por expectativas, aplausos e quireras capitalistas, o meu ser literário atolou diversas vezes na trincheira social reacionária. Logicamente tinha que ficar católico. A graça ilumina sempre os espólios fartos. Mas quando já estava ajoelhado (com Jean Cocteau!) ante a Virgem Maria e prestando atenção na Idade Média de São Tomás, um padre e um arcebispo me bateram a carteira herdada, num meio dia policiado da São Paulo afarista.

Segurei-os a tempo pela batina. Mas humanamente descri. Dom Leme logo chamara para seu secretário particular, a pivete principal da bandalheira.

Continuei na burguesia, de que mais que aliado, fui índice cretino, sentimental e poético. Ditei a moda Vieira para o Brasil Colonial no esperma aventureiro de um triestino, proletário de rei, alfaiate de Dom João 6º.

Do meu fundamental anarquismo jorrava sempre uma fonte sadia, o sarcasmo. Servi a burguesia sem nela crer. Como o cortesão explorado cortava as roupas ridículas do Regente.
 Oswald de Andrade, "Serafim Ponte Grande"

segunda-feira, maio 30

Altura de paz

 

Jack Noel Kilgour 

O segredo do rio

Era uma vez um rapaz que morava numa casa no campo. Era uma casa pequena e branca, com uma chaminé muito alta por onde saía o fumo da lareira, que no inverno estava sempre acesa, e que servia para cozinhar e para aquecer a casa. 

À roda da casa havia um pomar com árvores de fruto e, como as árvores eram de várias espécies, havia sempre fruta fresca durante quase todo o ano. No inverno as árvores davam laranjas e tangerinas, na primavera davam peras e maçãs vermelhas, no verão era a vez das ameixas, das cerejas e dos pêssegos, no fim do verão e no outono chegavam os figos e os marmelos e a parreira grande que dava sombra enchia-se de uvas. E, quando passava a estação própria de cada fruta, podia-se comer as compotas que a mãe do rapaz tinha feito e que guardava em tigelas de barro e boiões de vidro que davam sempre um cheiro perfumado a toda a casa.

Mas, além das árvores do pomar, o campo à roda da casa onde o rapaz vivia tinha também outras árvores, muito altas e grossas e que eram tão antigas que já estavam lá antes de a casa ter sido feita pelo avô do rapaz. O castanheiro dava castanhas, a nogueira dava nozes, mas, acima de tudo, as árvores grandes e antigas, como os dois carvalhos em frente de casa, davam sombra e pareciam guardar a casa e fazer companhia. 

Junto ao ribeiro, que passava à frente do terreno, havia faias, altas e esguias, e chorões, cuja copa densa caía até o chão e debaixo das quais o rapaz brincava às cabanas com os amigos e com os dois irmãos mais novos. 

Mas o sítio preferido do rapaz era o ribeiro. O ribeiro era um braço do rio que passava lá ao longe, na aldeia, e que de repente se separava dele e serpenteava pelo meio dos campos, entre os arrozais e os campos de milho do verão, até voltar a encontrar-se outra vez com o rio principal, já depois de passada a casa. 

O ribeiro fazia uma curva e depois mergulhava numa pequena cascata de pedras, antes de se alargar e formar um lago, mesmo em frente da casa. O chão era de areia e pequenas pedras, que se chamam seixos, e a água era transparente e ótima para beber. 

As pessoas que moravam naquele lugar e na aldeia próxima bebiam daquela água, cozinhavam com ela e pescavam no rio e por isso todos tinham muito cuidado para não sujar o rio, deitando lixo ou outras coisas lá para dentro. As pessoas sabiam que a água é a coisa mais preciosa da vida e que um rio que corre limpo é um milagre da natureza que não pode ser estragado. 

Aí, nesse pequeno lago que o ribeiro formava, o rapaz aprendera a nadar ainda muito pequeno e passava lá todos os dias de verão a tomar banho. Debaixo de água nadava com os olhos abertos e por isso conhecia já quase todo o fundo do rio, desde as pedras mais bonitas até as várias espécies de peixes que desciam pela cascata e atravessavam o lago, continuando pelo rio abaixo em direção ao mar, muito longe dali. Havia também dois ou três peixes que não estavam de passagem e moravam nas margens do pequeno lago, entre esconderijos de pedras, cobertos por ramos de árvores que mergulhavam sobre as águas e escondiam os seus buracos. Às vezes o rapaz ia espreitá-los nas suas casas e, quando não os via lá, sabia que os peixes tinham ido nadar ao longo do rio, à procura de comida
Miguel Sousa Tavares, "O segredo do rio"

A mão exata do amor

Ruth Swain 
O amor tem a mão exata. Sempre de nós com todo o zelo trata. Nos implora perdão, se nos maltrata, e nos mata sem dor, quando nos mata.


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Mario Quintana dava a impressão de lidar com todas as palavras, mesmo as mais solenes, como se fosse um menino abrindo a mochila no recreio, para pegar uma maçã.

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Era um daqueles poetas sonetosos e contumazes que, antes de lerem seus poemas para o público, limpavam com seu pigarro melodioso o ouro da garganta.

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Um problema dos gatos é serem tão escapáveis, tão atropeláveis, tão morríveis.

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Os provérbios já nascem de terno, gravata e nariz empinado.

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Que a poesia pudesse ser sempre como uma casa simples, muito simples, com todas as janelas escancaradas para o sol.

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Tenho escrito algumas coisas. Coisinhas, todas. Mas, se viesses ver-me, talvez não te desagradassem. Tu as melhorarias, como fazes com tudo que vês e tocas. Talvez eu não te desagradasse.

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O poeta concretista gostaria muito que seu coração de pedra não fosse simplesmente uma metáfora.

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Quem deve ter mais pejo? O poeta que faz sonetos ou o cantor sertanejo?

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Poesia é um problema. Num dia falha o poeta, no outro falha o poema.

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Quem fala meio espanhol e meio português, ou fala portunhol ou fala espaguês.

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Era um morto de fisionomia confiável, com quem ninguém temeria ficar a sós, mesmo que as luzes do velório repentinamente se apagassem.
Raul Drewnick

domingo, maio 29

Leitor diletante

 


Ao correr da máquina

Meu Deus, como o mundo sempre foi vasto e como eu vou morrer um dia. E até morrer vou viver apenas momentos? Não, dai-me mais do que momentos. Não porque momentos sejam poucos, mas porque momentos raros matam de amor pela raridade. Será que eu vos amo, momentos? Responde, a vida que me mata aos poucos: eu vos amo, momentos? Sim? Ou não? Quero que os outros compreendam o que jamais entenderei. Quero que me deem isto: não a explicação, mas a compreensão. Será que vou ter que viver a vida inteira à espera de que o domingo passe? E ela, a faxineira, que mora na Raiz da Serra e acorda às quatro da madrugada para começar o trabalho da manhã na Zona Sul, de onde volta tarde para a Raiz da Serra, a tempo de dormir para acordar às quatro da manhã e começar o trabalho na Zona Sul, de onde. – Eu vou te dar o meu segredo mortal: viver não é uma arte. Mentiram os que disseram isso. Ah! existem feriados em que tudo se torna tão perigoso. Mas a máquina corre antes que meus dedos corram. A máquina escreve em mim. E eu não tenho segredos, senão exatamente os mortais. Apenas aqueles que me bastam para me fazer ser uma criatura com os meus olhos e um dia morrer. Que direi disso que agora me ocorreu? Pois ocorreu-me que tudo se paga – e que se paga tão caro a vida que até se morre. Passear pelos campos com uma criancinha-fantasma é estar de mãos dadas com o que se perdeu, e os campos ilimitados com sua beleza não ajudam: as mãos se prendem como garras que não querem se perder. Adiantaria matar a criancinha-fantasma e ficar livre? Mas o que fariam os grandes campos onde não se teve a previdência de plantar nenhuma flor senão a de um fantasminha cruel? Cruel por ser criancinha e exigente. Ah! sou realista demais: só ando com os meus fantasmas.

