terça-feira, maio 3

Sebo

O homem disse o próprio nome e ficou me olhando atentamente. Como alguém que tivesse atirado uma moeda num poço e esperasse o “plim” no fundo. Repeti o nome algumas vezes e finalmente me lembrei. Plim. Mas claro.

- Comprei um livro seu não faz muito.

Ele sorriu, mas apenas com a boca. Perguntou se podia entrar. Pedi para ele esperar até que eu desengatasse as sete trancas da porta.

- Você compreende - expliquei -, com essa onda de assassinatos...

Ele compreendia. Estranhos assassinatos. Todas as vítimas eram intelectuais. Ou pelo menos tinham livros em casa. Dezesseis vítimas até então. Se soubesse que seria a décima sétima eu não teria me apressado tanto com as correntes.

- Você leu meu livro? - ele perguntou.

- Li!

Essa terrível necessidade de não magoar os outros. Principalmente os autores novos.

- Não leu - disse ele.

- Li. Li!

Essa obscena compulsão de ser amado.

- Leu todo?

- Todo.

Ele ainda me olhava, desconfiado. Elaborei:

- Aliás, peguei e não larguei mais até chegar ao fim. Ele ficou em silêncio.

 Elaborei mais:

- Depois li de novo.
Ele nada. Exclamei:

- Uma beleza!

- Onde é que ele está?

Meu Deus, ele queria a prova. Fiz um gesto vago na direção da estante.

Felizmente, nunca botei um livro fora na minha vida. Ainda tenho - ainda tinha - o meu Livro do bebê. Com a impressão do meu pé recém-nascido, pobre de mim. Venero livros.

Tenho pilhas e pilhas de livros. Gosto do cheiro de livros novos e antigos. Passo dias dentro de livrarias. Gosto de manusear livros, de sentir a textura do papel com os dedos, de sentir seu volume na mão. Me ocupo tanto de livros e quase não me sobra tempo para a leitura.

Ele encontrou seu livro. Nós dois suspiramos, aliviados. Como é fácil fazer a alegria dos outros, pensei. Com uma pequena mentira eu talvez tivesse dado o empurrão definitivo numa vocação literária que, de outra forma, se frustraria. Num transbordamento de caridade, declarei:

- Que livro! Puxa!

Mas ele não me ouviu. Apertava o livro entre as mãos. Disse:

- O último. Finalmente.

- O quê?

Ele começou a avançar na minha direção. Contou que a tiragem do livro tinha sido pequena. Quinhentos exemplares. Sua mãe comprara 30 e morrera antes de distribuir aos parentes. Ele tinha ficado com 453. Dezessete cópias tinham acabado num sebo que, através dos anos, vendera todos. Ele seguira a pista de 16 dos 17 compradores e os estrangulara. Faltava o décimo sétimo.

- Por quê? - gritei. E acrescentei, anacronicamente: - Homem de Deus?

No livro tinha um cacófato horrível. Ele não podia suportar a ideia de descobrirem seu cacófato.

- Eu não notei! Eu não notei! - protestei.

Não adiantou. Ninguém que tivesse lido o livro podia continuar vivo. Ele queria deixar o mundo tão inédito quanto nascera.

- Mas essas coisas não têm import... - comecei a dizer. Mas ele me pegou e me estrangulou.

Bem feito! Para eu aprender a não ser bem-educado. Meu consolo é que depois ele descobriria que as páginas do livro não tinham sido abertas e o remorso envenenaria suas noites.

Enfim. É o que dá frequentar sebos.

Luís Fernando Veríssimo, "As mentiras que os homens contam"

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