“O que você está olhando? Não se vê nada, as nuvens passam e se dissolvem como a vida.”
Era uma moradora de um apartamento do sétimo andar. Achei o comentário impertinente e um tanto poético. Não lhe perguntei nada sobre poesia, mas as nuvens e suas formas mutáveis me aproximaram de d. Valéria, uma senhora de uns noventa e poucos anos. Foi uma aproximação lenta, que se estreitou em janeiro deste ano, quando ela me convidou para conversar em seu apartamento.
Toquei a campainha às seis horas em ponto. A sala, iluminada, fora diminuída por uma biblioteca fantástica e livros empilhados por toda parte. Perguntou se eu queria chá, café, suco, uísque ou cerveja.
“Suco.”
Para meu deleite, trouxe um copo com suco de manga; e, para minha surpresa, pegou uma garrafa de uísque e um copo sem gelo. As mãos tremiam, mas não a voz:
“Os jovens já não bebem mais”, ela disse, com uma ironia que me fez sorrir.
Pôs dois dedos de uísque no copo, tomou um gole e disse que tinha namorado muito, numa época em que a maioria das moças namorava para casar. Aos 36 anos, quando suas amigas já tinham filhos adolescentes, ela se casou com um juiz e passou a lua de mel em Dublin.
“Um juiz digno, um homem honesto”, frisou. “Ainda bem que meu marido não está aqui para ver tantas coisas ultrajantes. Bom, se ele estivesse, teria cento e seis anos, e com essa idade um ser humano não se surpreende com nada, nem mesmo com a morte.”
Como não teve filhos, d. Valéria passou uma parte da vida ajudando o marido. Lia autos de processos e também literatura. Leu tantos processos sobre todo tipo de delito que chegou a uma conclusão pessimista. Disse, sem amargura: “O ser humano, meu filho, não vale uma casca de cebola”.
Ela e o marido tinham conhecido Cyro dos Anjos em Brasília, quando a nova capital era um símbolo de esperança e otimismo. Aproveitei a menção do escritor mineiro e disse que havia conhecido seu filho.
“Eu também conheci esse menino”, ela disse, me olhando com ar triste. “Vocês eram amigos?” “Estudamos na mesma escola em Brasília”, eu disse.
“Tão jovem”, ela murmurou. “Como é possível?”
Bebeu mais um gole, e ficamos calados. Observei a sala, os livros, um quadro de Portinari e o assento de palhinha esburacado de uma marquesa; no chão, duas luminárias velhas e retorcidas. Uma claridade vinha da copa. O acesso ao corredor escurecia mais que o céu.
“Ainda leio antes de dormir. E bebo um pouco quando converso, mas não gosto de falar de coisas tristes.”
Uma manhã de fevereiro, antes do meio-dia, eu a vi com duas amigas, as três sentadas à mesa de um bar, tomando cerveja. Minha vizinha era a única que falava; as outras ouviam com atenção, de vez em quando riam. Fingi que esperava alguém e ouvi trechos do monólogo. D. Valéria falou de sua juventude em São Pedro, de namoros e bailes, de viagens de trem a Piracicaba, de duas bordadeiras italianas, as mais famosas de sua cidade natal. Tomou um gole com tanta avidez que esvaziou o copo. Depois disse:
“Vocês se lembram do Enzo, aquele rapaz de Campinas? Foi ele… Foi com ele… Na sede da fazenda. Não ia acontecer nada, e de repente aconteceu tudo. Ouvi badaladas de um sino, mas não tinha igreja por perto.”
As duas amigas gargalharam e o garçom, voyeur profissional, apenas sorriu.
Sei que ela gostava de poesia porque, numa conversa antes da Páscoa, mencionou poemas de Álvares de Azevedo e Augusto dos Anjos, e me mostrou um livro de Yeats, com uma dedicatória a um parente do marido dela. Folheei o livro, edição de 1933. Disse que seu marido, brasileiro de origem irlandesa, recitava poemas desse “irlandês genial”. Pôs uma fita cassete num gravador e ouvimos a voz cavernosa do finado James em noites do passado. Fiquei emocionado com essa voz, que parecia mastigar os sons de cada palavra. A viúva bebia uísque e sorria, sem tirar os olhos do gravador. Um dos poemas era “The Winding Stair”, título do livro.
Depois veio a Páscoa. Passei cinco dias fora de São Paulo e, quando voltei, encontrei na soleira da porta do meu apartamento um envelope com o livro de Yeats, que d. Valéria me mostrara. Subi pela escada os dois andares que nos separavam. A porta do 702 estava aberta. Dei uma olhada na sala: não havia livros nas estantes. Dois homens de macacão azul enrolavam a marquesa com uma manta de feltro.
Até hoje o apartamento está vazio.
Milton Hatoum, "Um solitário à espreita"
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