Clarice Lispector, "Todas as crônicas"

Relax dominical

serdar (Turquia)

 

Mais leve


Com os anos, a gente vai se desvencilhando de pesos desnecessários, em busca de maior leveza. Assim é com relacionamentos, desde os corrosivos até os que nada acrescentam e apenas nos sugam a energia vital. Assim é com roupas que antes nos caíam bem e agora parecem de outra pessoa. Com lembranças que a mente insistia em reviver e resolvemos esquecer. Com perdões que nem pedimos nem demos. Com lugares, situações e hábitos que apagamos do roteiro (e, incrível, não fazem falta).

Com esse espírito, parti para novas resoluções esta semana. A primeira foi cancelar o telefone fixo. Evoluiu, passando a funcionar sem fios, mas, de uns tempos para cá, cumpria a função precariamente. Primeiro, a extensão deu defeito. Recentemente, o aparelho principal começou a ratear também: os interlocutores não conseguiam me ouvir. Resolvi esquecê-lo por cerca de um mês e constatei que já não dependo dele para nada, graças ao celular. Então, fui à empresa telefônica e eliminei o problema, renunciando à linha e economizando alguns trocados.

Mexendo em velhos papeis, percebi que era hora de me livrar de faturas, declarações para o Imposto de Renda e outros, guardados há mais de cinco anos. Num primeiro impulso, embalei tudo em sacos de lixo. Mas a vozinha interior recomendou prudência: melhor rasgá-los antes do descarte. Eram muitos pacotes, que me desanimavam só de olhar. Aí lembrei das fragmentadoras existentes nos grandes escritórios e me pus a pesquisar.

Depois de conhecer vários modelos e preços, optei por uma manual, do tamanho da necessidade. Eficiente, ela me distrai como brinquedo novo, enquanto transforma a papelada em tiras. E, a cada porção fragmentada, sinto o passado burocrático enfatizar que o tempo dá o devido valor a cada momento: o que já foi importante, agora não passa de entulho.

Uma antiga canção diz que “recordar é viver”. Melhor atualizar o dito. Nesta fase da vida, mais exato é afirmar: “renovar é viver”. E seguir em frente, cada vez mais leve.

Ser feliz é nosso maior desafio hoje

Comecei a semana decidida a ser feliz. Maio está no fim, é urgente absorver essa luz e os dias frescos. No domingo, levei os netos ao Pão de Açúcar. Ou foram eles que me levaram e esse é um dos méritos das crianças. Elas nos fazem repetir experiências antigas com olhos novos. Nunca tinham andado no bondinho. Ficaram deslumbrados com o passeio e a vista de montanhas e águas, a infinidade de barcos que pareciam de brinquedo, os alpinistas. O Rio de Janeiro visto de cima no outono é uma overdose de beleza. A Praia Vermelha estava em festa. Nina e Tom caminhavam dançando. 

Continuei segunda adentro determinada a evitar tudo que pudesse me deprimir. Um detox de uma semana, pensei, será um exercício de sã inconsciência. Isso significa não ler absolutamente nada sobre o atual ocupante do Palácio do Planalto. Fugir de militantes fanáticos de qualquer partido, todos chatos e agressivos. Esquecer os arrogantes que presidem a Câmara e o Senado. Ignorar quem governa o Estado do Rio. Não ler comentários nas redes. Ler romances. Caminhar na praia às 7hs da manhã, sem celular, evitando tropeçar na miséria adormecida sob as marquises. Assistir a séries e não telejornais. Fechar olhos e ouvidos à maldade de madrastas e à covardia de feminicidas. Convenhamos, a alienação exige um esforço.

Meu projeto foi atropelado na terça. Por dois massacres. Um no Texas e outro no Rio de Janeiro. Numa escola e numa favela. Um foi obra de um desequilibrado de 18 anos. Outro foi obra de forças de segurança, pagas para nos proteger e não para promover chacinas. As duas sociedades, a americana e a brasileira, cultuam o acesso indiscriminado às armas de grosso calibre. A diferença é que, nos Estados Unidos, o presidente critica o lobby armamentista – embora se considere impotente porque os estados são soberanos. No Brasil, o presidente quer mais armas para todos. Seu sonho é transformar nosso país num grande Texas. Como eu queria ser feliz nesta semana, não vi os corpos sendo recolhidos, não acompanhei funerais lá e cá.

Conversei com alguns psicanalistas. Diante da angústia vomitada nos consultórios com o autoritarismo, a desigualdade social extrema, a fome, o aquecimento global, as epidemias, as guerras, eles aconselham aos cidadãos comuns: cuide honestamente de sua vida e sua família porque não está a seu alcance evitar as catástrofes. Não seja presunçoso achando que se indignar adiantará alguma coisa. O planeta está tóxico. Aja em casa, na rua e no trabalho com ética e responsabilidade. Mas não dê murro em ponta de faca nem se vicie em tragédias. 

“Como autodefesa, para não sofrer e não ficar refém do medo, as pessoas isolam a violência num escaninho tipo ‘não quero ver isso’, ‘não é comigo’. É uma forma nova de anomia”, me disse o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches. “Isso é agravado por uma sociedade cada vez mais fragmentada, na qual a vida está ficando tão penosa, com tanto desemprego, inflação, barbárie que a maioria se torna individualista, tipo cada um por si. E perdemos a capacidade de indignação e reação coletivas. Naturalizamos o anormal. Até que as mentes saturadas de espanto rompam a inércia e provoquem uma onda avassaladora de rejeição desse estado de coisas e vire a sociedade de ponta-cabeça”.

É possível ser feliz desistindo de brigar por um mundo melhor e mais justo? Talvez por uma semana. Escuto Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. 

sábado, maio 28

Desvenda-se

 

Sherif Arafa (Egito)

Fada mãe

Minha mãe era uma pessoa silenciosa, capaz de dissimular-se entre os móveis, de perder-se no desenho do tapete, de não fazer o menor ruído, como se não existisse; contudo, na intimidade do quarto que dividíamos, ela se transformava. Começava a falar do passado ou a narrar suas histórias, e então o aposento se enchia de luz, desapareciam as paredes, dando lugar a incríveis paisagens, palácios abarrotados de objetos nunca vistos, países longínquos inventados por ela ou tirados da biblioteca do patrão; colocava a meus pés todos os tesouros do Oriente, a lua e mais ainda. reduzia-me ao tamanho de uma formiga, para eu sentir o universo a partir da minha pequenez, punha-me asas para vê-lo a partir do firmamento, dava-me uma cauda de peixe para conhecer o fundo do mar.

Isabel Allende, "Eva Luna"

Poder de síntese

Um dia, Madame de Sevigné sentenciou: “O café passará, como Racine.” Ah, que poder de síntese, minha cara Madame! Como foi que a senhora conseguiu dizer duas barbaridades numa única frase?

Poder de síntese, esse o tinha, de fato, Racine, quando, para darmos apenas um exemplo, conseguiu expressar a paixão, a crueldade, a complexidade do caráter de Nero num só verso de doze sílabas: “J’aimais jusqu’à ses pleurs, que je faisais couler!” (Eu amava até as suas lágrimas, que eu fazia correrem!)

Sim, porque o verdadeiro sádico ama verdadeiramente a quem faz sofrer.

Que o digam esses pretensos casais desunidos, que jamais conseguem separar-se. Só os sádicos? — pergunto eu. Recordemos aquelas palavras de Oscar Wilde, na Balada do cárcere: “A gente sempre mata aquilo que ama; os fortes com um punhal, os covardes com um sorriso.”

Aliás, o Nero do alexandrino raciniano já tinha decretado a morte da sua amada, cujas lágrimas agora tanto o enterneciam.

