O principal era mesmo não compreender. Nem sequer a própria alegria.
Água escorria da bica e ela passava o pano ensaboado nos talheres. Da janela via-se o muro amarelo — amarelo, dizia o simples encontro com a cor. Esfregando os dentes do garfo, Lucrécia era uma roda pequena girando rápida enquanto a maior girava lenta — a roda lenta da claridade, e dentro desta uma moça trabalhando como formiga. Ser formiga na luz, absorvia-a inteiramente e em pouco, como um verdadeiro trabalhador, ela não sabia mais quem lavava e o que era lavado — tão grande era a sua eficiência. Parecia enfim ter ultrapassado as mil possibilidades que uma pessoa tem, e estar apenas neste próprio dia, com tal simplicidade que as coisas eram vistas imediatamente. A pia. As panelas. A janela aberta. A ordem, e a tranqüila, isolada posição de cada coisa sob o seu olhar: nada se esquivava.
Quando procurava outro pedaço de sabão, não lhe ocorreria não achá-lo: lá estava ele, à mão. Tudo estava à mão.
O que era tão importante para uma pessoa de algum modo estúpida; Lucrécia que não possuía as futilidades da imaginação mas apenas a estreita existência do que via. Ah! gritava um pássaro no quintal da loja.
Sem pintura o rosto perdia os vícios de que em outros momentos Lucrécia Neves precisava para se dar certo peso neste mundo. Com o rosto nu, também ela avançaria se chamassem as criancinhas. Toda iluminada, toda medida pelas duas horas. Ah! cortava o pássaro no quintal. No fundo mesmo, ela se julgava uma deusa.
Clarice Lispector, "A cidade sitiada"
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