À Leny e à Yara, minhas primeiras professoras
A crônica nos ensinou a perseguir o rodapé dos jornais. Não só ela está lá, como é de lá que extrai seu intento. Num jornal cheio das notícias tumultuadas do mundo, Rubem Braga descobriu, num cantinho, que a flor de maio havia resplandecido no Jardim Botânico e aconselhou os leitores a visitá-la com urgência, pois seria breve aquela vida.
No dia em que outro caso (em 2021, foram quase dois mil) de pessoa escravizada — uma senhora por setenta e dois anos — em lares impolutos vem à tona. No dia em que o mandatário do país se mostra mais uma vez racista e continua com sua estratégia de esgarçar a democracia, certo de que poderá simplesmente sufocá-la, destruí-la e, como déspota, manter-se no poder, desfrutando de toda a proteção contra seus crimes diários. No dia em que a crise econômica deixa de ser uma frase escrita em jornal ou discutida em textos acadêmicos e toma a vida das pessoas. No dia em que se revelam assassinatos bárbaros de civis ucranianos por soldados russos.
Bem, nesse dia, três brasileiros estavam em Salzburgo, na Áustria, para participar do “Campeonato Mundial de Aviãozinho de Papel”. Dois homens e uma mulher disputaram as provas de maior distância, maior tempo de voo e acrobacias. Assim como a flor de maio não perdura muito, os aviõezinhos não voam por um longo tempo (nosso “atleta” da prova de tempo de voo se classificou para a etapa final mantendo seu engenho no ar por 7s61, bem abaixo do recorde mundial, de 27s9). Da brevidade se alimenta o cronista? Não. A beleza, essa sim, sua matéria bruta, é que costuma ser breve. Flor, borboleta, chuva, voo de aviõezinhos de papel, tudo nasce e morre num piscar de olhos.
Torcem o nariz os leitores capturados pela urgência. Maldita alienação. Aqueles em busca de um refúgio aproveitam a crônica e tomam fôlego. Bendita sorte! O cronista não se importa com o julgamento, ele, agora, diante do campeonato mundial, voou para a própria infância, em cujos dias fez aviõezinhos de voos curtíssimos. Aliás, sempre cumpriu mal as tarefas que exigissem habilidade manual e, por isso, em toda sua vida escolar, só foi reprovado uma única vez, justamente no pré-primário, quando se aprendia a cortar e colar, a sentar em roda, a cantar e dançar. Uma vez, esteve com uma de suas professoras daquela fase e, irônico, insinuou que ela era responsável por sua reprovação. Ela riu, mas, passados uns dias, o procurou para dizer que não, não o havia reprovado. Mas deveria. Os aviões do cronista sempre embicaram mal saídos das mãos; seus desenhos foram repetidamente uma casinha com chaminé, uma estradinha e um pequeno lago, tudo sem perspectiva e mal colorido. Verdade seja dita, tinha alguma graça em dançar. Inábil com as mãos, inábil no trato: o cronista, boquirroto e metido a engraçadinho, faria bem se pedisse desculpas à professora pela brincadeira de mau gosto, afinal de contas, ele não foi reprovado. Tendo entrado um ano antes do previsto na escola, esperou mais um ano até completar a idade de ser alfabetizado.
Infância é quando não existem boletos, repete o povo. Mas também é quando não se tem consciência do desejo e não se sabe muito bem o que é a morte. Isso é verdade até o cronista se deparar com imagens de crianças fugindo da Ucrânia. Ou de crianças assustadas na Síria, no Iraque, no Afeganistão, nas favelas do Rio de Janeiro, nas reservas indígenas sob ataque de garimpeiros. Seria bom se, em aviõezinhos de papel, as pessoas chegadas a luares e flores de maio invadissem o coração das bestas à frente das batalhas e lhes devolvessem a infância. Por que não passam o campeonato de Salzburgo no horário nobre das televisões do mundo todo?
Os vencedores, é bom informar, foram um sérvio (distância), um paquistanês (tempo de voo) e um sul-coreano (acrobacias) — este, professor de ciências, aproveitou o palco e pediu a namorada em casamento.
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