No chão, que ainda é melhor, a temperatura está também como deve ser, nesta boa cidade de Buenos Aires. Ainda há pouco, ao andar rodando por aí tudo, lembrei-me de mim mesmo, faz 14 anos, passeando por estas mesmas ruas em companhia de Aníbal Machado e Moacir Werneck de Castro. Éramos mais moços de quase três lustros e estávamos contentes da vida porque tínhamos escapado por milagre do desatre do six-motor francês “Leonel de Marmier” (num voo entre Rio e B. A.), que conseguiu amarar ninguém sabe como numa lagoa próxima à cidade de Rocha, em pleno pampa uruguaio, depois de ter tido a nacela cortada de alto a baixo por uma das hélices, que desprendera do motor e entrara avião adentro, numa carnificina que mais vale não lembrar. O tempo do desastre foi de seis minutos: seis terríveis minutos de expectativa da morte. Valha-nos, na era do jacto puro, saber que o indivíduo provavelmente desintegra, em caso de acidente.
Hoje, domingo, 25, fizemos, em companhia do meu mui caro, leal e valoroso amigo Lauro Escorel, secretário de Embaixada em B.A., uma grande rodada de automóvel que nos levou para lá do Palermo. A cidade dominical era tranquila, fria e com um céu de névoas. Lembro-me de que, num determinado momento, ao passarmos por uma enorme edificação toda murada, disse-nos o ensaísta de O pensamento político de Maquiavel ser ali o lugar onde são tratadas as águas que abastecem Buenos Aires. Fiquei pensando que, mais ainda que ex-passageiro do Caravelle, gostaria de ter nos meus cartões de visita: V. de M., médico de águas. Assim seria apresentado às pessoas nas festas, em vez de como poeta ou diplomata. E ante a estranheza que lhes causaria o título, eu confirmaria gravemente:
- Sim, minha senhora, médico de águas, para servi-la...
Depois a imaginação se me partiu, e eu fiquei achando que médico de flores seria ainda mais belo. Que linda e honesta profissão a ter! E como eu seria o único do Rio, não chegaria para as encomendas, com uma clientela de fazer inveja a meus amigos os drs. Clementino Fraga Filho, Marcelo Garcia e Ivo Pitanguy, dentro de suas especialidades. Estaria assim muito bem no meu consultório e de repente minha mãe, aflitíssima, telefonaria: “Meu filho, vem depressa que minhas rosas estão morrendo...” E eu partiria com a minha maletinha para auscultar o coração das rosas, aplicar-lhes a coramina das flores, fazer-lhes transfusão de seiva, reavivar-lhes as cores, a fragrância, a beleza. E mal chegado a casa já haveria recados de milhões de amigas preocupadíssimas com suas azáleas, seus rododendros, seus antúrios. E eu voltaria feliz e diria com orgulho e alegria à Bem-Amada: “Acho que consegui salvar as rosas de minha mãe.” E a Bem-Amada ficaria muito contente e me daria um beijo. E eu daria também consultas a flores pobres, e na rua todas as damas me sorririam com simpatia e respeito, cumprimentando- me com graciosos ademanes. E eu as cumprimentaria de volta, com a circunspecção que deve ter um médico de flores.
Vinicius de Moraes
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