Haverá os santos do inferno? Nero deverá ter sido um deles…

Porque na verdade é idêntico o nosso pasmo, quase incrédulo, tanto ante a vida de Nero como ante a vida de São Francisco de Assis. Porque os extremos sempre se tocaram. Porque os Santos — no seu prodigioso arrebatamento — são uma espécie de celerados do Bem.
Mario Quintana

quinta-feira, maio 26

Book delivery

 


Conto familiar

Era um velho que estava na família há noventa e nove anos, há mais tempo que os velhos móveis, há mais tempo até que o velho relógio de pêndulo. Por isso estava ele farto dela, e não o contrário, como poderiam supor. A família o apresentava aos forasteiros, com insopitado orgulho: “Olhem! vocês estão vendo como ‘nós’duramos?!”

Caduco? Qual nada! Tinha lá as suas ideias. Tanto que, numa dessas grandes comemorações domésticas, o pobre velho envenenou o barril de chope.

No entanto, como era obviamente impraticável — a não ser em novelas policiais — deitar veneno nas bebidas engarrafadas, apenas sobreviveram os inveterados bebedores de coca-cola.

— Mas como é possível — lamentava-se agora tardiamente o pobre velho —, como é possível passar o resto da vida com esses? Com gente assim? Porque a coca-cola não é verdadeiramente uma bebida — concluiu ele —, a coca-cola é um estado de espírito…

E, assim pensando, o sábio ancião se envenenou também.
Mario Quintana

Fronteira mental

As ruas pedonais do centro histórico de Olivença são calcetadas com pequenas pedras brancas e pretas, como o Largo do Senado, em Macau, como o calçadão de Copacabana, no Rio de Janeiro, como em tantas cidades e vilas portuguesas. Um dos padrões que rapidamente reconhecemos é o das ondas, sugestão de um oceano que fica a mais de duzentos quilómetros de distância. Chama-se a esse padrão “mar largo”, existe pelo menos desde o século XIX. O seu exemplo mais notório apresenta-se na calçada do Rossio, em Lisboa, tendo-se difundido pelo mundo a partir daí.


O palácio municipal é um dos monumentos notáveis de Olivença. Construído em meados do século XV, é um edifício de dois pisos, colado à muralha medieval. Diante da sua porta principal, há um notável trabalho de calcetagem, representa com todo o detalhe o mapa do centro histórico, o casco viejo. Aberta para esse chão, está uma entrada com impressionante ornamentação, manuelina, repleta de elementos deste estilo escultórico que se desenvolveu no reinado de D. Manuel I, o Venturoso, rei de Portugal e dos Algarves.

Tenho uma amiga portuguesa com olhos e cabelos claros, que vive na Suécia. Quando nos encontramos, costuma sempre descrever episódios das suas aventuras em Estocolmo. Conta que, nas mais diversas atividades do seu dia a dia, cruza-se com suecos absolutamente convencidos de que também ela é sueca. No entanto, se tem de abrir a boca para dizer alguma coisa, todos se admiram ao perceberem o equívoco.

De certa forma, assim é Olivença. Se não conhecêssemos a história, se não passássemos por ruas com gente de todas as idades a falar castelhano, seria fácil acreditar que estamos em Portugal. Às vezes, focamo-nos em algum detalhe, distraímo-nos por um instante e, quando voltamos a prestar atenção ao lugar onde estamos, somos como os tais suecos, espantamo-nos com alguém a dizer buenos dias ou alguma coisa do género.

A Igreja de Santa Maria Madalena é o monumento mais notável de Olivença. Também ele se encontra profusamente decorado com motivos de estética manuelina, esse gótico português tardio. E, no entanto, existe no seu interior uma solenidade sem pátria, uma representação da transcedência com o tamanho de séculos. Em setembro, num dia em que as nuvens e o sol se alternavam no céu, esperei no interior dessa igreja pelos raios que, com a inclinação certa, atravessaram os vitrais e projetaram um extraordinário desenho de cores no corredor central, luz sobre a pedra, o altar lá ao fundo.

O que são as fronteiras? Olivença é um curioso enclave para colocar esta questão. De um lado, Espanha, com todas as suas comunidades autónomas e, do outro lado, Portugal. E, ainda assim, ao contrário de um tempo que recordo bem, nenhuma dessas fronteiras hoje nos obriga a parar, a mostrar os documentos, a mostrar a bagageira do carro a pedido de guardas fardados.

Passeámos pelas ruas de Olivença, entre o cheiro fresco das folhas de laranjeira, sob as varandas, através dos arcos, as nossas sombras ao longo das paredes limpas.

Existe a história, problema sem fim, mas existe também o presente. Entre os portugueses, quantos já visitaram Olivença? Qual é a fronteira invisível que nos impede de chegar ao outro lado? A primeira característica das fronteiras é, justamente, a ideia de que existe outro lado. Há as fronteiras que nos impõem, mas há também as fronteiras que reconhecemos implicitamente, que edificamos na nossa cabeça e que, por incapacidade própria, não somos capazes de abolir.
José Luís Peixoto

quarta-feira, maio 25

Solidão do leitor

 


Lojas Glória ou o descamar da divindade alheia

Se frequentar as lojas Glória era um momento de festa, pelo demasiado esforço para convencer a mãe na empreitada daquela pequena jornada, um grande passeio da existência infantil… Dobrando quarteirões desconhecidos, do centro seguro e calmo do bairro rumo às perturbadoras e desconhecidas avenidas, em um movimento que traga, que altera, ao ir lentamente abandonando a seguridade da família. Apenas uma movimentação falseada pelas ruas de casas decrépitas e calçadas irregulares, ou um cisco penetrar na órbita do olho depois de uma ventada na tubulação deserta do caminho passado, são necessários para adentrar ou não na espacialidade dos magazines.


Nunca vira ruas como aquelas, em que há dois ou três degraus de calçada (como proteção de enchentes?), antes da porta de entrada dos casebres, na condolência de caminhos planos e muito retos, no decorrer da inteireza de um meio de tarde, espaço entretempos que a cada dia redivive uma feição infinita. Mas se eu tivera estacado no caminho das lojas Glória ou parasse em frente à loja, a espera de algo além, tendo levado para mim uma ou outra coisa, que nem mais existe ou quedou inútil…

Agonizantes casas que amei sem conhecer, que mesmo delas nada sei além das fachadas carcomidas, entretanto, de uma beleza que passo a crer que fui eu que melhor a vi, enxerguei e reconheci. Estranha prepotência da qual poderiam escarnecer, devaneios de loucos, julgar-se o que mais e melhor amou, o mais apto a dar e a receber, e aquele que merecia as uvas. Mas não me condeno pois isso consiste em visionamento opaco, fato internalizado. Esperaria, portanto, pela sua agonia final? Ou uma transformação em coisa tão diversa que nem mesmo mais me interessaria por elas em sua nova roupagem?

A vida como um movimento em falso e descaso – para ir em frente, se dissuadir de grandezas e sentimentos, para ir adiante, e encontrar outras larguezas de avenidas, magazines amplos. Mas que outros? Com qual amplitude? Apenas mais outros? Essas lojas Glória, por sobre aqueles olhos por cima do vidro do carro, pareciam algo tão glorioso. No entanto, anos depois passo rapidamente em frente, e vejo um galpão tão sinistro, escuro, talvez abandonado. Eu não sabia que poderia caber uma tamanha feiura naquele lugar, e que não me pertenceriam aqueles caminhos em mais nenhuma hipótese. Acaso precisaríamos jogar sujo, demonizar, para colocar em seu devido lugar o divinizado?

