quarta-feira, maio 4

Notícias sobre o fim do livro

I
Sobre o fim do livro e da era Gutenberg, tenho duas breves histórias para contar.

A primeira é um sonho, ou um pesadelo: um chip armazena a biblioteca do universo, uma biblioteca cujo acervo seria renovado por um piscar de olhos, um esgar ou grunhido, quem sabe um soluço. Esse chip seria implantado no ombro, na perna ou no órgão mais vital do corpo: o coração do leitor. Bilhões de palavras no coração: há algo mais poético? Mais sublime?

Um chip implantado no cérebro seria robótico demais, além de ser uma cena comum de ficção científica, algo bem menos estranho que uma serpente de fogo numa montanha de gelo.

Com esse chip cravado no corpo, o leitor não teria necessidade de olhar para uma tela: a página escrita apareceria no ar, como se fosse uma holografia. Textos soltos no espaço, sem qualquer suporte. A mais fina e diminuta tela será um objeto anacrônico.

Meu sonho (ou pesadelo) parou por aí.

II
A outra história é coisa do passado.

No amanhecer de um dia de 1979, conheci um piauiense que migrara para São Paulo na década de 1960. Ele era dono de uma pequena pastelaria na antiga rodoviária, onde eu comia pastel às cinco da manhã, antes de pegar o ônibus para Taubaté.

Donato me contou passagens de sua vida em um povoado miserável, próximo a Santo Antônio dos Milagres. Aprendeu a ler com uma velha, que era uma vizinha da tapera onde ele morava. Lia bula de medicamentos, lia jornais velhíssimos que embrulhavam latas de leite enviadas pelo governo, lia as palavras impressas nessas latas.

“E um dia eu li um livro”, disse Donato, emocionado. “Um livro que um vendedor de bugigangas deixou para mim. Lia devagar, duas, três vezes cada frase, cada parágrafo. De vez em quando, parava de ler para pensar. Li tantas vezes meu único livro que decorei os trechos mais bonitos. Minha vida não valia nada, nem uma casca de cebola. Eu era um jovem que não tinha onde cair morto, como se diz. Aí consegui um emprego em Santo Antônio. Trabalhei quatro anos no balcão de uma mercearia, economizei uns tostões e vim para São Paulo. Quando ganhei um dinheirinho, abri essa pastelaria. E um dia viajei para o Rio. Queria conhecer quem tinha publicado aquele livro, queria ver o edifício da editora, as pessoas que trabalhavam com livros. Não tive coragem de entrar, fiquei espiando na calçada, olhando a placa com o nome da editora. Aí me deu vontade de fazer uma coisa, e fiz mesmo. Abracei as paredes, beijei as paredes da editora e beijei o livro que mudou minha vida.”

Milton Hatoum, "Um solitário à espreita"

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