quarta-feira, maio 25

Sua alteza real

Estamos na Albrechtstrasse, aquela artéria da capital que liga a Albrechtsplatz e o Velho Castelo à caserna dos Fuzileiros da Guarda. É o meio de um dia de semana, em alguma estação do ano qualquer. O tempo está razoavelmente bom, indiferente. Não chove, mas o céu tampouco está claro: apresenta uma coloração cinza-clara, esbranquiçada, uniforme, comum, sem nada de solene, e a rua está mergulhada numa luminosidade sóbria e obtusa, que impede qualquer mistério, qualquer atmosfera particular. Observa-se uma movimentação de intensidade
mediana, sem muito barulho e sem multidões, que corresponde ao caráter não muito industrioso da cidade. Vagões de bondes deslizam de um lado para outro, algumas carroças passam, a população caminha pelas calçadas, para cá e para lá, uma gente sem cor, passantes, público, povo. Dois oficiais, com as mãos enfiadas nos bolsos diagonais de seus sobretudos cinzentos, caminham um em direção ao outro: um general e um tenente. O general vem do lado do castelo; o tenente, do
lado da caserna. O tenente é um jovenzinho de barba macia, quase uma criança. Tem ombros estreitos, cabelos escuros e bochechas largas e ossudas, como as de muita gente daqui, olhos azuis, de expressão um pouco cansada, e um rosto de garoto, cuja expressão é amigável, porém fechada. O general, de cabelos brancos como a neve, alto e bem nutrido, é uma figura em tudo imponente. Suas sobrancelhas parecem feitas de algodão e seu bigode viceja sobre a boca e o queixo. Ele caminha com uma força vagarosa, o sabre tinindo sobre o asfalto enquanto o penacho oscila ao vento, e, a cada passo, as amplas lapelas vermelhas de seu sobretudo oscilam para cima e para baixo. E assim se aproximam um do outro. Será que isso poderá causar complicações? Impossível.

Qualquer um seria capaz de ver claramente o decurso natural de semelhante encontro. Trata-se, aqui, da relação entre velho e moço, comando e obediência, mérito antigo e tenro noviciado. Há, aqui, uma grande distância hierárquica, regras. Que a ordem natural impere! E, no entanto, o que ocorre em vez disso? Em vez disso, o que ocorre é o seguinte espetáculo surpreendente, constrangedor, encantador e equivocado: o general, ao ver o jovem tenente, modifica de forma estranha sua postura. Ele se encolhe e, efetivamente, fica menor. É como se atenuasse, com um só golpe, o esplendor de sua aparição; contém o tinir de seu sabre, enquanto uma expressão áspera e constrangida toma conta do rosto, e parece não saber ao certo para onde deve olhar, nem o que está tentando esconder ao olhar de lado, por debaixo de suas sobrancelhas de algodão, para o asfalto. Se observado de perto, o jovem tenente também revela certa intimidação que, curiosamente, parece mais bem dominada por certa graça e por certa disciplina do que no caso de seu grisalho superior hierárquico. A tensão da boca se transforma num sorriso, ao mesmo tempo modesto e bondoso, e seu olhar, por enquanto, contempla ao longe, atravessando o general com uma tranquilidade silenciosa e contida, que não parece demandar dele qualquer tipo de esforço. Agora, apenas três passos separam um do outro. E, em vez de cumprir com as demonstrações de respeito previstas no regulamento militar, o jovem tenente recua um pouco a cabeça e, simultaneamente, tira a mão direita — apenas a direita, algo que chama a atenção — do bolso do casaco e descreve com essa mão, calçada numa luva branca, um discreto movimento, protocolar e encorajador, apenas virando a palma para cima e abrindo os dedos. Mas o general, que aguardava por esse gesto com braços vacilantes, leva a mão ao quepe, desvia, faz uma espécie de reverência enquanto lhe dá lugar na calçada e saúda o tenente de baixo para cima, enrubescido, com olhos úmidos e obedientes. E então o tenente retribui a honra demonstrada por seu superior levando a mão ao quepe, enquanto uma cordialidade infantil move seu rosto por inteiro — e segue adiante.

Admirável! Uma aparição fantástica! Ele segue adiante. É visto, mas não enxerga ninguém. Vê o que está lá adiante, através das pessoas e por entre as pessoas, com um olhar que lembra o de uma mulher que tem consciência de estar sendo observada. Saúdam-no e ele saúda de volta, de maneira quase cordial, mas, ainda assim, distante. Aparentemente tem alguma dificuldade em caminhar. É como se não estivesse habituado a usar as próprias pernas, ou como se a atenção que todos lhe voltam obstruísse seus passos, que se tornam a tal ponto irregulares e hesitantes que, às vezes, parece mancar. Um policial se volta em sua
direção e se coloca em posição de sentido. Uma mulher elegante, saindo de uma loja, faz-lhe uma reverência, dobrando os joelhos. Todos se viram para olhá-lo, apontam com a cabeça em sua direção, erguem as sobrancelhas e pronunciam, sussurrando,
 seu nome…

É Klaus Heinrich, o irmão mais jovem de Albrecht ii e seu sucessor na linhagem do trono. Lá vai ele. Ainda é possível vê-lo. Conhecido e ainda assim estranho, ele avança em meio à gente, anda no meio da multidão e, mesmo assim, parece cercado pelo vazio. Afasta-se, solitário, e carrega, sobre os ombros estreitos, o fardo da sua alteza.
Thomas Mann

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