Sua alteza real

Estamos na Albrechtstrasse, aquela artéria da capital que liga a Albrechtsplatz e o Velho Castelo à caserna dos Fuzileiros da Guarda. É o meio de um dia de semana, em alguma estação do ano qualquer. O tempo está razoavelmente bom, indiferente. Não chove, mas o céu tampouco está claro: apresenta uma coloração cinza-clara, esbranquiçada, uniforme, comum, sem nada de solene, e a rua está mergulhada numa luminosidade sóbria e obtusa, que impede qualquer mistério, qualquer atmosfera particular. Observa-se uma movimentação de intensidade
mediana, sem muito barulho e sem multidões, que corresponde ao caráter não muito industrioso da cidade. Vagões de bondes deslizam de um lado para outro, algumas carroças passam, a população caminha pelas calçadas, para cá e para lá, uma gente sem cor, passantes, público, povo. Dois oficiais, com as mãos enfiadas nos bolsos diagonais de seus sobretudos cinzentos, caminham um em direção ao outro: um general e um tenente. O general vem do lado do castelo; o tenente, do
lado da caserna. O tenente é um jovenzinho de barba macia, quase uma criança. Tem ombros estreitos, cabelos escuros e bochechas largas e ossudas, como as de muita gente daqui, olhos azuis, de expressão um pouco cansada, e um rosto de garoto, cuja expressão é amigável, porém fechada. O general, de cabelos brancos como a neve, alto e bem nutrido, é uma figura em tudo imponente. Suas sobrancelhas parecem feitas de algodão e seu bigode viceja sobre a boca e o queixo. Ele caminha com uma força vagarosa, o sabre tinindo sobre o asfalto enquanto o penacho oscila ao vento, e, a cada passo, as amplas lapelas vermelhas de seu sobretudo oscilam para cima e para baixo. E assim se aproximam um do outro. Será que isso poderá causar complicações? Impossível.

Qualquer um seria capaz de ver claramente o decurso natural de semelhante encontro. Trata-se, aqui, da relação entre velho e moço, comando e obediência, mérito antigo e tenro noviciado. Há, aqui, uma grande distância hierárquica, regras. Que a ordem natural impere! E, no entanto, o que ocorre em vez disso? Em vez disso, o que ocorre é o seguinte espetáculo surpreendente, constrangedor, encantador e equivocado: o general, ao ver o jovem tenente, modifica de forma estranha sua postura. Ele se encolhe e, efetivamente, fica menor. É como se atenuasse, com um só golpe, o esplendor de sua aparição; contém o tinir de seu sabre, enquanto uma expressão áspera e constrangida toma conta do rosto, e parece não saber ao certo para onde deve olhar, nem o que está tentando esconder ao olhar de lado, por debaixo de suas sobrancelhas de algodão, para o asfalto. Se observado de perto, o jovem tenente também revela certa intimidação que, curiosamente, parece mais bem dominada por certa graça e por certa disciplina do que no caso de seu grisalho superior hierárquico. A tensão da boca se transforma num sorriso, ao mesmo tempo modesto e bondoso, e seu olhar, por enquanto, contempla ao longe, atravessando o general com uma tranquilidade silenciosa e contida, que não parece demandar dele qualquer tipo de esforço. Agora, apenas três passos separam um do outro. E, em vez de cumprir com as demonstrações de respeito previstas no regulamento militar, o jovem tenente recua um pouco a cabeça e, simultaneamente, tira a mão direita — apenas a direita, algo que chama a atenção — do bolso do casaco e descreve com essa mão, calçada numa luva branca, um discreto movimento, protocolar e encorajador, apenas virando a palma para cima e abrindo os dedos. Mas o general, que aguardava por esse gesto com braços vacilantes, leva a mão ao quepe, desvia, faz uma espécie de reverência enquanto lhe dá lugar na calçada e saúda o tenente de baixo para cima, enrubescido, com olhos úmidos e obedientes. E então o tenente retribui a honra demonstrada por seu superior levando a mão ao quepe, enquanto uma cordialidade infantil move seu rosto por inteiro — e segue adiante.

Admirável! Uma aparição fantástica! Ele segue adiante. É visto, mas não enxerga ninguém. Vê o que está lá adiante, através das pessoas e por entre as pessoas, com um olhar que lembra o de uma mulher que tem consciência de estar sendo observada. Saúdam-no e ele saúda de volta, de maneira quase cordial, mas, ainda assim, distante. Aparentemente tem alguma dificuldade em caminhar. É como se não estivesse habituado a usar as próprias pernas, ou como se a atenção que todos lhe voltam obstruísse seus passos, que se tornam a tal ponto irregulares e hesitantes que, às vezes, parece mancar. Um policial se volta em sua
direção e se coloca em posição de sentido. Uma mulher elegante, saindo de uma loja, faz-lhe uma reverência, dobrando os joelhos. Todos se viram para olhá-lo, apontam com a cabeça em sua direção, erguem as sobrancelhas e pronunciam, sussurrando,
 seu nome…

É Klaus Heinrich, o irmão mais jovem de Albrecht ii e seu sucessor na linhagem do trono. Lá vai ele. Ainda é possível vê-lo. Conhecido e ainda assim estranho, ele avança em meio à gente, anda no meio da multidão e, mesmo assim, parece cercado pelo vazio. Afasta-se, solitário, e carrega, sobre os ombros estreitos, o fardo da sua alteza.
Thomas Mann

terça-feira, maio 24

Os dias ricos

É bom ter um dia complicado se formos nós a complicá-lo, à medida que vamos andando. São os dias ricos. Nunca sabemos o que vamos fazer a seguir mas fazemos sempre qualquer coisa a seguir, para não interromper a cadeia.

 Hana Augustine

Em vez de jantarmos em casa ou jantarmos fora, entramos num restaurante onde costumamos jantar e comemos apenas um petisco, um aperitivo. Os anfitriões também apreciam a mudança. É como ir cumprimentá-los.

Metemos conversa com um casal que só nos parece japonês porque queremos que seja, para lhes perguntar como preparam a massa Shirataki, que tem zero calorias. Perguntamos de onde são? Da Holanda, respondem. Os preconceitos, no sentido de pré-juízos ou pensamentos já feitos (na verdade, substitutos e obstáculos do conhecimento), são cada vez mais inúteis.

Os hábitos são diferentes. Para celebrá-los, nem é preciso esquecê-los ou trocá-los por alternativas, felizes ou desagradáveis. O melhor é interrompê-los e acrescentar-lhes desvios espontaneamente decididos que enaltecem, através da diversão, a felicidade subjacente.

Os dias ricos levam outro dia inteiro a contar. Só fazer a lista do que se fez cansa tão bem como nadar um quilômetro, devagarinho, num oceano vivo que nos consente. Dá gosto recontar, mesmo quando o dia foi ontem; mesmo quando o dia é hoje.

Complicar um dia não é desregrá-lo: é inventar novas regras para aplicar. O prazer é uma coisa só mas tem muitos caminhos. Experimentá-los é tão bom como descobri-los.
Miguel Esteves Cardoso

Buganvílias

Nossa casa é antiga, embora não secular — explicava-me aquela senhora — e o senhor sabe como essas construções antigas têm pé-direito alto, um despropósito. Nossos dois andares enfrentam bem uns três dos edifícios vizinhos. Isso lhe dará ideia da altura de minhas buganvílias, pois as raízes delas se misturam com os alicerces, e temos praticamente dois telhados: o comum, e esse lençol rubro de flores, quando vem pintando a primavera.

Não, não pense que as flores cobrem o telhado: elas formam o seu teto especial, no terraço, dominando a pérgula — e a boa senhora sorriu — que o antigo proprietário fez questão de construir, para dar um ar meio silvestre, meio parnasiano, àquela superfície árida de ladrilhos. Nossa casa está longe de ser bonita, embora eu goste muito dela; e quando as buganvílias funcionam a todo 
vapor, na florescência, não imagina como a nossa modesta alvenaria se transforma numa coisa espetacular, todo aquele dilúvio de escarlate que a brisa do Brasil beija e balança, os ladrilhos também se deixam atapetar de florinhas, e até o cãozinho, indo brincar no terraço, costuma voltar trazendo no pelo branco manchas encarnadas de primavera. Caem florinhas nas panelas da cozinheira, cá embaixo, e se a gente deixar entreaberta a janela do banheiro, pode tomar seu banho de Bougainvillea spectabilis, Willd., ou que nome tenha; sei que é uma nictaginácea, ouviu?

