terça-feira, maio 10

Viver entre livros

Eu queria viver entre livros. Quando tinha dezesseis anos, em 1964, arranjei um emprego depois da escola na Pygmalion, uma das três livrarias anglo-germânicas de Buenos Aires.

A dona era Lily Lebach, uma judia alemã que fugira do nazismo e se estabelecera em Buenos Aires no final da década de 1930; ela me confiou a tarefa diária de tirar o pó de cada um dos livros da loja - método que, julgava Lily (com razão), faria com que eu ficasse conhecendo rapidamente o estoque e sua localização nas prateleiras.

Infelizmente, muitos dos livros tentavam-me para além da limpeza; eles queriam que alguém os segurasse, queriam ser abertos e inspecionados, e, às vezes, nem isso era suficiente. Umas poucas vezes roubei um livro tentador; levei-o para casa, enfiado no bolso do casaco, porque eu não tinha apenas de lê-lo: tinha de tê-lo, chamá-lo de meu. A romancista Jamaica Kincaid, confessando crime semelhante de roubar livros da biblioteca de sua infância, em Antigua, explicou que sua intenção não era roubar: acontece que, “depois de ler um livro, eu não conseguia ir embora sem ele”. Eu também descobri logo que não se lê simplesmente Crime e castigo ou A tree grows ín Brooklyn [Uma árvore cresce no Brooklyn]. Lê-se uma certa edição, um exemplar específico, reconhecível pela aspereza ou suavidade do papel, por seu cheiro, por um pequeno rasgão na página e uma mancha de café no canto direito da contracapa. A regra epistemológica para a leitura, estabelecida no século i , segundo a qual o texto mais recente substitui o anterior, já que supostamente o contém, quase nunca foi verdadeira no meu caso. No início da Idade Média, partia-se do princípio de que os escribas “corrigiam” os erros que percebiam no texto que estavam copiando, produzindo assim um texto “melhor”; para mim, no entanto, a edição em que havia lido um livro pela primeira vez tornava-se a editio princeps, com a qual todas as outras deveriam ser comparadas. A imprensa deu-nos a ilusão de que todos os leitores do Dom Quixote estão lendo o mesmo livro. Para mim, ainda hoje, é como se a invenção da imprensa jamais tivesse acontecido, e cada exemplar de um livro continua a ser tão singular quanto a fênix.

E, contudo, a verdade é que livros determinados emprestam certas características a leitores determinados. Implícita na posse de um livro está a história das leituras anteriores do livro - ou seja, cada novo leitor é afetado pelo que imagina que o livro foi em mãos anteriores. Meu exemplar de segunda mão da autobiografia de Kipling, Something of myself [Algo de mim], que comprei em Buenos Aires, tem um poema manuscrito na folha de guarda, datado do dia da morte de Kipling. O poeta improvisado que possuía esse exemplar seria um imperialista ardoroso? Um amante da prosa de Kípling que via o artista através da pátina jingoísta? Meu predecessor imaginado afeta minha leitura porque me vejo dialogando com ele, defendendo essa ou aquela posição. Um livro traz sua própria história ao leitor.

A senhorita Lebach devia saber que seus empregados surrupíavam livros, mas suspeito que permitia o crime, desde que achasse que não estávamos excedendo certos limites implícitos. Uma ou duas vezes ela me viu absorto em algum livro recém-chegado e simplesmente me mandou voltar ao trabalho e levar o livro para casa, para lê-lo em algum horário livre. Livros maravilhosos vieram a mim em sua livraria: José e seus irmãos, de Thomas Mann, Herzog, de Saul Below, O anão, de Pär Lagerkvist, Nove histórias, de Salinger, A morte de Virgílio, de Broch, The green child (A criança verde), de Herbert Read, A consciência de Zeno, de Ítalo Svevo, os poemas de Rilke, de Dylan Thomas, de Emily Dickinson, de Gerard Manley Hopkins, a lírica amorosa egípcia traduzida por Ezra Pound, a epopéia de Gilgamesh.
Alberto Manguel, "História da leitura"

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