Não ouço mais o ruído intestino do grande corpo de apartamentos empilhados em que morávamos. Calou o tropel dos búfalos, foram-se os urros dos vizinhos endemoniados. Vêm-me uns respingos daquele poema chuvoso de Cortázar: “em cima há gente e TV / embaixo há TV e há gente”. Penso também no zumbido dos azulejos do banheiro que o cronista Luís Pellanda diz ouvir às vezes, de madrugada, “como se um gato ronronasse atrás deles”. Pois em qualquer prédio é assim, por mais silenciosos que sejam os apartamentos, compartimos teto, chão e intestinos.
Não havendo mais gente em cima ou embaixo, nem TV audível daqui de onde escrevo, os sons de entranhas desta casa são os de nossa própria lavra, e convém que não extravasem, a não ser em circunstâncias específicas. Lavamos o quintal e é a casa que cascateia, pomos uma música na sala, porque é sexta-feira, e a casa toda é uma orquestra vazando pelas janelas, uma gata mia de madrugada no vão da escada, fazendo eco, e também ela é toda a nossa casa numa de suas reverberações fêmeas, casa que gargalha, canta, grita, chora e faz escapar, de quando em quando, do seu imo de palavras, algumas delas pelas frestas, sem mais contexto, como enigmas.
E não havendo mais búfalos nem TV sobre as nossas cabeças, nem à nossa volta a moscaria de helicópteros, escuto os aviões das manhãs de quarta-feira num borbotão de ar que estrondeia por instantes, tão rente à nossa casa que é pedir pela sanidade mental do piloto, que ele, nesses tempos altamente insanos, em seu pleno poder de acabar com tudo, ele, piloto, sempre a um gesto da desgraça, não o faça desta vez, não nessa manhã. E temos também – como não falar delas? – as paroleiras maritacas dos telhados, as novas gerações de cães cantores, a eloquência do guardador de carros aspirante a tenor e – extemporânea infância das cidades! – as palmas do carteiro.
Excetuando uma ou outra remota furadeira, os regougos e soluços entre paredes agora são somente os nossos. E, no calmo escuro da casa que dorme entre casas, na hora larga de mil sonhos parelhos, algo ainda ouço, mais oculto que baratas no rodapé, e retumba. É um coração que bate até latejar no ouvido. Um coração que bate, animando as paredes. Um coração que bate, com toda a vida da casa nesse batimento.
Mariana Ianelli
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