Tudo isso é simpático, mas tem seus inconvenientes. Quando nos instalamos, um mestre de obras ponderou: “Eu, se fosse madame, cortava essas trepadeiras. Veja como os troncos encorparam, e como as paredes vão trincando. A raiz está abalando tudo”. Não tive coragem de matar uma planta de Deus, aliás duas, subindo lado a lado, confundindo lá em cima os galhos e fazendo de nossa casa uma coisa diferente, no cinzento da Zona Sul (os moradores dos edifícios garantem que, vista do alto, a casa vale muito mais do que vista da rua, por causa das buganvílias, que fazem bem aos olhos). E depois, já tivemos que sacrificar a goiabeira para abrir mais uma caixa-d’água subterrânea, Deus nos perdoe. Não, as buganvílias, não. A casa pode vir abaixo, e seremos soterrados sob tijolos e flores, mas todo o poder às buganvílias!

Há dias foi engraçado, porque convidamos um casal para almoçar, e já na horinha me lembrei que não tínhamos flores em casa. Fui comprá-las correndo, mas a greve da Leopoldina acabara com elas, ou era a própria greve das flores, que pediam aumento de orvalho; não havia uma triste corola à venda. E não era dia de feira no bairro, de sorte que não se podia recorrer a flores de calçada. Voltei de alma ferida, porque se pode trabalhar sem flor, dormir sem flor, mas comer sem flor é desagradável, tira o sal. Estava imersa em vil desânimo, quando me pousou no nariz, trazida pelo vento, a florinha de buganvília, cujos ramos estão explodindo de vermelho, entre pinceladas verdes. Voei ao quarto de depósito, saí de lá brandindo a escada de três metros, e icei-a na pérgula. E com risco de romper o esqueleto, pois escada de casa velha também é velha e desconjuntada, aos olhos divertidos ou indignados da vizinhança, fui ceifando com tesoura aquele mar de florinhas sanguíneas. Enchi duas cestas enormes, e nunca minha casa ficou tão bonita como enfeitada assim à última hora, sem gastar um cruzeiro; o casal ficou encantado, mas que beleza de flor, então eu expliquei que buganvília não tem propriamente flores, tem brácteas, que são folhas iguais às outras, mas valorizadas pelo vermelho. Deu tudo certo, e eu senti que os imensos pés de buganvílias me agradeciam e pagavam dessa maneira a decisão de poupar-lhes a vida até a consumação dos séculos — ou da nossa velha casa, que eles vão destruindo poeticamente.
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, Amendoeira"

Biblioteca do ditador

 

Fares Garabet (Alemanha)



O mato

Veio o vento frio, e depois o temporal noturno, e depois da lenta chuva que passou toda a manhã caindo e ainda voltou algumas vezes durante o dia, a cidade entardeceu em brumas. Então o homem esqueceu o trabalho e as promissórias, esqueceu a condução e o telefone e o asfalto, e saiu andando lentamente por aquele morro coberto de um mato viçoso, perto de sua casa. O capim cheio de água molhava seu sapato e as pernas da calça; o mato escurecia sem vaga-lumes nem grilos.

Pôs a mão no tronco de uma árvore pequena, sacudiu um pouco, e recebeu nos cabelos e na cara as gotas de água como se fosse uma benção. Ali perto mesmo a cidade murmurava, estava com seus ruídos vespertinos, ranger de bondes, buzinar impacientes de carros, vozes indistintas; mas ele via apenas algumas árvores, um canto de mato, uma pedra escura. Ali perto, dentro de uma casa fechada, um telefone batia, silenciava, batia outra vez, interminável, paciente, melancólico. Alguém, com certeza já sem esperança, insistia em querer falar com alguém.

Por um instante, o homem voltou seu pensamento para a cidade e sua vida. Aquele telefone tocando em vão era um dos milhões de atos falhados da vida urbana. Pensou no desgaste nervoso dessa vida, nos desencontros, nas incertezas, no jogo de ambições e vaidades, na procura de amor e de importância, na caça ao dinheiro e aos prazeres. Ainda bem que de todas as cidades do mundo o Rio é a única a permitir a evasão fácil para o mar e a floresta. Ele estava ali num desses limites entre a cidade dos homens e a natureza pura; ainda pensava em seus problemas urbanos – mas um camaleão correu de súbito, um passarinho piou triste em algum ramo, e o homem ficou atento àquela humilde vida animal e também à vida silenciosa e úmida das árvores, e à pedra escura, com uma pele de musgo e seu misterioso coração mineral.

E pouco a pouco ele foi sentindo uma paz naquele começo de escuridão, sentiu vontade de deitar e dormir entre a erva úmida, de se tornar um confuso ser vegetal, num grande sossego, farto de terra e de água; ficaria verde, emitiria raízes e folhas, seu tronco seria um tronco escuro, grosso, seus ramos formariam copa densa, e ele seria, sem angustia nem amor, sem desejo nem tristeza, forte, quieto, imóvel, feliz.
Rubem Braga

segunda-feira, maio 23

Mergulhe!

 


Aviõezinhos de papel

À Leny e à Yara, minhas primeiras professoras

A crônica nos ensinou a perseguir o rodapé dos jornais. Não só ela está lá, como é de lá que extrai seu intento. Num jornal cheio das notícias tumultuadas do mundo, Rubem Braga descobriu, num cantinho, que a flor de maio havia resplandecido no Jardim Botânico e aconselhou os leitores a visitá-la com urgência, pois seria breve aquela vida.

No dia em que outro caso (em 2021, foram quase dois mil) de pessoa escravizada — uma senhora por setenta e dois anos — em lares impolutos vem à tona. No dia em que o mandatário do país se mostra mais uma vez racista e continua com sua estratégia de esgarçar a democracia, certo de que poderá simplesmente sufocá-la, destruí-la e, como déspota, manter-se no poder, desfrutando de toda a proteção contra seus crimes diários. No dia em que a crise econômica deixa de ser uma frase escrita em jornal ou discutida em textos acadêmicos e toma a vida das pessoas. No dia em que se revelam assassinatos bárbaros de civis ucranianos por soldados russos.

Bem, nesse dia, três brasileiros estavam em Salzburgo, na Áustria, para participar do “Campeonato Mundial de Aviãozinho de Papel”. Dois homens e uma mulher disputaram as provas de maior distância, maior tempo de voo e acrobacias. Assim como a flor de maio não perdura muito, os aviõezinhos não voam por um longo tempo (nosso “atleta” da prova de tempo de voo se classificou para a etapa final mantendo seu engenho no ar por 7s61, bem abaixo do recorde mundial, de 27s9). Da brevidade se alimenta o cronista? Não. A beleza, essa sim, sua matéria bruta, é que costuma ser breve. Flor, borboleta, chuva, voo de aviõezinhos de papel, tudo nasce e morre num piscar de olhos.

