Turíbio apareceu para desfazer essa harmonia, e contou com a reprovação geral. Queria introduzir regras insólitas no funcionamento da comunidade, e uma dessas era que seu Janjão não precisava ser o único a decidir a sorte de Canela de Boi. Todos poderiam habilitar-se ao exercício dessa responsabilidade, quando mais não fosse porque seu Janjão já estava meio sobre o Matusalém. Caducar não caducava, mas. E era muito por demais mandão. Não deixava ninguém sequer errar por conta própria, ele acertava e errava por todos. Essas coisas, né?
Seu Janjão teve pena de Turíbio, afinal um bom rapaz, ao vê-lo desgarrar-se do justo caminho. A mulher de Turíbio foi a primeira pessoa a procurar seu Janjão para dizer que não concordava com as bobagens do marido. Um filho de Turíbio fez o mesmo; o outro não quis julgar o pai, mas declarou pelo jornalzinho de Canela de Boi que nessas coisas não se metia. A população inteira promoveu solene desagravo a seu Janjão, convidando Turíbio a calar-se. Turíbio, de cabeça dura, continuou a dizer coisas sem propósito. E parece que conseguiu mesmo conquistar a solidariedade do Aleixo alfaiate, um esquisitão que cortava barato mas tinha poucos fregueses, pois dizem que cortava mal.
A adesão de Aleixo não provocou mossa em seu Janjão, que continuou a lamentar a doideira de Turíbio. Quando se propalou a adesão do carteiro Nosferato, seu Janjão achou que era tempo de dar um ensino em Turíbio, menos pelos novos companheiros que viesse a aliciar, do que em benefício do próprio Turíbio, merecedor de algumas luzes suplementares que lhe clareassem o pensamento.
O delegado compareceu à chácara de seu Janjão e prometeu exorcizar o herege na forma suave do costume. Para maior conforto de Turíbio, que residia no povoado de Abobrinha d’Água, combinou-se que ele viria assessorado por quatro praças do destacamento, devidamente instruídos quanto ao tratamento especial a ser-lhe dispensado.
Turíbio não pôs objeção ao seu transporte para a cidade. Pediu apenas que lhe deixassem levar um naco de fumo de rolo de que iria fazendo cigarros pelo caminho, no de a pé. Os praças concordaram, mas como Turíbio se demorasse um pouco na feitura do cigarro, que ele acendia a cada estação do caminho, foi necessário espertá-lo, evitando delongas. Para essa operação estimulante, o cabo comandante recomendou a seus subordinados que batessem com a costa dos sabres nas costas dele. Foi de bom efeito, mas já na parada seguinte Turíbio demorou um pouco mais a enrolar a palhinha e a acomodar o fumo picado.
Os chanfalhos voltaram à atividade, e Turíbio, daí por diante, não fazia outra coisa senão fumar e apanhar, apanhar e fumar. Suas costas, através dos talhos da camisa, demonstravam a reiteração dos golpes, mas Turíbio era fumante inveterado. Que fazer senão cutucá-lo sempre daquela maneira enérgica, para abreviar a jornada? A tarde já ia caindo, e nada de aparecer, no horizonte, a torre da igreja de Canela de Boi.
Foi quando, numa volta da estrada, a mulher de Turíbio, que vinha da chácara de seu Janjão, aonde fora apanhar uns trocados, vendo o espetáculo, alertou os policiais:
— Cês tão brincando com ele. Bate com o fio, anda, bate com o fio!
Turíbio levantou a cabeça, ergueu a custo a mão direita num gesto de quem abomina o supérfluo, e murmurou:
— Não precisa. Como tá, tá bom.
Carlos Drummond de Andrade, "70 historinhas"
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