terça-feira, maio 10

As estrelas

O ônibus para na frente do edifício do aeroporto.

Agora só restam três passageiros. Jenny, Camila e o pai de Camila. Eles procuram suas bagagens.

Depois da longa viagem de ônibus, a mais longa que Jenny fez em sua vida, ela tem a sensação de conhecer muito bem os outros dois. Eles estão mais próximos dela do que Siri, Ragnhild e as colegas do laboratório. Eles são mais do que companheiros casuais de viagem. Eles são seus semelhantes.

Jenny joga o sobretudo verde sobre um braço e com o outro puxa a mala para fora do compartimento de bagagem. Depois ela sai do ônibus, o motorista faz o motor roncar, fecha as portas e segue viagem.

Anoiteceu entre Soreide e Bergen. A Terra girou alguns graus em torno de seu eixo e fez o sol desaparecer no horizonte. As luzes vermelhas de sinalização no limite do aeroporto comprovam que Jenny morrerá no final do século XX.
Jenny movimenta-se com passos pesados em direção à entrada.

Embarque... Departure.

Sobre o baixo edifício do aeroporto, ela vê as primeiras estrelas da noite como pálidas manchas azuladas na penumbra.

Sóis distantes. E ainda assim nossos vizinhos mais próximos no Universo.
Jenny vai morrer num planeta que gira em torno de uma entre bilhões de estrelas da Via Láctea. E além da Via Láctea, mais além de onde alcançam os pensamentos de Jenny, existem outras centenas de milhões de galáxias como essa.

A morte tão perto — e as estrelas tão distantes.

Jenny teve uma fase em que se interessou por astronomia. Desde o segundo grau até quando foi para Trondheim fazer seus estudos de química, ela lia todos os livros que conseguia encontrar sobre o Universo. Era como uma obsessão.

Jenny sabia que toda a matéria no Universo formava uma unidade orgânica. Ela também sabia que, em tempos primordiais, toda a matéria havia se concentrado numa bola de massa tão desproporcionalmente densa, que a cabeça de um alfinete pesava bilhões de toneladas. Sabia que o átomo primordial explodira devido à imensa força gravitacional. Sabia também que o Universo que a cercava agora era resultado dessa explosão. E mais ainda: ela sabia que todas as galáxias ainda estavam se afastando umas das outras numa velocidade astronômica.

No segundo grau, uma vez Jenny se inserira dentro de um contexto maior. Ela traçara coordenadas de tempo e espaço e localizara sua própria cidade com toda a exatidão. Aprendera a lidar com os acontecimentos arbitrários com os quais os seres humanos inescapavelmente se confrontam na Terra. Depois a vida na Terra a agarrara cada vez mais firmemente.

Jenny vê uma estrela sobre o aeroporto de Bergen. Ela sabe que a luz dessa estrela percorreu bilhões de quilômetros antes de se encontrar com seu olhar no dia 5 de abril de 1983 às vinte e uma horas.

A luz dessa estrela precisou de tempo para essa longa viagem. A cada pulsação no corpo de Jenny, ela avançava centenas de milhares de quilômetros através da noite cósmica. E mesmo assim foram necessários dias e meses e anos. Dez anos, cem anos, milhares de anos...

Olhar para o espaço sideral significa retroceder no tempo. Não vemos o Universo como ele é, mas como foi há muito tempo...

Quando os radiotelescópios conseguem captar a luz de longínquas galáxias que estão a bilhões de anos-luz distantes de nós, eles desenham um mapa do Universo como ele era nos tempos primordiais após a grande explosão. Sim, pois o Universo não conhece uma geografia atemporal. O Universo é um acontecimento. O Universo é uma explosão.

Olhar para o espaço sideral significa viajar no tempo.

Jenny sabe disso. Ela sabe disso desde que tinha dezesseis anos.

Tudo o que uma pessoa pode ver no céu são fósseis cósmicos de milhares e de milhões de anos. Tudo o que um astrólogo pode fazer é interpretar o passado.

Quando uma química de vida atarefada que está com câncer levanta seu olhar da Terra e olha para o espaço sideral, está olhando retrospectivamente para a história do Universo. Numa noite clara, ela vê milhões, sim, bilhões de anos atrás no passado. De certa forma, está vendo o caminho de volta para casa, de volta para sua origem cósmica. Quando Jenny era criança, muitas vezes a ideia de que o Universo era infinito lhe causava vertigens.

Seu pai lhe explicara que o mundo era uma minúscula esfera que girava em torno do Sol. O Sol era uma estrela. E lá em cima no céu havia milhões e mais milhões daqueles sóis.

E depois das estrelas? Outros milhões de novas estrelas. E depois destas?

Em suas leituras, Jenny deparara com o fato de que essa já era uma visão ultrapassada do mundo. O Universo não era infinito. Ele era grande. Mas não infinito.

E não era para ter vertigens com essa ideia? Que o Universo fosse finito, a realidade, um enigmático colosso que se erguia do nada absoluto?

A caminho do setor de embarque, Jenny se lembra de que lera sobre um astrônomo que calculara o número total de galáxias no Universo. E, não se dando por satisfeito, além de contar as estrelas do firmamento, calculara também o número total de partículas elementares em todo o cosmo e determinara o peso do Universo.

Jenny fica emocionada com essa ideia.

A realidade, ela pensa, a realidade é um objeto que pesa determinado número de quilos.

Nesse momento, a massa do Universo está dividida em bilhões de galáxias numa área gigantesca. Mas nem sempre foi assim. Em algum momento, em tempos remotos, há dez ou quinze bilhões de anos, toda a massa existente no Universo formava um único objeto. Naquela época, um único objeto formava a realidade.

A pulsação de Jenny acelerou com esse pensamento.

Todas as estrelas e galáxias no espaço sideral compõem-se da mesma matéria. Aqui e ali foram se formando aglomerações dessa matéria. Uma galáxia pode estar a bilhões de anos-luz das outras. Mas todas possuem a mesma origem. Todas são da mesma linhagem...

Mas que matéria era essa que formava o mundo?

O que é isso que explodiu há bilhões de anos? De onde veio?

Essa questão afeta Jenny profundamente. Afinal, ela mesma é feita dessa matéria.
Jostein Gaarder, "O Pássaro Raro"

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