Torcem o nariz os leitores capturados pela urgência. Maldita alienação. Aqueles em busca de um refúgio aproveitam a crônica e tomam fôlego. Bendita sorte! O cronista não se importa com o julgamento, ele, agora, diante do campeonato mundial, voou para a própria infância, em cujos dias fez aviõezinhos de voos curtíssimos. Aliás, sempre cumpriu mal as tarefas que exigissem habilidade manual e, por isso, em toda sua vida escolar, só foi reprovado uma única vez, justamente no pré-primário, quando se aprendia a cortar e colar, a sentar em roda, a cantar e dançar. Uma vez, esteve com uma de suas professoras daquela fase e, irônico, insinuou que ela era responsável por sua reprovação. Ela riu, mas, passados uns dias, o procurou para dizer que não, não o havia reprovado. Mas deveria. Os aviões do cronista sempre embicaram mal saídos das mãos; seus desenhos foram repetidamente uma casinha com chaminé, uma estradinha e um pequeno lago, tudo sem perspectiva e mal colorido. Verdade seja dita, tinha alguma graça em dançar. Inábil com as mãos, inábil no trato: o cronista, boquirroto e metido a engraçadinho, faria bem se pedisse desculpas à professora pela brincadeira de mau gosto, afinal de contas, ele não foi reprovado. Tendo entrado um ano antes do previsto na escola, esperou mais um ano até completar a idade de ser alfabetizado.

Infância é quando não existem boletos, repete o povo. Mas também é quando não se tem consciência do desejo e não se sabe muito bem o que é a morte. Isso é verdade até o cronista se deparar com imagens de crianças fugindo da Ucrânia. Ou de crianças assustadas na Síria, no Iraque, no Afeganistão, nas favelas do Rio de Janeiro, nas reservas indígenas sob ataque de garimpeiros. Seria bom se, em aviõezinhos de papel, as pessoas chegadas a luares e flores de maio invadissem o coração das bestas à frente das batalhas e lhes devolvessem a infância. Por que não passam o campeonato de Salzburgo no horário nobre das televisões do mundo todo?

Os vencedores, é bom informar, foram um sérvio (distância), um paquistanês (tempo de voo) e um sul-coreano (acrobacias) — este, professor de ciências, aproveitou o palco e pediu a namorada em casamento.

As aventuras de Malazarte

Ah, mês de abril, que delícia de existir! Também para Pedro Malazarte.

Vou contar: como o pai tinha morrido, a mãe dividira em pedaços a casa toda, dando-os a cada filho. A Pedro Malazarte coube uma porta. Ele pensou: com esta porta conquistarei o mundo. Realmente, em breve viu um urubu pousado num burro morto. Mais que depressa jogou a porta em cima deles – e como o urubu ficou manco, foi fácil pegá-lo. Para que queria ele um urubu? Lá disso sabia ele. E quando sentiu no ar os eflúvios de um jantar magnífico, bateu à porta da casa de uma senhora, gulosa e sabida, que estava preparando para si mesma um banquete, escondido do marido que fora viajar. Malazarte foi irritadamente expulso pela sabidona e sua criada. Então, com o auxílio da porta encostada na parede, subiu ao teto e de lá viu embaixo comida boa para valer. Tinha leitão assado, peru, e tudo o mais que delicia um homem. Foi quando o marido chegou, inesperadamente. A mulher matreira lamentou-se: se eu soubesse que você vinha eu preparava coisa boa de se comer, mas como não te esperava só tenho carne-seca, feijão ralo e farinha morrinhenta...

Aí, Malazarte apresentou-se de novo com o seu urubu, sabendo que o marido não lhe recusaria um pouco do minguado jantar. Mal começara a comer quando Malazarte deu, bem disfarçado, uma cutucada no urubu, que gemeu.

– Por que é que ele está se lamentando? – perguntou o dono da casa.

– Está me dizendo umas novidades – respondeu Malazarte. – O meu urubu, ao contrário dos outros, fala e está me contando que sua mulher lhe guardou um leitãozinho assado de surpresa...

A mulher teve medo de Malazarte e disse:

– Oh, urubu danado, estragou a surpresa! Tenho mesmo este leitãozinho para você...

Daqui a pouco o urubu gemeu de novo, o que fez Malazarte dizer:

– Ô urubu intrometido, para de me contar!

– O que é que ele está contando?

– Que tem peru recheado.

– Meu maridinho, essa era outra surpresa que o urubu desaforado estragou. Mas coma um pouco deste peru. E tenho doces, frutas, bebidas...

Como era 1º de abril, dia de se enganar os outros, Malazarte vendeu falsamente o precioso urubu ao dono da casa para lhe servir de espião.

Bem alimentado, Malazarte prosseguiu caminho com a porta debaixo do braço.
Moral: mais vale uma porta desvalida e esperteza de Malazarte, que uma casa inteira para quem não tem arte.
Clarice Lispector, "Doze lendas brasileiras"

domingo, maio 22

Leitura no outono

 


Pais não deviam envelhecer

Dói-me mais assistir ao envelhecimento dos meus pais do que me confrontar no espelho dos dias com minha própria decadência. A velhice dos meus pais me parece um ultraje à própria vida. Quando falo da velhice estou a pensar no retrato que Jacques Brel fez dela numa belíssima canção, “Les Vieux”, que tantas vezes me visita enquanto tento adormecer:

“Les vieux ne bougent plus
Leurs gestes ont trop de rides
Leur monde est trop petit.
Du lit à la fenêtre
Puis du lit au fauteuil et puis
du lit au lit.”

Com perdão pela má tradução: “Os velhos não se mexem mais / Os seus gestos têm muitas rugas / o seu mundo é pequeno // Da cama à janela / depois da cama ao cadeirão / e depois da cama à cama.”

Pais não deviam envelhecer. Ao menos, os bons pais. Aliás, a velhice deveria ser um castigo destinado exclusivamente às pessoas más. Cada vez que alguém cometesse uma maldade, receberia uma ruga, seis ou sete cabelos brancos, e depois cefaleias, artrites, reumatismo, incontinência urinária, impotência e declínio cognitivo. Dentes cairiam (como minha avó ameaçava) a cada vez que mentíssemos; enfim, dependendo da gravidade das mentiras. Os canalhas, e só os canalhas, sofreriam de tremores e crescentes lapsos de memória. 

Um mundo organizado dessa maneira evitaria inúmeros equívocos e dificultaria a ascensão política dos muito maus. Por exemplo, os bolsonaros seriam todos velhíssimos e desdentados, não se distinguindo os filhos do pai. É verdade que seria difícil discernir neles as consequências de certos castigos, como o declínio cognitivo. Há defeitos que não é possível piorar. 

Voltando ao envelhecimento dos pais, talvez a aflição seja maior porque nos habituamos a olhar para eles como super-heróis, imunes à corrosão do tempo, e às fragilidades, defeitos e erros das pessoas comuns.

Minha mãe sabia de cor as datas de aniversário não só dos filhos e netos, mas de todos os sobrinhos, afilhados, primos e restantes parentes. Também sabia o número de telefone de todos nós. Depois que sofreu um AVC (gravíssimo) esqueceu tudo isso, e até o nome de muitos parentes, embora ainda seja capaz de declamar os sonetos mais famosos de Luís de Camões.

Enquanto o meu pai sempre manifestou extremo horror por todo o tipo de novas tecnologias, minha mãe ganhou, já depois dos 80 anos, grande intimidade com computadores e redes sociais. Fanática de scrabble, participava em competições on-line. Contudo, depois que adoeceu, tornou-se incapaz de trabalhar com o laptop, e o meu pai, já bem velhinho, inscreveu-se num curso de informática, apenas para que ela pudesse continuar a se comunicar todos os dias com os filhos e netos, através do Skype e outras ferramentas. Hoje, é ele quem se lembra dos aniversários da família.

Minha mãe perdeu a memória, perdeu os movimentos, mas não perdeu o sorriso e a bondade. Também meu pai não tem mais a energia de antigamente. Já não vai todos as manhãs ao quintal tratar das roseiras, e colher rosas para oferecer à minha mãe. Cerca-a, contudo, de pequenos gestos de ternura.

“A velhice é uma merda”, dizia Jorge Amado. E é. Mas nem ela consegue degradar o coração dos super-heróis.

