Karen Mathison Schmidt. |
Que belo segredo faz coincidirem os espaços por onde vagueava o pensamento de María e os lugares onde vivem os gatos? Esses lugares meio abandonados, arruinados, desventrados das tragédias escritas pelo tempo, onde a vida faz que se esquece, embora, entre estelas funerárias e efígies, ainda murmure o que só uns poucos ouvem.
Cecília Meireles também ouvia as ruínas e as tumbas dos cemitérios, como María Zambrano. Ambas, aliás, amaram em Roma a Via Appia, e ali a estela de um ignoto adolescente romano. É célebre a história de que María costumava varrer o lixo do chão em torno do seu “namorado da Via Appia” para preservar-lhe o espaço sagrado, até o dia em que o encontrou misteriosamente engalanado com uma guirlanda de flores no pescoço.
Cecília, por sua vez, levou para seus poemas as pedras de Roma, suas inscrições, milhões de vidas na poeira suspensa das ruínas, que ela envolveu de amor, solidária a esse pó. Até um gato romano, brincando com um raio de sol, a poeta fez entrar num poema.
Curioso também que, ao visitar o túmulo de Shelley no cemitério protestante de Roma, Cecília tenha lembrado que o poeta morreu com um livro de Sófocles no bolso. Curioso porque Sófocles também ocupou o coração pensante de María e a levou a ouvir Antígona mesmo anos depois de Roma.
E agora, lua nova, os livros dessas duas amantes de ruínas espalhados aqui pelo chão da biblioteca, mais uma vez aparecem os gatos vigilantes e seus muitos olhos. E em que se parecem bibliotecas e ruínas, que os gatos amam tanto umas e outras? Certo poeta já ofereceu uma resposta, sem saber, quando disse que “se a vida arde bem, a poesia é simplesmente o pó”. Cinzas que nos falam, murmurando. E talvez mais ainda falem aos gatos.
Mariana Ianelli
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