quarta-feira, maio 4

No caminho de Canela de Boi

Em Canela de Boi, no interior mais interior do país, reina um silêncio bom de conformidade com seu Janjão, que por isso mesmo vive em conformidade com todo mundo. Homem estimável está ali: paga remédio para quem adoece, enterra quem morre, emprega a viúva ou a filha moça do falecido, espalha outras benemerências. Praticamente dono do município, quem escolhe o prefeito é ele, ele quem escolhe os vereadores, ele quem diz que está na hora de mudar, e a mudança se faz. Geralmente seu Janjão não gosta de mudar, mas sendo aconselhável desentortar o torto ou entortar o reto para desentortá-lo em seguida, seu Janjão faz tudo isso da melhor maneira possível.

Turíbio apareceu para desfazer essa harmonia, e contou com a reprovação geral. Queria introduzir regras insólitas no funcionamento da comunidade, e uma dessas era que seu Janjão não precisava ser o único a decidir a sorte de Canela de Boi. Todos poderiam habilitar-se ao exercício dessa responsabilidade, quando mais não fosse porque seu Janjão já estava meio sobre o Matusalém. Caducar não caducava, mas. E era muito por demais mandão. Não deixava ninguém sequer errar por conta própria, ele acertava e errava por todos. Essas coisas, né?

Seu Janjão teve pena de Turíbio, afinal um bom rapaz, ao vê-lo desgarrar-se do justo caminho. A mulher de Turíbio foi a primeira pessoa a procurar seu Janjão para dizer que não concordava com as bobagens do marido. Um filho de Turíbio fez o mesmo; o outro não quis julgar o pai, mas declarou pelo jornalzinho de Canela de Boi que nessas coisas não se metia. A população inteira promoveu solene desagravo a seu Janjão, convidando Turíbio a calar-se. Turíbio, de cabeça dura, continuou a dizer coisas sem propósito. E parece que conseguiu mesmo conquistar a solidariedade do Aleixo alfaiate, um esquisitão que cortava barato mas tinha poucos fregueses, pois dizem que cortava mal.

A adesão de Aleixo não provocou mossa em seu Janjão, que continuou a lamentar a doideira de Turíbio. Quando se propalou a adesão do carteiro Nosferato, seu Janjão achou que era tempo de dar um ensino em Turíbio, menos pelos novos companheiros que viesse a aliciar, do que em benefício do próprio Turíbio, merecedor de algumas luzes suplementares que lhe clareassem o pensamento.

O delegado compareceu à chácara de seu Janjão e prometeu exorcizar o herege na forma suave do costume. Para maior conforto de Turíbio, que residia no povoado de Abobrinha d’Água, combinou-se que ele viria assessorado por quatro praças do destacamento, devidamente instruídos quanto ao tratamento especial a ser-lhe dispensado.

Turíbio não pôs objeção ao seu transporte para a cidade. Pediu apenas que lhe deixassem levar um naco de fumo de rolo de que iria fazendo cigarros pelo caminho, no de a pé. Os praças concordaram, mas como Turíbio se demorasse um pouco na feitura do cigarro, que ele acendia a cada estação do caminho, foi necessário espertá-lo, evitando delongas. Para essa operação estimulante, o cabo comandante recomendou a seus subordinados que batessem com a costa dos sabres nas costas dele. Foi de bom efeito, mas já na parada seguinte Turíbio demorou um pouco mais a enrolar a palhinha e a acomodar o fumo picado.

Os chanfalhos voltaram à atividade, e Turíbio, daí por diante, não fazia outra coisa senão fumar e apanhar, apanhar e fumar. Suas costas, através dos talhos da camisa, demonstravam a reiteração dos golpes, mas Turíbio era fumante inveterado. Que fazer senão cutucá-lo sempre daquela maneira enérgica, para abreviar a jornada? A tarde já ia caindo, e nada de aparecer, no horizonte, a torre da igreja de Canela de Boi.

Foi quando, numa volta da estrada, a mulher de Turíbio, que vinha da chácara de seu Janjão, aonde fora apanhar uns trocados, vendo o espetáculo, alertou os policiais:

— Cês tão brincando com ele. Bate com o fio, anda, bate com o fio!

Turíbio levantou a cabeça, ergueu a custo a mão direita num gesto de quem abomina o supérfluo, e murmurou:

— Não precisa. Como tá, tá bom.
Carlos Drummond de Andrade, "70 historinhas"

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