Para Oscar Pilagallo e Josélia Aguiar
Cada escritor elege seu paraíso. E a infância, um paraíso perdido para sempre, pode ser reinventada pela literatura e a arte. Mas há também vestígios do inferno no passado, e isso também interessa ao escritor. Traumas, decepções, desilusões e conflitos alimentam trançados de eventos, tramas sutis ou escabrosas, veladas ou escancaradas. Cenas e conversas que presenciamos — ou que foram narradas por amigos e parentes — permanecem na nossa memória com a força de algo verdadeiro, que nos toca e inquieta. A infância, com seus sonhos e pesadelos, é prato cheio para a psicanálise, mas também para a literatura. No entanto, para quem almeja ser um escritor, há algo mais: a leitura.
Alguns jovens tiveram a sorte de conviver com um bom professor de literatura; outros, que estudaram em escolas precárias, conheceram um leitor em sua casa: um desses leitores que nos oferecem um livro decisivo, capaz de mudar nossa vida. E há ainda casos do acaso: você entra numa biblioteca da província ou da metrópole e se depara com um livro desconhecido, que pede para ser lido. O acaso, que é um motivo tão recorrente na literatura, pode formar um leitor.
Dois acasos foram decisivos na minha juventude: o primeiro me conduziu à obra de Machado de Assis; o segundo, a uma biblioteca vasta e sombria, escondida numa sala subterrânea.
Dois acasos foram decisivos na minha juventude: o primeiro me conduziu à obra de Machado de Assis; o segundo, a uma biblioteca vasta e sombria, escondida numa sala subterrânea.
Na tarde de um sábado de 1965, um homem alto e esquálido entrou no pátio de minha casa manauara e bateu palmas. Carregava uma maleta e parecia prostrado pelo calor; quando olhei o rosto dele, pensei que chorava aos prantos, mas foi uma falsa impressão: os olhos estavam encharcados de suor. Abriu a maleta e mostrou à minha mãe as obras completas do Bruxo do Cosme Velho. Surpreso e aliviado, o homem foi embora com a mala vazia. Era um vendedor de enciclopédias e livros de literatura, um humilde mercador de palavras sob o sol abrasador da cidade equatorial. Ao acaso, escolhi um dos livros de capa azul-turquesa e dei de cara com um título enigmático e atraente: Histórias da meia-noite. Não menos misterioso e sedutor foi o primeiro conto que li do grande escritor: “A parasita azul”. Gostei do enredo, pois aos treze anos de idade eu não podia entender as filigranas do jogo social e simbólico, movido pela terrível ironia machadiana. Li a narrativa como um leitor ingênuo, percebendo apenas o movimento da trama na superfície do texto, sem captar outras mensagens e alusões simbólicas e históricas. Mas, para um jovem, até mesmo a leitura superficial é importante, porque revela traços do estilo, da forma com que o autor organiza a narrativa e constrói personagens. E, quando isso agrada, a leitura flui e o leitor se interessa por outros livros do autor.
“A parasita azul” narra um dos tantos triângulos amorosos machadianos, mas a aparição da flor azul e seca desfaz o triângulo e traz novos elementos ao enredo, como as jogadas politiqueiras e uma conjunção surpreendente de lugares e sociedades díspares: Paris e o interior de Goiás. Ou seja, a capital do mundo em contraste com um grotão da periferia desta América. A meu ver, é um dos primeiros contos que tratam dos disparates da sociedade brasileira, embora seja eivado de imaginação romântica e traços romanescos, como a paixão do protagonista Camilo por uma princesa moscovita e outras peripécias parisienses. Em algum momento o narrador se refere ao sonho do rival de Camilo como um “melodrama fantástico”, e isso, de algum modo, define o conto. Mas menciona também o “falar oblíquo e disfarçado”, e isso define a genialidade de Machado.
Depois de devorar as páginas das Histórias da meia-noite, a leitura de Coelho Neto e José Américo de Almeida foi um exercício tedioso e, às vezes, uma flagelação da alma. Para um jovem, a leitura obrigatória de uma narrativa construída com uma linguagem extremamente rebuscada e cheia de adornos pode significar um rompimento radical com o prazer da leitura. E o prazer, que se irmana à curiosidade e ao conhecimento, é essencial para o leitor. Aliás, essencial para a vida.
Digo isso porque o segundo acaso, que me conduziu a uma biblioteca, começou com um desprazer: uma punição infligida por um professor de português no ginásio amazonense Pedro II. O castigo consistia em ler e fichar trechos d’Os sertões, de Euclides da Cunha. Diante de um texto tão complexo, recorri a um leitor bem mais velho do que eu, a fim de que me ajudasse a decifrar uma obra encharcada de história, geografia e também de humanidade trágica: a guerra fratricida no sertão da Bahia. Fui atrás de uma explicação e me deparei com uma grande biblioteca numa sala escavada. No porão sombrio do sobrado antigo e malconservado, apenas uma escrivaninha era aclarada por uma luz forte. Com uma lanterna, o professor focava as estantes de madeira, mostrando clássicos de várias épocas, inclusive edições raras, adquiridas em sebos do centro do Rio. Na catacumba de papel, vi romances e livros de poesia que desconhecia, e toda a coleção de literatura publicada pela antiga Livraria do Globo, de Porto Alegre. Lembro que lhe perguntei por que não iluminava o porão.
“Não tenho dinheiro”, disse o professor. “Mal consigo comer e manter a casa.”
Depois soube que ele fora cassado e banido da vida pública pelos militares, e vivia num ostracismo de dar dó. Na verdade, vivia numa prisão domiciliar, cuidando da mãe cega e quase centenária, ganhando uns tostões com aulas particulares.
Eu e um colega ginasiano passamos tardes inteiras assistindo às lições sobre a obra de Euclides. Descobrimos outro Brasil, tão diferente do Amazonas, e ao mesmo tempo profundamente ligado à região onde nasci e cresci, pois já na década de 1870 milhares de nordestinos haviam migrado para a Amazônia. Lembro com nitidez a voz rouca sentenciar que Os sertões era um grande compêndio sobre a sociedade brasileira, mas não um romance. Uma tosse de desesperado cortava-lhe a fala e ecoava na biblioteca. Mesmo assim, não tirava da boca o cigarro aceso, que piscava como um vaga-lume numa catacumba. Às vezes ele intuía um chamado de sua mãe, subia às pressas e só retornava meia hora depois. Nunca vi essa mulher. E ele nunca me convidou a entrar na sala da casa, ignorando minha curiosidade insaciável. Cheguei a pensar que essa mãe muito idosa era uma invenção para mitigar uma vida tão solitária.
Voltei várias vezes ao subsolo daquele sobrado para ler Os sertões, e saía de lá com livros que o professor me emprestava e depois comentava com paixão. E, três décadas depois, voltei para lá como um viajante imaginário, pois esse professor foi uma das fontes de um personagem de romance.
Hoje sei que o conto de Machado e o encontro com o mestre da província foram obras do acaso. Mas o acaso e o imprevisível não são igualmente importantes para a escrita e para o destino de um escritor?
Milton Hatoum, "Um solitário à espreita"
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