segunda-feira, maio 16

Assim começa...

Ilustre padrinho,

Inauguro com estas palavras o diário que me comprometi a manter para o senhor — não sei de outras mais justas!

Muito bem. Local: finalmente a bordo do navio. Ano: o senhor já sabe. Data? O importante, decerto, é que se trata do primeiro dia da minha passagem ao outro lado do mundo, assinalado com o número “um” que inscrevo agora acima desta página. Pois o que estou prestes a escrever será o registro do nosso primeiro dia. O mês ou o dia da emana pouco importam, já que em nossa longa passagem desde o sul da velha Inglaterra aos Antípodas atravessaremos a geometria das quatro estações!

Nesta mesma manhã, antes de deixar o saguão, fiz uma visita a meus irmãos caçulas, e que enorme trabalho deram eles à velha Dobbie! O pequeno Lionel executou o que acreditava ser uma dança de guerra aborígene. O pequeno Percy deitou-se de costas e esfregou a barriga, soltando tremendos gemidos para demonstrar os resultados maléficos de ter me devorado! Dei-lhes uns bons cascudos para que assumissem as atitudes contristadas de praxe e tornei a descer para onde minha mãe e meu pai esperavam. Terá ela forjado uma ou outra
lágrima? Não, eram autênticas, pois senti no meu próprio peito um calor talvez julgado impróprio a um homem de verdade. Ora, até meu pai — acho que temos valorizado o sentimentalismo de Goldsmith e Richardson em detrimento da vivacidade do velho Fielding e Smollet!

Vossa senhoria decerto se convenceria de meus méritos se tivesse ouvido as preces em minha intenção, como se eu fosse um condenado metido em grilhões em vez de um jovem cavalheiro a caminho de auxiliar o governador na administração de uma das colônias de Sua Majestade! Senti grande consolo graças aos evidentes sentimentos de meus pais — e graças também aos meus próprios sentimentos!

O vosso afilhado é no fundo uma boa pessoa. Precisei descer toda a entrada, passar pela casa do caseiro até chegar à primeira curva no moinho, para me recuperar!

Pois bem, em suma, estou a bordo. Subi pelo costado bojudo e alcatroado que em seus primeiros anos talvez tenha feito parte das formidáveis muralhas de madeira da Inglaterra. Passei por uma espécie de porta baixa, entrando na escuridão de um convés, ou algo parecido, e sufoquei ao primeiro fôlego. Deus do céu, que cheiro nauseabundo!

Via-se uma grande azáfama e confusão em meio à penumbra artificial. Um sujeito que se apresentou como meu criado conduziu-me a uma espécie de baia contra o costado da embarcação, que garantiu ser minha cabine. É um homem velho e manco, com um rosto anguloso e um punhado de cabelo branco de cada lado. Esses tufos agarram-se à sua cachola, permeados por uma calva lustrosa.

“Meu bom sujeito”, disse eu, “que fedor é esse?”

Ele empinou o nariz pontudo e olhou atentamente em volta como se pudesse ver o fedor em vez de cheirá-lo. “Fedor? Que fedor, cavalheiro?”

“O fedor”, retorqui, tapando o nariz e a boca com a mão, a sufocar; “a fedentina, o mau cheiro, chame-o como quiser!”

É bem-humorado esse Wheeler. Deu-me um sorriso então, como se o convés, rente sobre nossas cabeças, tivesse se aberto e deixado entrar alguma luz.
 William Golding , "Ritos de passagem"

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