quinta-feira, maio 26

Fronteira mental

As ruas pedonais do centro histórico de Olivença são calcetadas com pequenas pedras brancas e pretas, como o Largo do Senado, em Macau, como o calçadão de Copacabana, no Rio de Janeiro, como em tantas cidades e vilas portuguesas. Um dos padrões que rapidamente reconhecemos é o das ondas, sugestão de um oceano que fica a mais de duzentos quilómetros de distância. Chama-se a esse padrão “mar largo”, existe pelo menos desde o século XIX. O seu exemplo mais notório apresenta-se na calçada do Rossio, em Lisboa, tendo-se difundido pelo mundo a partir daí.


O palácio municipal é um dos monumentos notáveis de Olivença. Construído em meados do século XV, é um edifício de dois pisos, colado à muralha medieval. Diante da sua porta principal, há um notável trabalho de calcetagem, representa com todo o detalhe o mapa do centro histórico, o casco viejo. Aberta para esse chão, está uma entrada com impressionante ornamentação, manuelina, repleta de elementos deste estilo escultórico que se desenvolveu no reinado de D. Manuel I, o Venturoso, rei de Portugal e dos Algarves.

Tenho uma amiga portuguesa com olhos e cabelos claros, que vive na Suécia. Quando nos encontramos, costuma sempre descrever episódios das suas aventuras em Estocolmo. Conta que, nas mais diversas atividades do seu dia a dia, cruza-se com suecos absolutamente convencidos de que também ela é sueca. No entanto, se tem de abrir a boca para dizer alguma coisa, todos se admiram ao perceberem o equívoco.

De certa forma, assim é Olivença. Se não conhecêssemos a história, se não passássemos por ruas com gente de todas as idades a falar castelhano, seria fácil acreditar que estamos em Portugal. Às vezes, focamo-nos em algum detalhe, distraímo-nos por um instante e, quando voltamos a prestar atenção ao lugar onde estamos, somos como os tais suecos, espantamo-nos com alguém a dizer buenos dias ou alguma coisa do género.

A Igreja de Santa Maria Madalena é o monumento mais notável de Olivença. Também ele se encontra profusamente decorado com motivos de estética manuelina, esse gótico português tardio. E, no entanto, existe no seu interior uma solenidade sem pátria, uma representação da transcedência com o tamanho de séculos. Em setembro, num dia em que as nuvens e o sol se alternavam no céu, esperei no interior dessa igreja pelos raios que, com a inclinação certa, atravessaram os vitrais e projetaram um extraordinário desenho de cores no corredor central, luz sobre a pedra, o altar lá ao fundo.

O que são as fronteiras? Olivença é um curioso enclave para colocar esta questão. De um lado, Espanha, com todas as suas comunidades autónomas e, do outro lado, Portugal. E, ainda assim, ao contrário de um tempo que recordo bem, nenhuma dessas fronteiras hoje nos obriga a parar, a mostrar os documentos, a mostrar a bagageira do carro a pedido de guardas fardados.

Passeámos pelas ruas de Olivença, entre o cheiro fresco das folhas de laranjeira, sob as varandas, através dos arcos, as nossas sombras ao longo das paredes limpas.

Existe a história, problema sem fim, mas existe também o presente. Entre os portugueses, quantos já visitaram Olivença? Qual é a fronteira invisível que nos impede de chegar ao outro lado? A primeira característica das fronteiras é, justamente, a ideia de que existe outro lado. Há as fronteiras que nos impõem, mas há também as fronteiras que reconhecemos implicitamente, que edificamos na nossa cabeça e que, por incapacidade própria, não somos capazes de abolir.
José Luís Peixoto

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