Memória de livros

Aracaju, a cidade onde nós morávamos no fim da década de 40, começo da de 50, era a orgulhosa capital de Sergipe, o menor estado brasileiro (mais ou menos do tamanho da Suíça). Essa distinção, contudo, não lhe tirava o caráter de cidade pequena, provinciana e calma, à boca de um rio e a pouca distância de praias muito bonitas. Sabíamos do mundo pelo rádio, pelos cinejornais que acompanhavam todos os filmes e pelas revistas nacionais. A televisão era tida por muitos como mentira de viajantes, só alguns loucos andavam de avião, comprávamos galinhas vivas e verduras trazidas à nossa porta nas costas de mulas, tínhamos grandes quintais e jardins, meninos não discutiam com adultos, mulheres não usavam calças compridas nem dirigiam automóveis e vivíamos tão longe de tudo que se dizia que, quando o mundo acabasse, só íamos saber uns cinco dias depois.

Mas vivíamos bem. Morávamos sempre em casarões enormes, de grandes portas, varandas e tetos altíssimos, e meu pai, que sempre gostou das últimas novidades tecnológicas, trazia para casa tudo quanto era tipo de geringonça moderna que aparecia. Fomos a primeira família da vizinhança a ter uma geladeira e recebemos visitas para examinar o impressionante armário branco que esfriava tudo. Quando surgiram os primeiros discos long play, já tínhamos a vitrola apropriada e meu pai comprava montanhas de gravações dos clássicos, que ele próprio se recusava a ouvir, mas nos obrigava a escutar e comentar.

Nada, porém, era como os livros. Toda a família sempre foi obsedada por livros e às vezes ainda arma brigas ferozes por causa de livros, entre acusações mútuas de furto ou apropriação indébita. Meu avô furtava livros de meu pai, meu pai furtava livros de meu avô, eu furtava livros de meu pai e minha irmã até hoje furta livros de todos nós. A maior casa onde moramos, mais ou menos a partir da época em que aprendi a ler, tinha uma sala reservada para a biblioteca e gabinete de meu pai, mas os livros não cabiam nela — na verdade, mal cabiam na casa. E, embora os interesses básicos dele fossem Direito e História, os livros eram sobre todos os assuntos e de todos os tipos. Até mesmo ciências ocultas, assunto que fascinava meu pai e fazia com que ele às vezes se trancasse na companhia de uns desenhos esotéricos, para depois sair e dirigir olhares magnéticos aos circunstantes, só que ninguém ligava e ele desistia temporariamente. Havia uns livros sobre hipnotismo e, depois de ler um deles, hipnotizei um peru que nos tinha sido dado para um Natal e, que, como jamais ninguém lembrou de assá-lo, passou a residir no quintal e, não sei por quê, era conhecido como Lúcio. Minha mãe se impressionou, porque, assim que comecei meus passes hipnóticos, Lúcio estacou, pareceu engolir em seco e ficou paralisado, mas meu pai — talvez porque ele próprio nunca tenha conseguido hipnotizar nada, apesar de inúmeras tentativas — declarou que aquilo não tinha nada com hipnotismo, era porque Lúcio era na verdade uma perua e tinha pensado que eu era o peru.

Não sei bem dizer como aprendi a ler. A circulação entre os livros era livre (tinha que ser, pensando bem, porque eles estavam pela casa toda, inclusive na cozinha e no banheiro), de maneira que eu convivia com eles todas as horas do dia, a ponto de passar tempos enormes com um deles aberto no colo, fingindo que estava lendo e, na verdade, se não me trai a vã memória, de certa forma lendo, porque quando havia figuras, eu inventava as histórias que elas ilustravam e, ao olhar para as letras, tinha a sensação de que entendia nelas o que inventara. Segundo a crônica familiar, meu pai interpretava aquilo como uma grande sede de saber cruelmente insatisfeita e queria que eu aprendesse a ler já aos quatros anos, sendo demovido a muito custo, por uma pedagoga amiga nossa. Mas, depois que completei seis anos, ele não aguentou, fez um discurso dizendo que eu já conhecia todas as letras e agora era só uma questão de juntá-las e, além de tudo, ele não suportava mais ter um filho analfabeto. Em seguida, mandou que eu vestisse uma roupa de sair, foi comigo a uma livraria, comprou uma cartilha, uma tabuada e um caderno e me levou à casa de D. Gilete.

– D. Gilete — disse ele, apresentando-me a uma senhora de cabelos presos na nuca, óculos redondos e ar severo —, este rapaz já está um homem e ainda não sabe ler. Aplique as regras.

“Aplicar as regras”, soube eu muito depois, com um susto retardado, significava, entre outras coisas, usar a palmatória para vencer qualquer manifestação de falta de empenho ou burrice por parte do aluno. Felizmente D. Gilete nunca precisou me aplicar as regras, mesmo porque eu de fato já conhecia a maior parte das letras e juntá-las me pareceu facílimo, de maneira que, quando voltei para casa nesse mesmo dia, já estava começando a poder ler. Fui a uma das estantes do corredor para selecionar um daqueles livrões com retratos de homens carrancudos e cenas de batalhas, mas meu pai apareceu subitamente à porta do gabinete, carregando uma pilha de mais de vinte livros infantis.

– Esses daí agora não — disse ele. — Primeiro estes, para treinar. Estas livrarias daqui são umas porcarias, só achei estes. Mas já encomendei mais, esses daí devem durar uns dias.

Duraram bem pouco, sim, porque de repente o mundo mudou e aquelas paredes cobertas de livros começaram a se tornar vivas, frequentadas por um número estonteante de maravilhas, escritas de todos os jeitos e capazes de me transportar a todos os cantos do mundo e a todos os tipos de vida possíveis. Um pouco febril às vezes, chegava a ler dois ou três livros num só dia, sem querer dormir e sem querer comer porque não me deixavam ler à mesa — e, pela primeira vez em muitas, minha mãe disse a meu pai que eu estava maluco, preocupação que até hoje volta e meia ela manifesta.

– Seu filho está doido — disse ela, de noite, na varanda, sem saber que eu estava escutando. — Ele não larga os livros. Hoje ele estava abrindo os livros daquela estante que vai cair para cheirar.

– Que é que tem isso? É normal, eu também cheiro muito os livros daquela estante. São livros velhos, alguns têm um cheiro ótimo.

– Ele ontem passou a tarde inteira lendo um dicionário.

– Normalíssimo. Eu também leio dicionários, distrai muito. Que dicionário ele estava lendo?

– O Lello.

– Ah, isso é que não pode. Ele tem que ler o Laudelino Freire, que é muito melhor. Eu vou ter uma conversa com esse rapaz, ele não entende nada de dicionários. Ele está cheirando os livros certos, mas lendo o dicionário errado, precisa de orientação.

Sim, tínhamos muitas conversas sobre livros. Durante toda a minha infância, havia dois tipos básicos de leitura lá em casa: a compulsória e a livre, esta última dividida em dois subtipos — a livre propriamente dita e a incerta. A compulsória variava conforme a disposição de meu pai. Havia a leitura em voz alta de poemas, trechos de peças de teatro e discursos clássicos, em que nossa dicção e entonação eram invariavelmente descritas como o pior desgosto que ele tinha na vida. Líamos Homero, Camões, Horácio, Jorge de Lima, Sófocles, Shakespeare, Euclides da Cunha, dezenas de outros. Muitas vezes não entendíamos nada do que líamos, mas gostávamos daquelas palavras sonoras, daqueles conflitos estranhos entre gente de nomes exóticos, e da expressão comovida de minha mãe, com pena de Antígona e torcendo por Heitor na Ilíada. Depois de cada leitura, meu pai fazia sua palestra de rotina sobre nossa ignorância e, andando para cima e para baixo de pijama na varanda, dava uma aula grandiloquente sobre o assunto da leitura, ou sobre o autor do texto, aula esta a que os vizinhos muitas vezes vinham assistir. Também tínhamos os resumos — escritos ou orais — das leituras, as cópias (começadas quando ele, com grande escândalo, descobriu que eu não entendia direito o ponto e vírgula e me obrigou a copiar sermões do Padre Antônio Vieira, para aprender a usar o ponto e vírgula) e os trechos a decorar. No que certamente é um mistério para os psicanalistas, até hoje não só os sermões de Vieira como muitos desses autores forçados pela goela abaixo estão entre minhas leituras favoritas. (Em compensação, continuo ruim de ponto e vírgula.)

Mas o bom mesmo era a leitura livre, inclusive porque oferecia seus perigos. Meu pai usava uma técnica maquiavélica para me convencer a me interessar por certas leituras. A circulação entre os livros permanecia absolutamente livre, mas, de vez em quando, ele brandia um volume no ar e anunciava com veemência:

– Este não pode! Este está proibido! Arranco as orelhas do primeiro que chegar perto deste daqui!

O problema era que não só ele deixava o livro proibido bem à vista, no mesmo lugar de onde o tirara subitamente, como às vezes a proibição era para valer. A incerteza era inevitável e então tínhamos momentos de suspense arrasador (meu pai nunca arrancou as orelhas de ninguém, mas todo mundo achava que, se fosse por uma questão de princípios, ele arrancaria), nos quais lemos Nossa vida sexual do Dr. Fritz Kahn, Romeu e ]ulieta, O livro de San Michele, Crônica escandalosa dos Doze Césares, Salambô, O crime do Padre Amaro — enfim, dezenas de títulos de uma coleção estapafúrdia, cujo único ponto em comum era o medo de passarmos o resto da vida sem orelhas — e hoje penso que li tudo o que ele queria disfarçadamente que eu lesse, embora à custa de sobressaltos e suores frios.

Na área proibida, não pode deixar de ser feita uma menção aos pais de meu pai, meus avós João e Amália. João era português, leitor anticlerical de Guerra Junqueiro e não levava o filho muito a sério intelectualmente, porque os livros que meu pai escrevia eram finos e não ficavam em pé sozinhos. “Isto é merda”, dizia ele, sopesando com desdém uma das monografias jurídicas de meu pai. “Estas tripinhas que não se sustentam em pé não são livros, são uns folhetos.” Já minha avó tinha mais respeito pela produção de meu pai, mas achava que, de tanto estudar altas ciências, ele havia ficado um pouco abobalhado, não entendia nada da vida. Isto foi muito bom para a expansão dos meus horizontes culturais, porque ela não só lia como deixava que eu lesse tudo o que ele não deixava, inclusive revistas policiais oficialmente proibidas para menores. Nas férias escolares, ela ia me buscar para que eu as passasse com ela, e meu pai ficava preocupado.

– D. Amália — dizia ele, tratando-a com cerimônia na esperança de que ela se imbuísse da necessidade de atendê-lo —, o menino vai com a senhora, mas sob uma condição. A senhora não vai deixar que ele fique o dia inteiro deitado, cercado de bolachinhas e docinhos e lendo essas coisas que a senhora lê.

– Senhor doutor — respondia minha avó —, sou avó deste menino e tua mãe. Se te criei mal, Deus me perdoe, foi a inexperiência da juventude. Mas este cá ainda pode ser salvo e não vou deixar que tuas maluquices o infelicitem. Levo o menino sem condição nenhuma e, se insistes, digo-te muito bem o que podes fazer com tuas condições e vê lá se não me respondes, que hoje acordei com a ciática e não vejo a hora de deitar a sombrinha ao lombo de um que se atreva a chatear-me. Passar bem, Senhor doutor.

E assim eu ia para a casa de minha avó Amália, onde ela comentava mais uma vez com meu avô como o filho estudara demais e ficara abestalhado para a vida, e meu avô, que queria que ela saísse para poder beber em paz a cerveja que o médico proibira, tirava um bolo de dinheiro do bolso e nos mandava comprar umas coisitas de ler — Amália tinha razão, se o menino queria ler, que lesse, não havia mal nas leituras, havia em certos leitores. E então saíamos gloriosamente, minha avó e eu, para a maior banca de revistas da cidade, que ficava num parque perto da casa dela e cujo dono já estava acostumado àquela dupla excêntrica. Nós íamos chegando e ele perguntava:

– Uma de cada?

– Uma de cada — confirmava minha avó, passando a superintender, com os olhos brilhando, a colheita de um exemplar de cada revista, proibida ou não proibida, que ia formar uma montanha colorida deslumbrante, num carrinho de mão que talvez o homem tivesse comprado para atender a fregueses como nós. — Mande levar. E agora aos livros!

Depois da banca, naturalmente, vinham os livros. Ela acompanhava certas coleções, histórias de “Raffles, Arsène Lupin”, Ponson du Terrail, Sir Walter Scott, Edgar Wallace, Michel Zevaco, Emilio Salgari, os Dumas e mais uma porção de outros, em edições de sobrecapas extravagantemente coloridas que me deixavam quase sem fôlego. Na livraria, ela não só se servia dos últimos lançamentos de seus favoritos, como se dirigia imperiosamente à seção de literatura para jovens e escolhia livros para mim, geralmente sem ouvir minha opinião — e foi assim que li Karl May, Edgar Rice Burroughs, Robert Louis Stevenson, Swift e tantos mais, num sofá enorme, soterrado por revistas, livros e latas de docinhos e bolachinhas, sem querer fazer mais nada, absolutamente nada, neste mundo encantado. De vez em quando, minha avó e eu mantínhamos tertúlias literárias na sala, comentando nossos vilões favoritos e nosso herói predileto, o Conde de Monte Cristo — Edmond Dantès! — como dizia ela, fremindo num gesto dramático. E meu avô, bebendo cerveja escondido lá dentro, dizia “ai, ai, esses dois se acham letrados, mas nunca leram o Guerra Junqueiro”.

De volta à casa de meus pais, depois das férias, o problema das leituras compulsórias às vezes se agravava, porque meu pai, na certeza (embora nunca desse ousadia de me perguntar) de que minha avó me tinha dado para ler tudo o que ele proibia, entrava numa programação delirante, destinada a limpar os efeitos deletérios das revistas policiais. Sei que parece mentira e não me aborreço com quem não acreditar (quem conheceu meu pai acredita), mas a verdade é que, aos doze anos, eu já tinha lido, com efeitos às vezes surpreendentes, a maior parte da obra traduzida de Shakespeare, O elogio da loucura, As décadas de Tito Lívio, D. Quixote (uma das ilustrações de Gustave Doré, mostrando monstros e personagens saindo dos livros de cavalaria do fidalgo, me fez mal, porque eu passei a ver as mesmas coisas saindo dos livros da casa), adaptações especiais do Fausto e da Divina comédia, a Ilíada, a Odisseia, vários ensaios de Montaigne, Poe, Alexandre Herculano, José de Alencar, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Dickens, Dostoievski, Suetônio, os Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola e mais não sei quantos outros clássicos, muitos deles resumidos, discutidos ou simplesmente lembrados em conversas inflamadas, dos quais nunca me esqueço e a maior parte dos quais faz parte íntima de minha vida.

Fico pensando nisso e me pergunto: não estou imaginando coisas, tudo isso poderia ter realmente acontecido? Terei tido uma infância normal? Acho que sim, também joguei bola, tomei banho nu no rio, subi em árvores e acreditei em Papai Noel. Os livros eram uma brincadeira como outra qualquer, embora certamente a melhor de todas. Quando tenho saudades da infância, as saudades são daquele universo que nunca volta, dos meus olhos de criança vendo tanto que se entonteciam, dos cheiros dos livros velhos, da navegação infinita pela palavra, de meu pai, de meus avós, do velho casarão mágico de Aracaju.
João Ubaldo Ribeiro, "U"